quinta-feira, 28 de junho de 2012

A roda dos expostos

Infelizmente têm nascido neste nosso planetinha, ao longo dos séculos, pelos mais diversos motivos, muitas crianças não desejadas. As diferentes sociedades têm lidado com tal problema de maneiras distintas e, uma das "soluções" adotadas, foi a roda dos expostos. Que era ela?
Há uma excelente descrição feita por Saint-Hilaire, datando do início da segunda década do século XIX:
"Desde que os portugueses estão em Montevidéu, abriram no hospital um estabelecimento para as crianças abandonadas. Como em todas as casas desses gênero, elas são expostas em uma roda, aonde passam para o interior da casa; em seguida, confiadas às amas; destas, algumas as amamentam em casa e outras no próprio hospital. Há três anos que este estabelecimento existe. No primeiro ano, foram trazidas quarenta crianças, mas depois, as exposições diminuíram. A sala que abriga as crianças é separada por dois pequenos pátios da sala onde estão os doentes. Entretanto, parece-me que as crianças ainda se acham muito perto destes, para que não seja infectado o ar de miasmas." (¹)
Deve-se explicar que, na Europa, as rodas dos expostos não eram novidade; em Portugal, estavam previstas nas Ordenações do Reino e vinculadas às Irmandades de Misericórdia, o que também veio a ocorrer no Brasil, onde as rodas começaram a ser estabelecidas no século XVIII, embora a de São Paulo (²) só tenha sido criada no século XIX, sendo presidente da Província o Visconde de Congonhas do Campo, que exerceu seu mandato entre 1824 e 1827. Portanto, após a Independência.

(1) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 198.
(2) Veja, sobre essa questão: TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 267.


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O Asilo de Expostos (*) em São Paulo no Ano de 1919

Em sua edição de 1º de outubro de 1919, a revista paulistana A Cigarra trouxe, em matéria de página inteira, a notícia de uma tômbola que seria realizada em benefício do Asilo de Expostos; incluíam-se duas fotos, que podem ser vistas abaixo:


A  legenda desta primeira foto diz: "Um grupo de asilados antes da recente epidemia de gripe no Asilo dos Expostos. Veem-se na fotografia, além de cinco dedicadas Irmãs de Caridade, o médico Dr. Sinésio Rangel Pestana e o infatigável mordomo, Dr. Sampaio Viana". (**)
Perguntamo-nos: O que teria acontecido durante a epidemia de gripe? Teriam morrido muitas crianças? Ou muitos meninos e meninas da cidade ficaram órfãos?


Já a segunda foto que aparecia na matéria citada trazia esta legenda: "Neste grupo veem-se numerosas crianças que, por falta de espaço no Asilo dos Expostos, se acham entregues aos cuidados de amas contratadas." (**)
A Cigarra concluía o assunto com a observação de que ingressos para a tômbola estavam disponíveis, de modo que as famílias de São Paulo tinham a oportunidade de auxiliar na manutenção do Asilo.

(*) Um "exposto" era qualquer criança que não tinha o amparo de sua própria família, e não necessariamente alguém abandonado na roda dos expostos. Podia ser um órfão, por exemplo.
(**) A CIGARRA, Ano VI, nº 121, de 1º de outubro de 1919. As imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Pedra-sabão

Sobre a pedra-sabão escreveu Ayres de Casal em sua Corografia Brasílica:
"... pedra-sabão de cor de pérola, alguma veiada de escuro, compacta, pesadíssima, facílima de trabalhar, cedendo à unha; fazem-se dela imagens, castiçais, escrivaninhas e ainda panelas ao torno. Dá excelentes gizes, o seu finíssimo pó é procurado pelos viandantes." (*)
Esse trechinho faz parte de uma obra publicada na segunda década do século XIX, mas quem quer que ande, ainda hoje, pelas chamadas Cidades Históricas de Minas Gerais, logo perceberá um amplo comércio de objetos em pedra-sabão, destinado principalmente a atender turistas, com peças que incluem desde expressões típicas da religiosidade popular até aquelas de cunho decorativo e/ou de uso doméstico. A variedade é enorme.

