segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Costumes indígenas adotados por missionários jesuítas no Brasil

Se é verdade que a catequese  de indígenas (por jesuítas, principalmente, mas não só) representou o fim de algumas tradições da cultura nativa, também é verdade que, para uma adaptação ao Brasil, os religiosos precisaram adotar muitos dos hábitos e costumes dos "brasis", como então se dizia. Em sentido amplo, viver no Brasil, no Século XVI, e mesmo no XVII, pressupunha, em vários aspectos, viver como os índios. De outro modo, a sobrevivência seria quase inviável.

O costume de dormir em redes


Indígena do Brasil dormindo
em uma rede (¹)
Muito do que sabemos sobre o modo de vida dos missionários nesses primeiros tempos de colonização e catequese vem das cartas escritas por José de Anchieta. Em uma delas, redigida em Piratininga no ano de 1554, explicava que os padres da Companhia de Jesus que viviam na Capitania do Espírito Santo haviam adotado o costume indígena de dormir em redes, ficando as camas relegadas apenas aos doentes:
"Em lugar de cama, usa a máxima parte dos Irmãos de uns panos tecidos à maneira de rede, suspensos por duas cordas e traves; todavia, os que padecem de enfermidade de corpo por algum tempo, usam de camas como em Portugal." (²)
Como se sabe, a maioria dos indígenas do Brasil dormia em redes, cuja confecção variava conforme as tradições tribais. Era um modo conveniente de dormir, ao menos para os ameríndios nômades ou seminômades.

Hábitos alimentares aprendidos com indígenas


Em uma outra carta, Anchieta descreveu alguns detalhes da alimentação de que dispunham, revelando que, sob esse aspecto, já tinham aprendido bastante com seus catecúmenos:
"O principal alimento nesta terra é a farinha de pau, feita de umas certas raízes que se plantam (a quem chamam mandioca) [...]; isso substitui entre nós  a farinha de trigo. Constituem outra parte da alimentação as carnes selváticas, como sejam os macacos, as corças, certos outros animais semelhantes aos lagartos (³), os pardais, e outras feras; também os peixes dos rios, mas esses raramente. A parte mais importante, porém, do sustento consiste em legumes e favas, em abóboras e outras que a terra produz, em folhas de mostarda e outras ervas cozidas; usamos, em lugar de vinho, de milho cozido em água, a que se ajunta mel, de que há abundância; é assim que sempre bebemos as tisanas ou remédios; e se isto temos com fartura quase que não nos parecemos a nós mesmos pobres." (⁴)

Vestuário leve e ausência de calçados


Em um documento que se supõe escrito também por Anchieta, diz-se que, no Brasil, em razão do clima, era comum que as pessoas não usassem muita roupa - não estava falando dos índios, naturalmente, que isso já é outra história. O caso é que os jesuítas, seguindo a "moda da terra", também não tinham grandes preocupações com vestuário:
"Os nossos Padres e Irmãos vestem e calçam propriamente como em Portugal dos mesmos panos que lá, mas faltam-lhes muitas vezes, mas não se amofinam, porque a terra não pede muita roupa e quanto mais leve e velha tanto é melhor e folgam com ela; e o andarem descalços é uso da terra e não lhes dá tanta pena e trabalho como se fora na Europa [...]." (⁵)

Um exemplo de adaptação ao modo de vida dos ameríndios


É ainda da pena de Anchieta, ao traçar a biografia do Padre Gregório Serrão, que nos chega um exemplo de como vivia um missionário jesuíta que, ao empreender a catequese, estava disposto, se necessário, a abrir mão dos costumes de sua cultura de origem, adotando os hábitos e tradições vigentes entre os nativos da América:
"Residiu em uma aldeia muito tempo, que se ajuntou duas léguas de Piratininga com o Irmão Manuel de Chaves, aprendendo ali a língua e ensinando os meninos da escola, passando muito frio e fome. Pela muita pobreza que então havia de mantimento e vestido, nunca trouxe mais naquele tempo que a roupeta (⁶) velha sobre camisa e ceroulas, dormindo em uma rede, tendo o fogo por cobertor." (⁷) 
Chega a ser surpreendente que Anchieta, capaz como era, até por divertimento, de escrever cartas inteiras usando apenas trechos da Bíblia, tenha resistido aqui à tentação de citar o apóstolo que viveu e trabalhou no mundo greco-romano do Primeiro Século, quando afirmou: "omnibus omnia factus sum ut omnes facerem salvos..." (⁸)

(1) ________ Bilder - Atlas, Siebenter Band. Leipzig: F. A. Brockhaus. 
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 37.
(3) Levando em conta outras referências na obra de Anchieta, é possível que falasse dos jacarés.
(4) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Op. cit., pp. 43 e 44.
(5) Ibid., pp. 426 e 427.
(6) Hábito tradicional dos religiosos jesuítas.
(7) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Op. cit., p. 490.
(8) Epistula ad Corinthios I, IX, 22 ("Fui de tudo e de todos, para com modos diversos conseguir salvar alguns"). 


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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Os temperos de Apício

