quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Obras públicas que nunca eram concluídas - Parte 2

Preâmbulo (algo longo, mas necessário)


Há quem não tenha muito apreço pelas opiniões que viajantes estrangeiros que percorreram o Brasil no século XIX expressavam a respeito do País. Compreendo, mas quero lembrar um fato indiscutível - esses viajantes deixaram relatos que são verdadeiras preciosidades, face à escassez de material escrito sobre algumas épocas e lugares.
Se quisermos ser muito, mas muito generosos mesmo, teremos de considerar que, por volta da época da Independência, os analfabetos no Brasil deviam ser uns 80% dos homens e a quase totalidade das mulheres. Portanto, pouquíssimos brasileiros podiam deixar relatos e anotações de sua vida quotidiana, dos acontecimentos que presenciavam, de suas opiniões políticas. Infelizmente, não temos no Brasil a quantidade de diários de "gente comum" de que dispõem os historiadores em outros lugares. Os documentos oficiais, por sua vez, eram lacônicos, obedecendo a fórmulas mais ou menos estabelecidas, e grafados, frequentemente, segundo uma ortografia inteiramente particular ao escrivão...
Diante disso, não há como negar a importância dos depoimentos de viajantes estrangeiros.
Eram eles às vezes preconceituosos?
Sim.
Nem sempre chegavam a compreender com exatidão o que observavam?
É verdade.
Filtravam o que viam pela lógica de seu país de origem?
Igualmente verdade.
Mas nada disso elimina o uso de seus escritos como fonte de informação. Até porque o estudo das razões pelas quais emitiam determinados pontos de vista é, já por si, muito interessante.

Observações de Saint-Hilaire sobre como se faziam as obras públicas no Brasil


Como já mencionei muitas vezes neste blog, Auguste de Saint-Hilaire, naturalista francês, percorreu boa parte do Brasil em época pouco anterior à Independência. Viajava a cavalo, a pé ou em carroça, conforme as circunstâncias permitiam. Não resulta, pois, nada estranho que desse informações sobre os caminhos que seguia. O trecho seguinte é relativo a uma estrada que fora começada, mas que ainda não se concluíra:
"Trabalhou-se ali, durante muito tempo; gastaram-se somas consideráveis; mas desde que se franqueou a passagem, não só não se concluíram as partes apenas esboçadas, como não foram conservados os trechos já concluídos. As águas já ali cavaram profundas covas e trarão a inutilização desta estrada se mais um ano decorrer sem conserva." (¹)
A seguir, passa a explicar as razões pelas quais tantos empreendimentos públicos ficavam por terminar:
"É mais ou menos assim tudo o que se empreende neste país. Os brasileiros aprendem com facilidade; sabem arquitetar planos, mas entregam-se, demais, ao devaneio, não medindo obstáculos nem calculando os empreendimentos de acordo com os seus recursos.
[...].
O espírito de inveja e intriga mais veemente do que em qualquer outro lugar, interpõe-se a tudo quanto se faz, tudo perturba, favorece o tratante, e desencoraja o homem honesto. Começa-se qualquer empreendimento útil, para logo ser interrompido e abandonado. Às vezes um serviço ordenado pelo governo e que se poderia acabar em pouco tempo, e com despesas mínimas, jamais termina, embora nele se trabalhe sempre." (²)
A tal estrada, que nunca era acabada, ficava na Região Sudeste. Coisa parecida observou no Sul do Brasil, mostrando que o problema era mesmo ligado à estrutura administrativa como um todo, e não restrita a um lugar específico. Referindo-se à restauração que se fazia necessária na igreja em São Miguel (RS), observou:
"João de Deus, um dos primeiros governadores portugueses desta província, pretendia fazer reparos neste edifício; juntou materiais, gastou muito dinheiro, mas com a mudança de governo, o sucessor não aprovou o seu projeto. As restaurações da igreja foram interrompidas, as despesas feitas tornaram-se inúteis. Tal é ainda o inconveniente do poder absoluto outorgado aos governadores de Província. Cada qual começa uma determinada obra e quase nenhum continua a de seu predecessor; o dinheiro das Províncias se dissipa, e estas se endividam para sempre." (³)
O mesmo Saint-Hilaire ainda diria, observando a pressa com que todo trabalho era feito:
"A julgar da sua lentidão e dos poucos meios empregados para economizar o tempo, dir-se-ia que os brasileiros se julgam eternos." (⁴)
Não, senhores leitores, não há nada assim hoje em dia. Isso era coisa do século XIX...

(1) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 19.
(2) Ibid.
(3) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 373.
(4) Ibid., p. 107.


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