Jarra e bacia, exemplos de artesanato em pedra-sabão

Entretanto, a pedra-sabão (esteatito), justamente por ser fácil de trabalhar, como bem assinalou o Pe. Ayres de Casal, tem-se prestado a obras de arte sobremodo expressivas e, embora a produção do Barroco colonial brasileiro seja numerosa, os "Doze Profetas", que estão diante do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas do Campo (MG) são, de longe, o conjunto mais famoso. Esculpidos entre fins do século XVIII e início do XIX por Antônio Francisco Lisboa (o Aleijadinho), são parte do notável impulso para as artes, em particular no âmbito da arquitetura e da escultura principalmente de natureza sacra, que irrompeu nas Minas durante a fase mais significativa da extração aurífera colonial.

(*) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica, vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 361.


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domingo, 24 de junho de 2012

Como e por que a monarquia espanhola quis recuperar a Bahia, ocupada por holandeses em 1624

O título é gigantesco, Jornada dos Vassalos da Coroa de Portugal, Para se Recuperar a Cidade do Salvador, na Bahia de Todos os Santos, Tomada Pelos Holandeses, a Oito de Maio de 1624 e Recuperada ao Primeiro de Maio de 1625, mas não explica tudo - para se entender, de fato, essa obra, é preciso lê-la com cuidado, o que é incomum, já que linguagem e forma não se enquadram, pelos padrões de hoje, no que se classificaria como leitura agradável. Constitui-se, no entanto, em texto bastante revelador, não simplesmente sobre a guerra a que o título se refere, mas sobre os valores e costumes da época.
O autor se identifica como "Padre Bertolameu Guerreiro da Companhia de Jesus", tendo a obra sido impressa em Lisboa, por Mattheus Pinheiro, no ano de 1625. É, por isso, um testemunho absolutamente contemporâneo aos acontecimentos que relata. Cabe agora explicar seu contexto mais amplo, que não se prende apenas ao confronto na Bahia.
Desde 1580 estava Portugal agregado ao controle do monarca espanhol, o que significa que um só rei respondia pelas duas Coroas. Por suposto, à exceção dos que tinham razões pessoais para apoiá-la, a União Ibérica soava muito antipática aos portugueses. Entretanto, seguindo a linha de pensamento corrente, alardeava-se sempre uma submissão ao rei que, pela "vontade de Deus", exercia o mando (nesse momento, Sua Majestade atendia pelo nome de Filipe IV). Isso explica, de saída, o tom algo bajulatório da obra. Mas é também devido à União Ibérica que a armada que se enviou ao Brasil foi constituída por forças de Portugal, além das de Espanha e Nápoles, inegavelmente contribuindo para reforçar o potencial ofensivo da expedição.
Voltemos ao livro. Nele, destacam-se os feitos da nobreza lusa, sem dar quase nenhuma importância a eventuais proezas de soldados e marinheiros "comuns", o que não chega a ser grande surpresa, face aos costumes daqueles dias. Entretanto, por trás de um texto aparentemente tão bem comportado,  transparece a verdade que não se quer explicitar, e que vai além da exaltação de feitos militares. O que veremos a seguir são dois tópicos que exemplificam essa questão.
Primeiro, acaba-se explicando o real motivo (nos dois sentidos) do envio de forças que auxiliassem a retomada do controle português na Bahia:
"Porque fazendo-se guerra ao inimigo, de sorte que estivesse fechado na cidade que tomara, e se não estendesse ao recôncavo da Bahia, porque nisso podiam perigar as grossas fazendas dos engenhos de açúcar, de que tantos proveitos recebem as alfândegas de Sua Majestade, importava favorecer os que no campo acompanhavam aos capitães, ou eleitos pela Câmara da Bahia..." (¹)
Segundo, para surpresa dos leitores de hoje e nenhuma dos antigos, o autor diz que, diante na notícia da tomada de Salvador por holandeses, Filipe IV ordenou imediatas providências... religiosas, mandando castigar os pecados públicos, conforme se vê em palavras do próprio monarca:
"Tendo consideração ao muito que Deus nosso Senhor se ofende de que haja descuidos no castigo dos pecados públicos e escandalosos, e quão necessário é tratar-se mui de propósito de ter mão no rigor da divina justiça, para que levante os castigos e disponha para maior seu serviço, bem comum da Igreja Católica e de meus reinos e vassalos o fim de meus intentos e particularmente esta empresa do socorro do Brasil, me pareceu encomendarmos muito que com toda a aplicação e cuidado devido vos informeis dos pecados públicos, e averiguando-se, se proceda com os culpados na mesma conformidade, advertindo que com vo-lo ordenar assim, descarrego a obrigação de minha consciência, e espero que cumprireis com a vossa, de maneira que se dê inteira satisfação à justiça com exemplo e emenda." (²)
Ou seja, o raciocínio de Sua Majestade poderia ser mais ou menos este: "Muito bem, temos problemas. Os holandeses, meus inimigos, invadiram o Brasil. Isso deve ser castigo de Deus. Portanto, antes de enviar tropas, temos que fazer a Inquisição agir". Que pensar de tudo isso?
Autores de renome já têm demonstrado que a monarquia de Castela (e não apenas ela) serviu-se fartamente da Inquisição para fins políticos, com o objetivo de manter, sob terror, um maior controle da população, e é bem provável que o rei tenha, sob esse aspecto, recebido conselhos dos religiosos que pululavam na Corte; entretanto, vale lembrar que, no século XVII, a noção de Estado laico, de absoluta separação entre Estado e Igreja, era um fenômeno ainda praticamente desconhecido. Segue-se que a lógica adotada era muito diferente da que se espera na atualidade. Afinal, como supor laicidade no contexto de uma monarquia de direito divino, se até agora há que tenha sérias dificuldades em separar as questões de Estado daquelas que interessam ao âmbito religioso? Que se vejam alguns "episódios" bem recentes na Conferência de Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20!
Embora anteriormente já tivesse seus defensores, foi somente no século XIX que o conceito de que os cidadãos podiam ter suas concepções religiosas mas que o Estado devia ser laico começou a lançar raízes no mundo ocidental, no rastro da afirmação de uma série de outras novidades ligadas ao exercício de direitos individuais. Fica, pois, entendido, que a política de Filipe IV, conquanto nos pareça aberrante, era de uma perfeita coerência em relação ao que se entendia por governo na Corte espanhola de seus dias. Estranho seria se fizesse qualquer outra coisa.