Política e gastronomia na Roma dos Césares


É provável que muitos cozinheiros excelentes tenham vivido neste planeta antes do Século I; porém, se deixaram obras escritas, falando de seus procedimentos, elas, infelizmente, não chegaram até nós, ou pelo menos, não são conhecidas (¹). Tudo o que temos são fragmentos muito reduzidos, relativos a algumas práticas de cozinha que vigoravam na Antiguidade.
Com Apício é diferente, ainda que haja controvérsias quanto à autoria da obra que lhe é atribuída, De re coquinaria, da qual o mais correto a dizer talvez seja que ela é produto, em parte, de anotações do próprio Apício, compiladas e ampliadas posteriormente por um ou mais editores. No entanto, esse chef famoso, contemporâneo dos imperadores Augusto e Tibério, é referido por autores da época, e sua existência, inclusive como frequentador dos círculos do poder, constitui-se em um fato bem documentado. 
Para quem quiser cozinhar como Apício...
Apício foi, por algum tempo, o queridinho da corte quando o assunto era o preparo de comida sofisticada; porém, os romanos defensores das antigas e severas tradições estavam entre seus maiores críticos. Para eles, a comida excessivamente elaborada de Apício era apenas mais uma dentre as muitas frivolidades que se haviam infiltrado em Roma, destruindo o estilo de vida frugal, tão idealizado, que se supunha ter existido nos primeiros tempos da cidade. (²)
Acontece que, deixando de lado considerações políticas, parece que havia outra razão para as críticas a Apício. Não faltava quem alegasse que sua comida era notável por um exagero nos temperos. Ficava até difícil saber o que é que se estava comendo... 
Ora, para fazer justiça a esse polêmico chef da Antiguidade, nada melhor do que verificar o que consta em De re coquinaria, na suposição de que seja, como já disse, ao menos parcialmente uma obra sua. Recomendava, por exemplo, que ervas silvestres, usadas como salada e servidas cruas, podiam ser temperadas com azeite e vinagre, valendo o mesmo para as cenouras. Que há de estranho nisso?
Mas não se enganem os leitores. Para os padrões da Antiguidade, a obra é extensa, contendo receituário para uma enorme variedade de pratos. Veremos, então, uma lista com algumas das ervas aromáticas, especiarias e outros condimentos mencionados nela. Quem gostar de cozinha talvez queira ir à despensa para verificar se todos os itens estão à mão, e para poupar trabalho, a lista está em ordem alfabética:
Açafrão, aipo e sementes de aipo, alcarávia, alho, alho-poró, arruda, azeite, cardamomo, cártamo (ou açafrão-bravo), cebola, coentro, cominho, endro, funcho, gengibre, hissopo, junípero, lavanda, levístico, louro, malva, manjerona, mel, menta, mostarda, nepeta (ou erva-dos-gatos), orégano, poejo, pimenta, sal, salsa, sálvia, segurelha, tomilho, vinagre, vinho. Estão cansados, leitores? Não é para menos.
Será bom assinalar que muitos molhos e temperos levavam ainda outros itens, tais como ameixas, amêndoas, damascos, figos, pinhões, tâmaras e uvas-passas.
Notem os leitores que a lista de ervas aromáticas, especiarias e condimentos diversos contém alguns elementos que são típicos da Península Itálica ou de regiões adjacentes; outros, porém, tinham de vir de pontos mais remotos ao longo do Mediterrâneo, do norte da África, da Arábia e mesmo de lugares longínquos do Oriente. Vejam, então, que a culinária de Apício e/ou de seus contemporâneos só foi possível porque, àquela altura, o Império contava já com boas estradas, e a presença de guarnições de seu poderoso exército assegurava, ainda que à força das armas, a existência da Pax Romana. Aos mercadores era possível que as viagens ocorressem em relativa segurança, garantindo a concretização de transações comerciais bastante lucrativas. A riqueza circulava, e, com ela, iam as notícias, a cultura e os hábitos de luxo. A cozinha do chef Apício, com seus temperos e exageros, não seria possível em outras circunstâncias.

(1) Nunca se pode descartar alguma descoberta notável que ainda venha a ocorrer.
(2) Nem poderia ser diferente, se levarmos em conta que, segundo Tito Lívio, Roma não passava, em suas origens, de uma modestíssima aldeia de camponeses briguentos que, em tempos de paz, viviam ocupados em cultivar a terra e cuidar de rebanhos.


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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Tudo pelo ouro da América

A comparação da América ao "Paraíso" ou "Jardim do Éden" é recorrente nos relatos dos primeiros exploradores e colonizadores europeus que chegaram ao Continente. Em muito pouco tempo, porém, o paraíso seria transformado em inferno, à medida que gente desesperada por ouro e dotada de total ausência dos mais elementares sentimentos de humanidade percorresse, primeiro as ilhas, depois a "terra firme", em uma autêntica marcha de destruição. Frei Bartolomé de Las Casas (¹), dominicano que gastou a vida em defesa dos povos indígenas, assim explicou o comportamento brutal dos chamados "conquistadores da América":
"A causa por que cristãos têm matado e destruído tantas e tão infinito número de almas [os indígenas] é somente por ter como fim último o ouro, e o encher-se de riquezas em pouco tempo, e subir a estados muito altos e desproporcionais às suas pessoas, convém saber, pela cobiça insaciável e ambição que têm [...]." (²)
Segundo Las Casas, os ataques aos índios eram feitos à noite, e, quando os conquistadores espanhóis estavam a cerca de meia légua de uma povoação, para formalmente assumir um verniz de "catequese", proclamavam:
"Caciques e índios desta terra firme de tal povoado, vos fazermos saber que há um Deus, e um papa e um rei de Castela, que é senhor destas terras: vinde logo prestar obediência, etc., e em caso contrário, sabei que vos faremos guerra, mataremos, cativaremos, etc." (³)
Para completar o trabalho, vinha, sem qualquer vestígio de piedade, o ataque à população nativa, que sem saber do que se passava, ainda dormia:
"De madrugada, enquanto os inocentes [indígenas] dormiam com suas mulheres e filhos, atacavam a povoação, pondo fogo às casas que geralmente eram de palha, sendo queimados vivos os meninos, as mulheres e muitos outros, antes que acordassem; matavam a quem queriam e aos que capturavam vivos torturavam até a morte para que contassem de outras povoações em que havia ouro ou dissessem onde estava mais ouro, além do que haviam encontrado; e os que restavam marcavam a ferro como escravos. Em seguida, tendo apagado o fogo, iam buscar o ouro que havia nas casas." (⁴)
Podem imaginar os leitores quanta catequese se fazia por esse método. É óbvio que tudo não passava de uma encenação demasiado infame, que precedia invariavelmente mais um episódio de rematada crueldade, cujo único fim era arrancar o ouro que fosse possível encontrar entre a população nativa. Há quem diga que a tal "proclamação", ordenada pelos reis de Espanha, servia para acalmar consciências. Ora, talvez fosse essa a ideia quanto aos monarcas distantes, mas que dizer dos indivíduos que a ferro e fogo arrasaram civilizações inteiras em poucas décadas? Que "consciências" eram essas?
Surpreendam-se, leitores: a matança era feita sob o pretexto de que havia índios demais, sendo a colonização impossível se a população não diminuísse! 
Não faltou quem acusasse Las Casas de exagero, tanto em seus dias como nos séculos posteriores. Mas os próprios relatos feitos por alguns dos conquistadores, as cartas escritas por descobridores, nas quais diziam o que haviam encontrado, e a enorme diferença entre o que então se via na América e aquilo que hoje se vê, são evidências de que o zeloso dominicano que se empenhava por defender os povos indígenas não estava mentindo, até porque, se estivesse, teriam os conquistadores, na época, sobeja oportunidade de demonstrar a própria inocência, coisa que jamais fizeram.
Las Casas, dentro de uma perspectiva compatível com sua posição de clérigo, ainda afirmaria:
"Estas são pois as obras dos espanhóis que vão às Índias [América], que verdadeiramente muitas e infinitas vezes por cobiça que têm de ouro têm vendido e vendem hoje, neste dia, e negam e renegam a Jesus Cristo." (⁵)
Mas era quase inútil escrever ou falar. O volume de ouro enviado à Europa, para particulares ou para o tesouro real, explicava, silenciosamente, o pouco interesse em reprimir tanta maldade.

