quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

A substituição dos escravos domésticos por criadagem livre

Escravo doméstico fazendo compras para a
família de seu proprietário (¹)
Durante muito tempo, ter um bom número de escravos dentro de casa, para a realização das tarefas quotidianas, foi visto como sinal de riqueza - uma vasta escravatura doméstica era coisa que gente de alta posição social gostava de ostentar. O tempo, porém, trouxe mudanças importantes, de modo que aquilo que era visto como um luxo passou a ser motivo de constrangimento. Em poucas palavras, a escravidão começou a ser considerada como aquilo que realmente era, uma vergonha nacional, que precisava desaparecer e, quanto mais cedo, melhor. 
Nesse cenário, era óbvio que famílias abastadas continuariam a ter servidores, não mais escravos, é verdade, mas criados de condição livre, que recebiam salários pelo trabalho que realizavam.
Os leitores que tiverem alguma familiaridade com a Literatura hão de recordar que em Quincas Borba (²) Machado de Assis situa muito bem o momento em que a gente urbana começava a ter orgulho por manter criadagem livre. Rubião, um sujeito afeiçoado aos hábitos simples de Minas Gerais, vem viver na capital do Império, após receber uma inesperada fortuna, condicionada à obrigação de zelar por Quincas Borba (o cão). Por conselho de novos amigos, aceita criados europeus, ainda que a contragosto:
"O criado esperava teso e sério. Era espanhol; e não foi sem resistência que Rubião o aceitou das mãos de Cristiano; por mais que lhe dissesse que estava acostumado aos seus crioulos de Minas, e não queria línguas estrangeiras em casa, o amigo Palha insistiu, demonstrando-lhe a necessidade de ter criados brancos. Rubião cedeu com pena. O seu bom pajem, que ele queria pôr na sala, como um pedaço da Província, nem o pôde deixar na cozinha, onde reinava um francês, Jean; foi degradado a outros serviços."
Ora, como sabem os leitores, o tal criado espanhol era aquele mesmo que, às escondidas, agarrava Quincas Borba pelas orelhas (o cão, naturalmente), a quem chamava "perro del infierno!"...
Mas trataremos agora do interesse que se ocultava atrás da ideia da substituição dos escravos domésticos por criadagem livre. Em um número publicado em 1853, o periódico O Agricultor Brasileiro argumentava, defendendo a vinda de colonos livres para trabalhar nas cidades:
"O número de escravos existentes presentemente no Rio de Janeiro é calculado aproximadamente em cem mil; e sendo certo que nas cidades onde não há escravos um criado faz tanto serviço como entre nós fazem dois ou três escravos, acreditamos que quarenta mil colonos serão suficientes para ocorrer a todas as necessidades de serviços urbanos." (³)
Para forçar a substituição, o jornal propunha taxar a propriedade de escravos urbanos com impostos elevados; deixava claro que a ideia não era indicada para a lavoura, onde se entendia que os escravos eram ainda indispensáveis. Sugeria, então, que os escravos urbanos deveriam ser direcionados à agricultura, sem levar em conta que era pouco provável sua adaptação às duríssimas condições de vida impostas aos cativos nas fazendas.
Será útil também salientar que essa curiosa proposta nasceu após a Lei Eusébio de Queirós, que bania em definitivo o tráfico de africanos para o Brasil; assim, a ideia de levar os escravos urbanos para as áreas de cultivo não deixava de ser uma tentativa de burlar, ou, pelo menos, de fugir às consequências da Lei de 1850.
Aventava-se, além disso, que a taxação da propriedade de escravatura doméstica urbana, virtualmente obrigando à venda para a lavoura, faria cair um pouco o preço dos escravos, o que acabaria por favorecer fazendeiros que se candidatassem a comprá-los.
É fácil perceber que, ao menos temporariamente, estavam tentando "dar um jeitinho" para prolongar a vida da maldita escravidão. Se os escravos urbanos iriam ou não gostar da ideia era coisa que não passava pela cabeça de (quase) ninguém. Eles eram escravos, não eram? Então, na lógica da época, deviam fazer aquilo que seus respectivos proprietários mandassem. A consideração por questões humanitárias chegava a ser avaliada, às vezes, como ocupação para cérebros ociosos.

(1) Desenho aquarelado de Joaquim Lopes de Barros (1840 - 1841). O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Antes de ser publicado na forma de livro, Quincas Borba foi apresentado ao público como folhetim, nos anos finais da escravidão no Brasil.
(3) O AGRICULTOR BRASILEIRO nº 2. Rio de Janeiro: Typographia de Nicolau Lobo Vianna Junior, 1853, p. 6.


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2 comentários:

  1. Felizmente, essa página infeliz da História ficou para trás.
    Sabe, fiquei curiosa em relação a esse criado espanhol que perseguia o pobre cão. Não li essa obra do Machado de Assis. Vou procurá-la.
    Beijinhos, uma linda semana
    Ruthia d'O Berço do Mundo

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    1. Em termos de escola literária, Quincas Borba é geralmente classificado como pertencente ao Realismo. Tem o humor típico de Machado, mas deprimente, ainda que proporcionando uma visão bastante aguda da sociedade da época.

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