(1) Jornada dos Vassalos da Coroa de Portugal. Lisboa: Mattheus Pinheiro, 1625, p. 12.
(2) Ibid., p. 9.


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quinta-feira, 21 de junho de 2012

Revoltas "nativistas" no Brasil Colonial

Nunca é fácil ir contra uma opinião sedimentada, por ser já muito repetida, ainda que de escassos fundamentos. Esta postagem, como se verá, intenta justamente essa tarefa difícil.
Após a Independência, intelectuais brasileiros viram-se às voltas com uma questão séria, a de escrever a História do Brasil sob a perspectiva de nação independente, e não de colônia anexa a uma monarquia europeia. Compreende-se que, nesse quadro, houvesse uma certa busca por fatos que, de algum modo, caracterizassem o que se poderia chamar de nascimento do sentimento nacional, do "ser brasileiro".
Os colonos que viviam no Brasil, desde o início da ocupação do território por portugueses até cerca de meados do século XVIII, consideravam-se portugueses, independente de haverem ou não nascido no Reino. Era, pois, uma tarefa ingrata, essa de buscar raízes nacionalistas onde elas provavelmente não existiam. Ainda assim, chegou-se a uma lista um tanto variável de movimentos que foram rotulados como "revoltas nativistas", lista essa na qual costuma-se incluir, entre outras, em sequência cronológica, a Aclamação de Amador Bueno (1641, em São Paulo), a Revolta de Beckman (1684, no Maranhão), a Guerra dos Emboabas (nos anos 1708 e 1709, nas Minas), a Guerra dos Mascates (entre 1710 e 1711, em Pernambuco) e a Revolta de Filipe dos Santos (Vila Rica, 1720), guindada esta última à condição de prefácio à Inconfidência Mineira. Como já assinalei, há outros movimentos eventualmente classificados como nativistas, mas são esses os mais recorrentes.
Pois bem, meus leitores, daremos agora uma rápida vista às revoltas mencionadas.

A Revolta de Beckman, ainda que calcada na luta contra o monopólio de uma companhia portuguesa de comércio, tinha como proposta o combate à presença e atuação de jesuítas, que eram tidos não apenas como concorrentes em atividades de comércio (das chamadas "drogas do sertão"), mas como um obstáculo à escravização de indígenas, uma prática que, além de comum naqueles dias, era julgada indispensável - afinal, na lógica dos colonizadores, alguém tinha que fazer o trabalho pesado!