(1) A primeira edição da Brevísima Relación de la Destrucción de las Índias foi publicada em 1552; havia sido escrita dez anos antes, com a finalidade de apresentar ao monarca espanhol os absurdos perpetrados pelos conquistadores. 
As citações da obra que aparecem nesta postagem são tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) LAS CASAS, Bartolomé de. Brevísima Relación de la Destrucción de las Índias. Philadelphia: Juan F. Hurtel, 1821, p. 18.
(3) Ibid., p. 41.
(4) Ibid., pp. 41 e 42.
(5) Ibid., p. 87.


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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Por que comerciantes enriqueciam nas minas

A possibilidade de enriquecimento rápido atraía muita gente para as minas nos tempos coloniais, e mesmo posteriormente. Procurar ouro e outras riquezas minerais era, porém, um empreendimento arriscado, que requeria investimento em equipamentos e escravos. Ora, sabe-se que bastava uma doença que levasse muitos escravos à morte para que o minerador ficasse em situação difícil, em particular se houvesse feito algum empréstimo para começar o trabalho nas lavras. Além disso, quem é que podia prever com absoluta certeza que uma data, ou seja, um terreno supostamente aurífero, iria proporcionar um bom rendimento?
Havia nas minas, porém, alguns habitantes que raramente tinham prejuízo: eram os comerciantes. 
Esses indivíduos não andavam atrás do sonho de topar, a qualquer momento, com uma quantidade enorme de ouro. Não, nada disso. Seu negócio era levar às minas os alimentos, o vestuário, as ferramentas, e mesmo alguns artigos de luxo que os mineradores iriam comprar. 
Expliquemos. Quem procurava ouro ou diamantes, não pensava em manter uma parte dos trabalhadores disponíveis cuidando de uma lavoura de subsistência. Todos os escravos eram ocupados na tentativa de arrancar da terra a riqueza mineral que se supunha existir. Por isso, nas minas chegava a faltar comida, e havia gente que quase morria de fome em meio ao ouro que procurava. Era aí que entrava em cena o comerciante, um sujeito que investia o capital de que dispunha em carregar às minas os artigos que sabia que poderia vender a preços exorbitantes. Como em todo empreendimento, havia algum risco, mas era muito pequeno, quando comparado àquele que corriam os mineradores.
É verdade que, para ser comerciante, era preciso ter dinheiro para comprar as mercadorias que seriam revendidas nas minas, bem como para fazê-las chegar ao destino, sempre às costas de muares, como era costume na época. Mas, conforme explicou Hércules Florence, desenhista francês da Expedição Langsdorff (¹), mesmo aqueles que não dispunham de grandes recursos podiam começar uma pequena atividade comercial, e acabariam prosperando, desde que tivessem aptidão para o ramo:
"[...] Estabelecem uma venda e metem-se a vender cachaça, panelas, rolos de fumo e bananas. No fim de um ou dois anos, transformam-se em negociantes, fazem o comércio de diamantes e não tardam a ficar ricos." (²)
Cabe observar que, entre um vendedor de cachaça e um grande comerciante de charque ou de gado para abate (³), por exemplo, ia uma enorme diferença. Além disso, é inegável que havia comerciantes que enriqueciam porque, paralelamente às atividades lícitas, realizavam o comércio ilegal (contrabando) de ouro não quintado e/ou de diamantes. Por outro lado, se uma lavra não rendia muito e era abandonada, aos comerciantes do lugar era melhor que arrumassem seus pertences e mercadorias e tratassem de tentar a vida onde novas jazidas fossem encontradas. Do contrário, veriam seus lucros minguarem tanto quanto as minas que ficavam desertas. 
Que dizer, então? Eram ossos do ofício...

Mercadores e viajantes no Brasil do Século XIX (⁴)

(1) Expedição de caráter científico, financiada pelo governo russo. Percorreu parte considerável do Brasil pouco depois da Independência.
(2) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 201.
(3) Era muito difícil levar gado vivo até as regiões mineradoras e, por essa razão, o preço da "carne verde" era altíssimo; portanto, tornou-se comum trazer charque (carne-seca), que também vinha de longe, mas era mais fácil de transportar. 
(4) DENIS, Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1837. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Algumas considerações sobre o ensino ideológico de História

A revista paulistana A Cigarra, em sua edição de 15 de junho de 1914, trazia:
"Numa aula de História:
- Diga-me alguma coisa sobre a vida de Tiradentes.
- Não está nos meus hábitos intrometer-me na vida alheia..."

Às vezes fico pensando de onde vêm as informações sobre a vida das "grandes personagens da História", que aparecem em algumas publicações. Sim, a pesquisa histórica pode, eventualmente, revelar detalhes curiosos, até picantes, sobre os famosos do passado, mesmo que não seja exatamente isso que o historiador esteja procurando. O problema aparece quando meras conjecturas ou lendas sem qualquer documentação comprobatória acabam sendo guindadas ao posto de verdades incontestes. A partir daí, são repetidas na mídia, e a repetição empresta ares de autenticidade às suposições, a tal ponto que, sem nenhuma compostura, comparecem às salas de aula, seja pela voz de um professor menos informado, seja pelas perguntas de alunos que ainda ficam espantados quando os docentes asseguram que tudo não passa de balela. Pior é quando, no cúmulo do desastre, a suposta informação chega aos estabelecimentos de ensino através de livros didáticos. Vê-se, portanto, o tamanho da responsabilidade de quem os escreve.
Não digo que nunca se possa referir uma ou outra anedota. Estará bem, desde que fique muito claro para quem lê que a coisa ou é ficcional ou, no mínimo, duvidosa. Mas tanta sinceridade não casa bem com a construção deliberada de heróis, que personifiquem os valores e/ou ideais defendidos com propósitos ideológicos, seja por quem deseja espaço para controlar a sociedade, seja por quem já manda mesmo. 
Acha que estou exagerando, leitor? Procure, então, livros didáticos de História adotados nos tempos do Estado Novo ou aqueles usados por escolares no Brasil dos anos setenta do Século XX. Não será preciso ir muito longe na leitura para verificar, na prática, como é que o fenômeno ocorria. 
No extremo oposto (que não anda difícil de encontrar), o da desconstrução total, nada do que se fez no passado valeu a pena, tudo tinha intenções perversas, todas as personagens eram figuras ridículas, verdadeiras minas de defeitos, tudo é alvo para anedotas descabidas, e por aí vai.
Mesmo respeitando as vozes discordantes, afirmo que escola não é lugar para entalar ideologia em cabeça de criança. Escola é sim, lugar em que crianças e jovens devem ser ensinados a pensar com a própria cabeça, e isso vale para qualquer área do conhecimento - não é exclusividade para as aulas de História. Acesso à informação, ainda que vital, não basta, é indispensável que se faça acompanhar do desenvolvimento da capacidade de interpretação crítica. 
Não é minha intenção propor alguma fórmula mágica, até porque diferentes realidades pedem diferentes soluções. Porém defendo o incentivo ao pensamento independente, à liberdade de decisões, à capacidade de ler criticamente, como ferramentas que formarão um legado que todo estudante deve ter o direito de levar consigo ao final de seus anos escolares, e que farão enorme diferença para a vida toda, quer no âmbito pessoal, quer no exercício pleno da cidadania.
Vejam os leitores que não estou fazendo das minhas ideias uma verdade suprema. Não tenho e nunca tive tal pretensão. Estou, com este post, abrindo espaço para um debate. Portanto, deem aqui (*) seus palpites, sem medo e sem preconceito. Mãos à obra!