A Guerra dos Mascates alinhavou-se pela ojeriza dos de Olinda contra os de Recife - entenda-se, entre fazendeiros produtores de açúcar (de Olinda) e comerciantes de açúcar e outros artigos (de Recife), parecendo, esses últimos, na opinião dos primeiros, terem uma aptidão toda especial para lucrar com a exploração dos senhores de engenho. Verdade seja dita, em Olinda havia muitos fazendeiros "brasileiros", e em Recife, muitos dos comerciantes eram portugueses natos - mas nesse tempo os nascidos no Brasil consideravam-se portugueses, e a questão era mais econômica e de precedência entre as duas povoações do que uma luta entre gente do Brasil e gente do Reino; além disso, havia comerciantes "brasileiros", também, e, por isso, não menos "mascates", na opinião dos fazendeiros. O problema tornou-se sério quando as duas belicosas partes resolveram pegar em armas para, tentando controlar o governo, resolver a questão, ainda que isso significasse eliminar os desafetos.

A Guerra dos Emboabas foi travada entre paulistas, descobridores das minas, e os "outros", fossem quem fossem, portugueses ou nascidos em outras regiões do Brasil que não em São Paulo. Paulistas julgavam-se, com uma ponta de razão, com direitos especiais nas lavras, como seus legítimos descobridores, e tinham quaisquer outros como "forasteiros", independente de sua origem.

A chamada Revolta de Filipe dos Santos, em Vila Rica, 1720, foi uma luta de mineradores contra autoridades que representavam a Coroa. A causa? O estabelecimento das Casas de Fundição, nas quais todo o ouro que se extraísse deveria ser obrigatoriamente transformado em barras e quintado. Ora, por que não queriam os mineradores essas Casas de Fundição? Simplesmente porque aí seriam cobrados os impostos (os Reais Quintos...) que não se desejava pagar e suspeitava-se também de que, ao efetuar a transformação em barras, os funcionários acabariam por apropriar-se indevidamente de parte do ouro com que trabalhavam. Essa revolta deve ser entendida no contexto do farto descaminho de metal precioso a que estavam os mineradores habituados. O líder da revolta, aliás, era português.

Finalmente, resta dizer que a mais independentista das revoltas foi justamente aquela que não aconteceu: a Aclamação de Amador Bueno. Dentro do cenário da restauração da monarquia lusa após a União Ibérica, gente de ânimos exaltados, provavelmente com o incentivo de paulistas de origem espanhola, tentou, em São Paulo, aclamar Amador Bueno, um rico fazendeiro, como seu rei - eis aí um movimento que, esse sim, poderia ser taxado de tentativa de independência. Sucede que este senhor, que por certo tinha alta consideração por preservar a cabeça devidamente encaixada no pescoço, recusou-se terminantemente a tal dignidade, chegando, para isso, a fugir, segundo relatos mais ou menos contemporâneos, para refugiar-se no mosteiro de S. Bento, sempre dando vivas ao rei português, de quem se considerava o mais leal dos servidores. E acabou por aí a tal Aclamação.

Meus leitores que, em seus anos escolares, talvez tenham lutado para memorizar as rebeliões nativistas com suas respectivas datas, devem estar um tanto decepcionados. Sei, também, que é perfeitamente possível que adeptos de opiniões contrárias não achem graça nenhuma nesta postagem. Tudo isso, no entanto, é já perfeitamente sabido há muito tempo e nunca é demais lembrar que, se a conjuntura histórica pós-Independência forjou o rótulo de nativista para esses movimentos, não é tarde para reavaliá-los em uma perspectiva menos apaixonada, que lhes respeite as verdadeiras dimensões, sem a necessidade de fabricar, a ferro e fogo, fatos que jamais aconteceram.


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terça-feira, 19 de junho de 2012

Para que serve o futebol?

Ao longo das duas primeiras décadas do Século XX o futebol, no Brasil, passou por uma transformação significativa: deixou de ser mera curiosidade atlética, praticada por uns poucos, geralmente trabalhadores de origem britânica, para assumir o papel de verdadeira mania, que arrastava multidões de adeptos, torcedores ou curiosos para as imediações dos gramados onde a bola rolava em partidas cada vez mais disputadas. Surgiam as primeiras equipes de sucesso e os jogadores de destaque ocupavam espaço nas rodas de bate-papo e nas páginas de jornais e revistas.
Toda essa movimentação em torno do esporte provocou uma certa controvérsia nos meios intelectuais (¹). Havia quem visse o futebol como um novo meio de educar a juventude, incentivar o desenvolvimento físico, valorizar a cooperação e o trabalho em equipe, levar ao gosto pela superação de adversidades. Por outro lado, alguns detestavam a nova mania de chutar uma bola, tendo-a por deselegante e violenta, uma verdadeira perda de tempo que afastava homens feitos de ocupações supostamente mais nobres. Havia até quem apostava que o futebol não passaria de um modismo incapaz de criar raízes no Brasil, sob a justificativa de que a "índole nacional" não era afeita a glórias coletivas, privilegiando, antes, os triunfos do indivíduo...
Não é preciso que eu diga, aqui, qual dos pontos de vista triunfou. Entretanto, na época, uma publicação paulistana (²) encarregou-se de oferecer uma ideia da utilidade do futebol, mesmo para quem, no Brasil ainda predominantemente rural daqueles dias, achava que melhor coisa era mandar a rapaziada gastar as energias trabalhando duro na lavoura do que correndo como loucos pelos gramados em busca de goals. Veja abaixo, leitor, qual foi a sugestão oferecida.


(1) Veja, sobre isso, as postagens:
(2) A VIDA MODERNA, Ano IX, nº 231, 13 de agosto de 1914. 


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domingo, 17 de junho de 2012

Dias de gala e feriados no Império do Brasil

"Oh! Grandes e soberbos coches! Como ele gostava de ir esperar o Imperador, nos dias de grande gala, à porta do paço da cidade, para ver chegar o préstito imperial, especialmente o coche de Sua Majestade, vastas proporções, fortes molas, finas e velhas pinturas, quatro ou cinco parelhas guiadas por um cocheiro grave e digno! Outros vinham, menores em grandeza, mas ainda assim tão grandes que enchiam os olhos."
                                                                                                     Machado de Assis, Quincas Borba

Houve quem lamentasse, após a proclamação da República, o fim de todas aquelas celebrações com longos cortejos no Paço Imperial, cheios de pompa, que a gente da Corte corria a ver e que enchiam os olhos dos visitantes que, pela primeira vez, assistiam a tal espetáculo. Eram os dias de Grande Gala que, no Segundo Reinado, estavam assim distribuídos, ao longo do ano, pela ordem (¹):

1º de janeiro - Cumprimentos ao Imperador pelo Ano Novo.
9 de janeiro - Dia do Fico.
14 de março - Aniversário da Imperatriz D. Teresa Cristina.
25 de março - Data do juramento da Constituição imperial.
7 de abril - Abdicação de D. Pedro I em favor de seu filho, D. Pedro II.
5 de maio (²) - Abertura dos trabalhos anuais da Assembleia Geral Legislativa.
23 de julho - Aniversário da aclamação do Imperador.
29 de julho - Aniversário da Princesa Isabel, filha do Imperador D. Pedro II.
4 de setembro - Aniversário de casamento do Imperador D. Pedro II.
7 de setembro - Independência do Brasil.
15 de outubro - Dia do nome (³) da Imperatriz.
19 de outubro - Dia do nome (³) do Imperador.
2 de dezembro - Aniversário do Imperador D. Pedro II.

Havia também, no calendário, os dias de Pequena Gala, datas consideradas menores que eram celebradas com cortejo na sala do Paço de São Cristóvão. Ocorriam nos seguintes dias:

11 de março - Aniversário da Princesa Januária, irmã do Imperador D. Pedro II.
13 de julho - Aniversário da princesa Leopoldina, filha do Imperador D. Pedro II.
18 de julho - Aniversário da sagração e coroação do Imperador D. Pedro II.
19 de julho - Aniversário de D. Luís, Conde d'Áquila, marido da princesa Januária.
31 de julho - Aniversário de D. Amélia, Duquesa de Bragança, segunda esposa de D. Pedro I.
2 de agosto - Aniversário de D. Francisca, princesa de Joinville, irmã do Imperador D. Pedro II.