(*) Se preferirem, podem usar o Twitter.


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quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A substituição dos escravos domésticos por criadagem livre

Escravo doméstico fazendo compras para a
família de seu proprietário (¹)
Durante muito tempo, ter um bom número de escravos dentro de casa, para a realização das tarefas quotidianas, foi visto como sinal de riqueza - uma vasta escravatura doméstica era coisa que gente de alta posição social gostava de ostentar. O tempo, porém, trouxe mudanças importantes, de modo que aquilo que era visto como um luxo passou a ser motivo de constrangimento. Em poucas palavras, a escravidão começou a ser considerada como aquilo que realmente era, uma vergonha nacional, que precisava desaparecer e, quanto mais cedo, melhor. 
Nesse cenário, era óbvio que famílias abastadas continuariam a ter servidores, não mais escravos, é verdade, mas criados de condição livre, que recebiam salários pelo trabalho que realizavam.
Os leitores que tiverem alguma familiaridade com a Literatura hão de recordar que em Quincas Borba (²) Machado de Assis situa muito bem o momento em que a gente urbana começava a ter orgulho por manter criadagem livre. Rubião, um sujeito afeiçoado aos hábitos simples de Minas Gerais, vem viver na capital do Império, após receber uma inesperada fortuna, condicionada à obrigação de zelar por Quincas Borba (o cão). Por conselho de novos amigos, aceita criados europeus, ainda que a contragosto:
"O criado esperava teso e sério. Era espanhol; e não foi sem resistência que Rubião o aceitou das mãos de Cristiano; por mais que lhe dissesse que estava acostumado aos seus crioulos de Minas, e não queria línguas estrangeiras em casa, o amigo Palha insistiu, demonstrando-lhe a necessidade de ter criados brancos. Rubião cedeu com pena. O seu bom pajem, que ele queria pôr na sala, como um pedaço da Província, nem o pôde deixar na cozinha, onde reinava um francês, Jean; foi degradado a outros serviços."
Ora, como sabem os leitores, o tal criado espanhol era aquele mesmo que, às escondidas, agarrava Quincas Borba pelas orelhas (o cão, naturalmente), a quem chamava "perro del infierno!"...
Mas trataremos agora do interesse que se ocultava atrás da ideia da substituição dos escravos domésticos por criadagem livre. Em um número publicado em 1853, o periódico O Agricultor Brasileiro argumentava, defendendo a vinda de colonos livres para trabalhar nas cidades:
"O número de escravos existentes presentemente no Rio de Janeiro é calculado aproximadamente em cem mil; e sendo certo que nas cidades onde não há escravos um criado faz tanto serviço como entre nós fazem dois ou três escravos, acreditamos que quarenta mil colonos serão suficientes para ocorrer a todas as necessidades de serviços urbanos." (³)
Para forçar a substituição, o jornal propunha taxar a propriedade de escravos urbanos com impostos elevados; deixava claro que a ideia não era indicada para a lavoura, onde se entendia que os escravos eram ainda indispensáveis. Sugeria, então, que os escravos urbanos deveriam ser direcionados à agricultura, sem levar em conta que era pouco provável sua adaptação às duríssimas condições de vida impostas aos cativos nas fazendas.
Será útil também salientar que essa curiosa proposta nasceu após a Lei Eusébio de Queirós, que bania em definitivo o tráfico de africanos para o Brasil; assim, a ideia de levar os escravos urbanos para as áreas de cultivo não deixava de ser uma tentativa de burlar, ou, pelo menos, de fugir às consequências da Lei de 1850.
Aventava-se, além disso, que a taxação da propriedade de escravatura doméstica urbana, virtualmente obrigando à venda para a lavoura, faria cair um pouco o preço dos escravos, o que acabaria por favorecer fazendeiros que se candidatassem a comprá-los.
É fácil perceber que, ao menos temporariamente, estavam tentando "dar um jeitinho" para prolongar a vida da maldita escravidão. Se os escravos urbanos iriam ou não gostar da ideia era coisa que não passava pela cabeça de (quase) ninguém. Eles eram escravos, não eram? Então, na lógica da época, deviam fazer aquilo que seus respectivos proprietários mandassem. A consideração por questões humanitárias chegava a ser avaliada, às vezes, como ocupação para cérebros ociosos.

(1) Desenho aquarelado de Joaquim Lopes de Barros (1840 - 1841). O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Antes de ser publicado na forma de livro, Quincas Borba foi apresentado ao público como folhetim, nos anos finais da escravidão no Brasil.
(3) O AGRICULTOR BRASILEIRO nº 2. Rio de Janeiro: Typographia de Nicolau Lobo Vianna Junior, 1853, p. 6.