Vale lembrar que essas datas não eram feriados nacionais; eram, sim, dias de celebração na Corte do Rio de Janeiro. Os feriados, nos quais não funcionavam repartições públicas, eram 25 de março, 7 de setembro e 2 de dezembro. As províncias costumavam ter também suas festividades nas datas respectivas em que haviam aderido à independência do Brasil. Isso tudo, é claro, além dos domingos e "dias santos de guarda", aliás bastante numerosos.

(1) Para as datas comemoradas, veja-se: Folhinha de Modinhas Para o Anno Bissexto de 1868. Rio de Janeiro: Antônio Gonçalves Guimarães & Cia, pp. 95, 96 e 97.
(2) Única data de Grande Gala em que não havia cortejo no Paço.
(3) Além da data de nascimento, era uso comemorar a data do santo do calendário católico cujo nome fora dado à pessoa no batismo. No caso da Imperatriz, a data era 15 de outubro, por ser dia de Santa Teresa de Jesus. Para o Imperador, o Dia do Nome era 19 de outubro, dia de São Pedro de Alcântara.


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quinta-feira, 14 de junho de 2012

Superlotação hospitalar, um problema muito antigo

Basta correr os olhos pelos jornais, é quase todo dia a mesma coisa: um bebê que morre por não haver UTI neonatal disponível, um idoso que acaba morrendo na entrada do hospital, sem receber qualquer atendimento, gente espalhada em macas nos corredores das unidades hospitalares por falta de leitos, médicos e outros profissionais da saúde sobrecarregados com longas jornadas de trabalho e um número de pacientes a atender muito acima do razoável.
Novidade? Nenhuma. Exclusividade dos nossos dias? Não! A foto abaixo (*) é de 1914. Diz a legenda original: "Santa Casa - Interior de uma das enfermarias do importante estabelecimento de caridade, onde existe tal acumulação de doentes, que estes são estendidos pelo chão, nos intervalos dos leitos."


Sem muitas palavras mais, uma observação importante: Os grandes problemas cuja solução é de interesse público, se não resolvidos, ficam sempre maiores à medida que a população aumenta. E como poderia ser diferente?

(*) A CIGARRA, 6 de maio de 1914.


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terça-feira, 12 de junho de 2012

Uma comparação entre os jogos olímpicos da Grécia e os espetáculos de gladiadores em Roma

Não há dúvida de que tanto os Jogos Olímpicos celebrados pelos gregos da Antiguidade quanto os espetáculos circenses em Roma envolviam habilidades atléticas. Mas as semelhanças não vão além disso.
Os atletas gregos eram, necessariamente, jovens de condição livre, quase sempre integrantes da elite de suas respectivas cidades-Estados. Já os gladiadores romanos eram, em sua imensa maioria, escravos, que lutavam não porque queriam, mas porque eram obrigados a isso, e o fato de que a insanidade de alguns imperadores tenha levado à exigência de que membros de famílias senatoriais eventualmente também lutassem, não muda, em absoluto, a regra geral. Dessa cruel e fundamental diferença decorrem muitas outras. Veremos algumas.
Se é verdade que em Olímpia as celebrações ocorriam em honra de Zeus, em Roma, ainda que divindades fossem invocadas, os espetáculos realizavam-se para fortalecer a imagem pública de líderes políticos, sendo apreciados, mesmo antes do Império, sempre que se queria entreter e agradar a população. Júlio César foi um mestre em gastar rios de dinheiro para divertir as massas que o apoiavam. Lutas e outras competições também ocorriam para comemorar algum acontecimento importante (a morte de alguém famoso, por exemplo) e, principalmente, para fazer com que as multidões sem trabalho, atentas a espetáculos violentos mas controlados, "esquecessem" a ideia de insurgir-se contra as autoridades.
Não se deve imaginar que as Olimpíadas eram competições cavalheirescas, com algum lema que sugerisse que, em última instância, o importante mesmo era estar lá para honra dos deuses, independente do resultado das provas. Nada disso. As modalidades incluíam lutas violentíssimas, como era o caso do pancrácio (quebra-ossos!) e, não raro, atletas morriam durante as provas. Mas aqui aparece outra distinção fundamental entre o que acontecia em Olímpia e os jogos de Roma: se um competidor morria nos Jogos Olímpicos, sua memória era honrada como sendo ele um herói, pois preferira perder a vida a ser derrotado; nos circos romanos, os gladiadores se engalfinhavam tentando matar o oponente porque esse era o único modo de vencer e, assim, obtendo uma boa sequência de vitórias, recuperar, talvez, a liberdade. Nesse caso, o que morria era um fracassado.
Finalmente, a despeito das lutas sangrentas, os Jogos Olímpicos incluíam diversas modalidades nas quais buscava-se, sob a severa vigilância dos juízes, determinar quem era o verdadeiro campeão, aquele que melhor retratava os ideais de perfeição tão valorizados pelos gregos, ideais esses que incluíam a capacidade atlética e a força mental. Por isso, pode-se dizer que no herói olímpico, ao menos em teoria, sintetizava-se toda a proposta de formação de verdadeiros cidadãos. O circo romano, por sua vez, era o lugar em que a população em geral era sutilmente afastada de questões políticas nas quais os poderosos não queriam que se intrometesse. Era o palco da alienação, onde o sangue dos competidores mortos por seus oponentes substituía, de algum modo, o de governantes corruptos e incapazes, que divertiam as multidões para evitar uma revolta em larga escala, num momento em que um lampejo de lucidez viesse a esclarecer as verdadeiras causas das desgraças do Império.