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segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Canela e gengibre

Proibia-se a exportação para o Reino de gêneros que fizessem concorrência aos produtos do Oriente


Mesmo os pequenos estudantes de História do Brasil aprendem na escola que, durante boa parte dos chamados tempos coloniais, a produção das terras brasileiras devia ser sempre de caráter complementar à economia da Metrópole, sem jamais gerar concorrência. Afinal, não seria interessante se, da América, viessem mercadorias que podiam ser obtidas através do comércio relacionado à "carreira da Índia". Veremos, então, meus leitores, dois exemplos práticos dessa questão.
Gabriel Soares, em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, explicou que o cultivo de gengibre (Zingiber officinale) na Bahia mostrou-se esplendidamente adaptado às condições de clima e solo; entretanto, como uma ordem real proibiu a sua exportação, as plantações foram abandonadas:
"Da ilha de São Tomé levaram à Bahia gengibre, e começou-se a plantar obra de meia arroba dele, repartindo por muitas pessoas, o qual se deu na terra de maneira que daí a quatro anos se colheram mais de quatro mil arrobas, a qual é com muita vantagem do que vem da Índia, em grandeza e fineza, porque se colheu dele penca que pesava dez e doze arráteis, [...], do qual se fazia muita e boa conserva, do que se não usa já na terra por El-Rei defender que o não tirem para fora. Como se isto soube o deixaram os homens pelos campos, sem o quererem recolher, e por não terem nenhuma saída para fora apodreceram na terra [...]." (¹)
Outro caso interessante está relacionado à canela (Cinnamomum zeylanicum), famosíssima especiaria tipicamente oriental. No governo-geral de Luís César de Meneses (cujo mandato teve início em 1705 e foi até fins de 1709), resolveu-se incentivar no Brasil o plantio e cultivo de cravo-da-índia e canela. As técnicas apropriadas foram ensinadas por frei João da Assunção, franciscano, que veio ao Brasil (desde a Ásia) especialmente para isso.
Acontece, porém, que cultivar canela no Brasil já fora alvo de uma proibição anterior. Motivo? Suprimir qualquer possibilidade de concorrência à canela que, do Oriente, era levada ao Reino. Explicou, no começo do Século XIX, o Padre Ayres de Casal:
"As caneleiras transportadas da Ásia e cultivadas com algum cuidado no princípio da colonização foram pouco depois destruídas por ordem régia, a fim de conservar o comércio oriental. O erro foi conhecido, passados tempos; hoje recomenda-se a multiplicação das que nasceram das raízes; cumpre fazer experiências acerca do terreno em que devem ser cultivadas com preferência, pois que da qualidade dele depende a do vegetal. A melhor canela do Oriente é a dos terrenos secos." (²)

(1) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, pp. 157 e 158.
(2) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica  vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 104.


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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Escravos em Babilônia

Podia  ser numa manhã de sol brilhante. O movimento já era grande naquela rua comercial da antiga Babilônia. Cestos com legumes, montes de sacos de couro contendo cereais e uma infinidade de outras mercadorias aguardavam compradores. Havia gente indo e vindo, rindo e falando alto. Talvez, em uma banca de frutas, um artesão, a caminho do trabalho, parasse para comprar algumas romãs, o que podia ser uma boa oportunidade para dar dois dedos de prosa com o vendedor. É fácil imaginar que, enquanto regateava o preço, apenas para não perder o hábito, uma rodinha de tagarelas ia já em formação, e donos de lojas e oficinas mais ou menos próximas anunciavam suas mercadorias e serviços, se preciso, aos berros, sem nenhuma discrição, com o objetivo de incentivar fregueses meio sonolentos.
A animação matutina não era sem causa. Há dias chegara a notícia de que as tropas que haviam deixado a cidade na primavera estavam retornando vitoriosas. Nos últimos anos, as conquistas militares tinham se tornado frequentes, e com elas vinha uma prosperidade que Babilônia nunca antes experimentara. E pensar que a grande cidade, verdadeiramente cosmopolita, onde soava constante a algarávia de tantas línguas diferentes, já fora, nos séculos precedentes, uma povoação rebelde ao domínio assírio, e, por isso mesmo, tantas vezes arruinada - mas sem desaparecer. Em contrapartida, o Império Assírio é que agora era passado, e os verdadeiros babilônios tinham sobejas razões para festejar, fosse em casa, nas ruas, ou mesmo nos templos, tão numerosos quanto era vasto seu panteão de divindades.
Para os comerciantes a guerra era um bom negócio. As riquezas arrancadas a outros povos permitiam novas e belas construções, o dinheiro circulava, e, se as pessoas tinham dinheiro, estavam dispostas a gastar mais, comprar mais, construir casas melhores, com móveis sofisticados e outros artigos de luxo trazidos por mercadores que vinham de longe. Roupas finas, perfumes... Ah, os perfumes do Oriente!
E havia também os escravos. Na mentalidade dos dominadores a guerra era ótima porque muitos inimigos derrotados eram arrastados à Babilônia como escravos. Eram mão de obra garantida para as edificações que o rei planejava, mas também eram comprados, até barato, para o trabalho doméstico e das oficinas. 
Em Babilônia a escravidão tinha grande importância, mas um fato curioso é que, mesmo entre os cativos, existia desigualdade. Primeiro, havia os escravos dos templos, e, depois, os escravos do Estado, que suavam para que as grandes obras públicas virassem realidade. Havia, então, os escravos de particulares, aqueles que qualquer um que tivesse dinheiro podia comprar e ter a seu serviço. Finalmente, o mais espantoso: escravos de escravos, já que havia escravos que acabavam enriquecendo e, apesar de seu status  legal de cativos, pagavam suas obrigações a seus respectivos senhores e iam ao exercício das atividades que bem entendessem, para as quais acabavam, por sua vez, comprando escravos. Imagine-se agora qual era a posição social de um indivíduo que fosse escravo de um escravo!...
É verdade que em Babilônia nem todos os escravos eram estrangeiros. Alguns eram de lá mesmo, gente que havia nascido livre mas que se tornara cativa em razão de dívidas que não conseguira pagar, ou ainda quem havia cometido algum crime punido com a escravização. Entre os escravos do Estado, porém, predominavam os estrangeiros vencidos. Por outro lado, nem todos os inimigos derrotados eram vendidos como escravos - afinal, mesmo na grande Babilônia não caberia tanta gente. Uma prática comum nesses casos, adotada não só por babilônios, mas por outros povos da Mesopotâmia, era obrigar uma população vencida a migrar para um território diferente daquele em que originalmente vivia, em especial quando teimosa e reincidente em tramar rebeliões. Os mandatários da época achavam que isso privaria os derrotados da proteção de seus deuses e faria com que se vissem obrigados a uma vidinha pacífica, obediente e pagadora dos tributos que asseguravam a prosperidade dos vencedores (desculpem, leitores do Século XXI, mas se esta ideia parece estranha a vocês, preciso lembrá-los de que, sob outros pretextos, migrações forçadas ocorreram mesmo no Século XX, sob regimes que se autoproclamavam libertadores da humanidade).
Algumas horas mais e a população de Babilônia seria arrancada das suas ocupações corriqueiras. Arrancada de livre e espontânea vontade. Quem é que iria perder o desfile do exército que retornava? É que, ao som de instrumentos de percussão, já as primeiras unidades militares transpunham a muralha, precedendo os generais que acompanhavam o rei. Uma parte do botim de guerra seria consagrada aos deuses, mas a soldadesca era generosamente recompensada. Ao final do cortejo, vinha uma multidão coberta de pó, com as roupas estraçalhadas, a quem os babilônios dirigiam gracejos e provocações. Eram os infelizes a quem a derrota na guerra reduzia à condição de escravos. Coisa muito pouco provável é que, entre o populacho que os insultava, pudessem notar algum olhar de compaixão, até porque, nesse tempo, compaixão não era parte do arsenal de sentimentos que as pessoas eram  incentivadas a cultivar.
A festança agora se espalhava pela cidade. Lá na rua comercial, os eufóricos vendedores de vinho e cerveja mal conseguiam atender a tantos fregueses. A guerra também era boa para eles.