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domingo, 10 de junho de 2012

Colonos, funcionários públicos coloniais, baiacus

Que juízo fazia Nuno Marques Pereira, autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América (¹), a respeito de colonos que, vindo ao Brasil, alcançavam alguma posição, principalmente por ocupar cargo público?
Resposta simples: comparava-os a baiacus. O quê? Sim, a mesma irritação que demonstrava com padres que pouco caso faziam do sacerdócio (veja a postagem anterior) era também direcionada a tais colonos, embora dessa vez expressa com algum humor. Que, levado a sério, não tinha graça nenhuma.
O padre Nuno Marques Pereira começa por uma descrição dos baiacus, feita à moda da época e, por isso mesmo, com as limitações dos conhecimentos científicos que lhe eram disponíveis. Vejamos:
"São estes tais como uma casta de peixes que há neste Brasil, e lhes chamam baiacus, entre os quais há uns que têm espinhos. São estes peixes peçonhentíssimos, por terem no fel o mais refinado veneno que há no mundo, e que ainda que algumas pessoas os comem, é com muita cautela. Mas vamos à comparação. Costumam estes peixes, assim como os pescam e tiram da água, começarem a inchar, e fazem-se como bolas. Os de espinhos, não há quem pegue neles, pelo risco das agudas pontas. Incham de sorte que assim morrem às vezes dando um grande estouro. Ocupam-se estes peixes em mariscar pelas margens dos rios e mangais, e só quando se veem em terra é que incham."
Ora, dirão os leitores, e que é que isso tem a ver com os senhores colonos e funcionários públicos? A explicação não tarda:
"Assim são os baiacus humanos, ou desumanos: tanto que se veem nas praias e terra do Brasil, logo começam a inchar, e se lhes dão algum ofício ou posto, fazem-se baiacus de espinhos, não há quem se chegue junto deles. E se dizem a um destes: "Basta, Baiacu, porque podes rebentar", ou se lhes tocam, cada vez incha mais."
E o padre-escritor conclui:
"Bem sei que este exemplo ou moralidade é mui humilde, porém como é tão vulgar, cada qual o tome no sentido mais acomodativo." (²)
Em linguagem de hoje, talvez escrevesse: Que vista a carapuça aquele que a achar de bom tamanho.

O Autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América comparou colonos e
funcionários coloniais a baiacus... (³)

(1) Essa obra teve, ao longo do século XVIII, várias edições, sendo das mais lidas e admiradas no Brasil da época, conforme se explica na postagem "Compêndio Narrativo do Peregrino da América, um best-seller do Brasil Colonial".
(2) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, pp. 20 e 21.
(3) Os baiacus desta postagem pertencem ao Museu do Mar, no Aquário Marinho de Ubatuba, SP. Se passar pelo Litoral Norte, não deixe de visitar.