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quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O calabouço da capital do Império do Brasil

Escravos presos ao tronco, de acordo com Debret (¹)

Segundo Joaquim Manuel de Macedo, no volume 3 do Ano Biográfico Brasileiro, o calabouço do Rio de Janeiro foi criado pelo vice-rei D. Luís de Vasconcelos (²), na intenção - acreditem, leitores - de limitar os exageros que eram cometidos pelos senhores quando castigavam seus escravos:
"Por ordem do rei e para coibir o excesso de castigos dados aos escravos nas casas de seus senhores, criou [o vice-rei] o calabouço público, feia e sinistra inovação; mas inspirada por louvável sentimento." (³)
Não imaginem os leitores que os serviços prestados pelo calabouço aos proprietários de escravos eram gratuitos. Nada disso! O esperto vice-rei, que tinha grandes projetos em termos de urbanização da capital de seu vice-reinado, logo encontrou aplicação para as quantias pagas pelos senhores. É também Macedo quem explica, desta vez em Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro, depois de mencionar a existência de um cofre no qual eram lançadas as rendas decorrentes do trabalho dos homens livres que, acusados de "vadiagem", eram recolhidos à Casa de Correção:
"Além desse dinheiro [dos detidos na Casa de Correção] recolhiam-se também no mesmo cofre as quantias que pelos açoites dos escravos pagavam os senhores no calabouço. E assim ia o vice-rei ajuntando boas somas, que aplicava às diversas obras públicas, e especialmente às do Passeio Público." (⁴)
Como sabem os leitores, a independência política do Brasil em nada alterou a situação dos escravos. Senhores continuavam a mandar cativos para o calabouço sempre que lhes dava na veneta, ainda que a legislação penal do Império fizesse vistas grossas para os castigos aplicados em casa ou em qualquer outro lugar, desde que "moderados", até porque ninguém provavelmente iria ter o trabalho de fiscalizar. O Almanaque Laemmert de 1852 assim explicava o funcionamento do calabouço:
"Acha-se também no estabelecimento [a Administração das Obras] a prisão do calabouço, para a qual são enviados os escravos que são presos por fugidos ou outros quaisquer motivos, ou por ordem de seus próprios senhores, que o podem fazer mediante um bilhete de remessa com as declarações necessárias, e acompanhado da importância provável da despesa que o escravo pode fazer durante o tempo que se quer que ele ali seja conservado, e findo este prazo devem mandar renovar o depósito da importância das referidas despesas, e não o fazendo é o escravo posto em liberdade.
Todo o expediente relativo a escravos, quer de solturas e informações para elas, quer para serem vistos ou examinados, tem lugar unicamente de manhã, das oito e meia às nove, e de tarde, de uma às três (⁵), dos dias úteis. Os escravos remetidos por seus senhores são recebidos nos dias úteis desde as sete horas da manhã até às cinco da tarde, e nos dias de guarda, desde as nove da manhã até duas da tarde." (⁶)
Reparem, leitores, a naturalidade com que se explica o funcionamento do calabouço, como se faria em relação a qualquer repartição pública. Mais detalhes são providos pela edição de 1871 do Almanaque:
"Pela reclusão do escravo no calabouço se paga, nos períodos designados no regulamento, 400 réis diários, ou 1200 réis se esteve na enfermaria; além disto, nada se cobra de carceragem ou outros emolumentos. Na entrada do preso muda ele de roupa, que é guardada com qualquer objeto de valor que se lhe encontre para lhe ser restituído à vista de seu senhor no ato de ser posto em liberdade." (⁷)
Posto em liberdade? Ora, no ato de voltar para a escravidão!...
Mas não era só. A mesma edição de 1871 do Almanaque explicitava a presença de um médico para determinar se e quanto podia um escravo ser castigado (ou, se preferirem, torturado):
"Os castigos são mandados infligir aos escravos por ordem da polícia, à requisição de seus senhores, e o médico do estabelecimento verifica se o paciente está nas condições sanitárias de os sofrer." (⁸)
É evidente que as exigências quanto a uma ordem policial e à autorização de um médico serviam, formalmente, para restringir exageros, além de fornecer um verniz de legalidade, mas não eram raras as testemunhas que, na época, diziam ter visto escravos que saíam do calabouço completamente ensanguentados. Por outro lado, não chega a ser uma surpresa que houvesse algum médico que se prestasse ao trabalho de examinar prisioneiros que iam ser torturados, já que em nosso moderníssimo Século XXI há ainda países que praticam barbaridades como castigos físicos, que, ou incluem ou resultam em mutilação vitalícia, sob o beneplácito de médicos que atestam que os infelizes podem assim ser punidos. Não se discute aqui se há, em cada caso, crime ou não. O que se questiona é a selvageria das penalidades. No mínimo, o Estado que procede desse modo é tão brutal quanto os criminosos sentenciados.
Tudo o que se disse em relação ao calabouço, era válido na capital do Império. Deixo aos leitores que imaginem o que sucedia nos pontos mais longínquos do País, onde dificilmente haveria qualquer autoridade para limitar o arbítrio dos senhores. 

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Vice-rei do Brasil entre 1778 e 1790.
(3) MACEDO, Joaquim Manuel de. Ano Biográfico Brasileiro vol. 3. Rio de Janeiro: Typographia e Lithographia do Imperial Instituto Artístico, 1876, p. 120.
(4) Idem. Um Passeio Pela Cidade do Rio de Janeiro. Brasília: Senado Federal, 2005, p. 102.
(5) Das treze às quinze horas.
(6) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano Bissexto de 1852. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1852, p. 105.
(7) HARING, Carlos Guilherme. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1871. Rio de Janeiro: E & H Laemmert, 1871, p. 137.
(8) Ibid.


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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Uso da farinha de milho em São Paulo no Século XIX

"Dirigiu-se ao balcão, pesquisou com os olhos nas prateleiras e por todo o âmbito da taberna, o que havia para matar a fome: e sempre arranjou-se com um velho queijo de Minas, algumas rapaduras e farinha de milho."
José de Alencar, Til

Em grande parte do Brasil, ao menos até bem adiantado o Século XIX, a farinha de mandioca teve importância extrema na alimentação. A seu modo, substituía o trigo, que era pouco cultivado, em parte por razões climáticas, mas também porque a política de impostos adotada tornava difícil a vida dos produtores (¹). Nos tempos coloniais, plantou-se muito trigo na Capitania de São Vicente, mas essa prática acabou por ser quase abandonada, de modo que a triticultura brasileira circunscrevia-se às províncias meridionais, enquanto o uso de farinha de mandioca predominava em várias outras regiões.
Já no Século XIX, porém, a Província de São Paulo vinha a ser uma exceção, uma vez que nela o consumo de farinha de milho era considerável, e tinha ampla preferência na preparação de uma grande variedade de pratos. O mesmo podia ser dito em relação a alguns pontos do interior, nas províncias de Minas Gerais e Goiás, por exemplo. 
A técnica de preparação da farinha de milho variava um pouco de uma região para outra (e isso acontece até hoje), mas Luís d'Alincourt, militar português, observou que, em São Paulo, o procedimento era este:
"O seu pão [dos paulistas] é a farinha de milho: para fazerem lançam o grão de molho até fermentar, pilam-no depois, e torram a farinha; a qual, deitada em água forma uma bebida, a que chamam jacuba, que têm por muito saborosa, e fresca [...]." (²)

(1) Outro problema era a insuficiência de vias e meios de transporte para escoamento da produção.
(2) ALINCOURT, Luís d'. Memória Sobre a Viagem do Porto de Santos à Cidade de Cuiabá. Brasília: Ed. Senado Federal, 2006, p. 26.


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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Duas tempestades de granizo e uma batalha entre Roma e Cartago que nunca aconteceu

Quem conhece apenas superficialmente a história da antiga Roma será tentado a pensar que ela, por muitos séculos, permaneceu inexpugnável, soberana absoluta do mundo mediterrânico, até que, finalmente, veio a cair em mãos dos bárbaros. Mas não foi assim. Não foram poucas as ocasiões em que Roma foi severamente ameaçada, e que até precisou negociar uma rendição com os inimigos. 
Pois bem, se ouve uma ocasião em que Roma poderia ter caído e, como potência, teria até desaparecido, foi durante as Guerras Púnicas (¹), quando Aníbal (²) e suas tropas chegaram a estar a poucos quilômetros dos muros da cidade, não muito depois de terem os romanos conquistado Siracusa, aliada de Cartago (em 211 a.C.). Sendo este o cenário do confronto, a interferência de um elemento imprevisível trouxe mudança completa ao que parecia ser o rumo normal dos acontecimentos.
O relato de Tito Lívio é impressionante, permitindo a quem o lê visualizar mentalmente o que sucedeu, estando os dois exércitos frente a frente, em formação de batalha, cabendo "Roma como prêmio ao vitorioso":
"Caiu sobre ambos os exércitos uma pesada chuva de granizo, a tal ponto que os soldados, mal podendo segurar as armas,  foram forçados a retornar aos respectivos acampamentos, antes por receio da chuva que do inimigo. No dia seguinte ocorreu idêntica tempestade, separando os exércitos que, no mesmo lugar, estavam já prontos para o combate. Assim que todos retornaram aos acampamentos, o céu tornou-se miraculosamente sereno e tranquilo." (³)
Sabem os leitores que os povos da Antiguidade eram bastante supersticiosos, e,  nesse aspecto, nem romanos e nem cartagineses eram muito diferentes. Aníbal, que já desistira uma vez de atacar Roma diretamente, quando poderia ter obtido sucesso, de novo protelou o enfrentamento, dizendo que, para apoderar-se de Roma, era talvez mais importante a boa sorte que uma grande capacidade bélica. É possível que ele entendesse "sorte" como uma atitude favorável dos deuses, que as tempestades de granizo pareciam negar. De qualquer modo, a oportunidade perdida não retornaria às suas mãos. Depois de confrontos encarniçados, Aníbal foi derrotado, já em território africano, na Batalha de Zama (⁴). Posteriormente, na chamada Terceira Guerra Púnica (⁵), Cartago foi completamente arrasada, fazendo os romanos tudo o que podiam até mesmo para apagar a memória de sua existência. Coube então a Roma, como vencedora, a soberania em todo o Mediterrâneo Ocidental.

(1) Contra Cartago, uma colônia fenícia no norte da África, que, tendo alcançado grande desenvolvimento, veio a ser uma potência econômica e militar.
(2) General cartaginês. 
(3) Ab urbe condita libri, VI. O trecho citado é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) 202 a.C.
(5) 149 - 146 a.C.


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quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Algumas causas de doenças e mortalidade entre escravos no Brasil

A mortalidade entre os escravizados no Brasil sempre foi muito alta, inclusive entre aqueles recém-chegados ao continente americano. As doenças contraídas ainda nos porões dos navios em que, amontoados, faziam a travessia do Atlântico, o contato, logo que chegavam ao Brasil, com algumas enfermidades desconhecidas para os africanos e as condições duríssimas a que eram submetidos contribuíam acentuadamente para o número elevado de óbitos. Podia haver diferenças entre as condições de vida dos escravos moradores de áreas urbanas e dos que trabalhavam em fazendas, mas, em maior ou menor grau, a maioria dos cativos era afetada pelas dificuldades inerentes a um  "período de adaptação", se é tal expressão é razoável neste caso.
É fato, porém, que grande parte dos proprietários não dava muita atenção ao estado de saúde de seus escravos, a não ser na hora em que eram comprados. Mas, após a Lei Eusébio de Queirós, de setembro de 1850, que baniu o tráfico de africanos para o Brasil, o temor de ficar sem mão de obra para a lavoura induziu muitos senhores a uma mudança de postura. Passou a haver, pois, quem se interessasse por investigar o que devia ser feito para que os cativos conservassem boas condições físicas. O periódico O Agricultor Brasileiro, nº 4, de 1854, afirmava que, até então, não havia estudos importantes relativos à saúde dos escravos no Brasil:
"A salubridade da escravatura tem sido até hoje tão pouco estudada e aconselhada que raros são os escritos científicos que existem a tal respeito; nem os médicos que exercem a profissão nas fazendas se lembraram ainda de organizar qualquer trabalho que tivesse por fim difundir luzes sobre a higiene e moléstias dos escravos [...]." (¹)
Ainda assim, a mesma publicação levantava algumas causas para as enfermidades que afetavam a população escrava, enfermidades essas que, não poucas vezes, eram letais. Um primeiro fator estava relacionado às  condições de moradia dos escravos, já que as senzalas eram construídas em locais que não favoreciam a higiene - os leitores bem sabem que, para os senhores, o melhor lugar para uma senzala era aquele que tornasse mais difícil alguma tentativa de fuga.
Um outro aspecto a ser considerado era a deficiência na alimentação. Dizia o já citado jornal:
"O gênero de alimentação é também objeto que deve merecer muito particular solicitude dos fazendeiros, pelo muito que ela influi na conservação da saúde e da vida. [...] Sobre este objeto não há entre nós um uso geral: a qualidade de alimentação é diversa em várias localidades, e consiste quase sempre na farinha de mandioca, ou de milho e vegetais. Só o feijão é geralmente usado, e pode-se considerar a base da alimentação em quase todos os lugares, conquanto no Maranhão seja substituído pelo arroz. [...] Em grande número de fazendas, os escravos somente comem a carne de animais que caçam [...]." (²)
Escravo inválido, Século XIX (⁴)
Havia, ainda, a falta de assistência médica, embora esse fosse um problema que afetava não só os escravos, mas a população em geral:
"[...] Muitas léguas se anda por muitas povoações, e por muitas fazendas se passa sem que se encontre um só médico." (³)
Poderíamos, ainda, meus leitores, acrescentar as lesões decorrentes do trabalho penoso, cujos danos eram, não raro, vitalícios, além das doenças resultantes da deficiência no saneamento básico, como eram as relacionadas à contaminação da água, que, todos sabem, não escolhiam suas vítimas apenas dentre os cativos, já que nem mesmo a capital do Império estava livre delas. Nesse sentido, vale lembrar também as epidemias que aterrorizavam a população do Brasil no Século XIX, fosse ela livre ou escrava, fazendo vítimas, independente da origem, condição econômica ou idade. Era o caso, por exemplo, da febre amarela.
Portanto, leitores, a título de conclusão, podemos afirmar que era inegável o impacto das doenças de carência sobre os escravos; todavia, quando o assunto era a deficiência nas condições de saneamento básico e de assistência médica, a população, quer livre, quer cativa, era bastante afetada, até pela escassa difusão de conhecimentos relativos às práticas de higiene que, devidamente aplicadas, trariam melhoria considerável à saúde pública.

(1) O AGRICULTOR BRASILEIRO nº 4. Rio de Janeiro: Typographia de Nicolau Lobo Vianna Junior, 1854, p. 11.
(2) Ibid., p. 12.
(3) Ibid.
(4) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Economia de papel

No Brasil Colonial papel era caro e devia ser economizado


Papel é um artigo muito barato, e pouca gente faz dele alguma economia, embora seja razoável pensar nisso, não pelo preço, mas por razões ecológicas. É pouco provável que hoje em dia alguém diga que não pode aprender a ler e escrever porque não tem papel para as lições. Mais comum, mesmo, é o desperdício, e nem passa pela cabeça dos esbanjadores que já houve tempos em que papel era muito caro, um verdadeiro artigo de luxo, para falar a verdade.
Sucede que os métodos antigos empregados na fabricação do papel encareciam bastante o produto final, e não foram poucas as tentativas para baratear o processo (lembram-se de Ilusões Perdidas, de Balzac?), até que, finalmente, a obtenção de celulose a partir de algumas espécies vegetais desse os melhores resultados - para desespero das árvores, claro. O fato é que pouco pensamos no quanto o acesso a papel de baixo custo revolucionou este planeta: a invenção da imprensa com tipos móveis foi fundamental para a difusão da cultura, mas, mesmo com ela, os livros ainda eram caros, embora não tanto quanto os que eram feitos por copistas. Foi somente com o barateamento do papel que os livros chegaram a ser acessíveis à maioria das pessoas. Se alguém duvida disso, basta comparar, em termos de quantidade, o acervo médio das grandes bibliotecas medievais àquilo que encontramos hoje em qualquer modesta biblioteca pública dos municípios do interior do Brasil.
No Brasil Colonial não era raro que faltasse papel, daí porque quem precisava escrever devia economizá-lo. Não era apenas uma questão de preço. O papel tinha de vir do Reino, e, como para algumas regiões, como a Capitania de São Vicente, por exemplo, apenas um navio fazia a rota Lisboa - Santos a cada ano, se o papel acabasse, não seria possível arranjar mais até que o próximo navio chegasse. Sabemos, pelo que escreveu o jesuíta Manoel da Fonseca, que o Padre Belchior de Pontes, para economizar papel, não ia além de meia folha quando escrevia alguma de suas cartas:
"[...] Até nas cartas mostrava o amor que tinha a esta virtude (¹), porque guardando o louvável costume, que havia nesta Província, de não gastar mais de meia folha de papel, de tal sorte se acomodava na escrita, que não excedia tão santa lei." (²)
Hoje, quando queremos escrever, já não precisamos de papel, e a velha máxima popular que dizia que "papel aceita tudo" começa a perder o sentido. Quanto ao papel, é certo, porque outras mídias são, agora, ainda mais receptivas. Mas isso tem lá suas vantagens, porque permite um acesso democrático não apenas à informação, como também à livre expressão das ideias, para um número cada vez maior de pessoas. A conclusão disso é que, naturalmente, precisa ser cada vez maior a capacidade de filtrar aquilo que é útil, em meio a um dilúvio de ideias nem sempre muito recomendáveis. Um conselho muito antigo, com quase dois mil anos, tem, por isso, até mais importância hoje do que tinha quando originalmente foi escrito: "Omnia autem probate quod bonum est tenete..." (³) Ou seja: Provem tudo e fiquem com o que é bom.

(1) Referia-se à obediência que todo jesuíta professava, além de, no contexto do trecho citado, tratar também da pobreza.
(2) FONSECA, Manoel da, S.J. Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil. Lisboa: Off. de Francisco da Silva, 1752. Reedição da Cia. Melhoramentos de S. Paulo, p. 40.
(3) Epistula ad Thessalonicenses I 5, 21. 


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