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quinta-feira, 7 de junho de 2012

Compêndio Narrativo do Peregrino da América, um best-seller do Brasil Colonial

Dá para imaginar um best-seller no Brasil de população quase toda analfabeta do século XVIII? Pois houve, desde que respeitadas as proporções. O título era Compêndio Narrativo do Peregrino da América; seu autor, o padre Nuno Marques Pereira. Sobre esse padre-escritor, pouco se sabe. Pairam dúvidas até sobre sua origem, se de Portugal, se do Brasil. Já quanto ao conteúdo do livro, propunha-se, ao narrar o trajeto de um peregrino desde a Bahia até as minas de ouro, ir apresentando lições de caráter moral e religioso, na intenção de corrigir os péssimos costumes que, segundo o autor, eram amplamente seguidos no Brasil.
Para que os leitores deste blog possam fazer uma ideia da natureza do livro, selecionei alguns trechos (*) sobre três tópicos, que podem ser lidos logo abaixo.

Árvores frutíferas da América

"Comecei a seguir minha jornada por entre amenos campos e copados arvoredos, que com o brando terral faziam agitação às flores, que exalando fragrantes aromas me suavizavam o sentido do olfato; e para recreação da vista me lisonjeavam o sentido do ver tantas árvores floridas, sem mais cultura que a fábrica da natureza que as havia aperfeiçoado, e muitas com vistosos pomos, de que participei [...]."

Castigo de um avarento

"Sabei que o mísero não só nega a seu próximo o que lhe pede, mas também a si mesmo o de que necessita, porque em lhe faltando o que tem, não há quem dele se compadeça. Digo isto pelo que vi acontecer a um homem, que navegava em um seu barco das Vilas do Sul para a Cidade da Bahia. Costumava este entrar primeiro pela barra de Jaguaripe, quando levava na sua embarcação farinhas para vender na cidade, e por mais que lhe pedissem os moradores pobres daquele rio que lhes vendesse algumas para seu sustento, representando-lhe suas necessidades, nunca lhas queria vender. Sucedeu que vindo em certa ocasião entrando pela mesma barra, como esta é arriscada e de perigo, pelos bancos de areia que tem, deu o barco em cima de uma coroa. E como se visse naquele perigo, começou a bradar, e ainda que os que estavam em terra o ouviram, lhe não quiseram acudir, por saberem que era a embarcação daquele miserável, e ali se desfez e perdeu toda a carga que trazia."

Sobre o relaxamento na espiritualidade por parte do clero no Brasil

"Porque está hoje o mundo (e principalmente este Estado do Brasil) em tais termos, que mais parecem alguns sacerdotes mercadores-negociantes que Ministros de Deus e Curas de almas. E se não, vede o que está sucedendo nos tempos presentes. Propõe-se um clérigo a qualquer igreja, e a primeira coisa que procura é saber o quanto rende cada ano e o que tem de benesses, se são ricos os fregueses e se dão boas ofertas. Sendo que só deviam procurar se havia bons paramentos na igreja e se eram devotos e zelosos os fregueses de obrar bem no culto divino, e quando muito, saber se era sítio sadio e se havia bom passadio do sustento corporal."

É obra, vê-se, de religiosidade intensa mas algo ingênua; na linguagem, resvala com frequência nos exageros típicos do Barroco; o estilo é, muitas vezes, prolixo. Que haveria, pois, nesse livro, para alcançar sucessivas edições? Diante do número reduzido de leitores potenciais entre a população alfabetizada, presume-se que fosse lido em voz alta, para entretenimento também dos que ouviam, em muitas casas, à luz de velas ou de candeias a óleo de baleia, nas longas noites coloniais. Que fazia sua popularidade?
À parte o fato de que, por sua temática, devia eventualmente ser recomendado tanto do púlpito quanto do confessionário, tenho um palpite de que interessava aos leitores e ouvintes porque tratava de coisas do Brasil, não da Europa. Era a descrição da natureza exuberante, que conheciam muito bem, as questões políticas e sociais que pontuavam o quotidiano na Colônia, o relacionamento entre as várias camadas sociais, as questões ligadas aos direitos e obrigações de senhores e escravos, a vida na cidade da Bahia, com seus usos, costumes, (i)moralidade, burocracia, criminalidade, ao lado de vistosas festas religiosas, não exatamente favoráveis à introspecção que nosso padre-escritor propunha, mas que caíam facilmente no gosto da população, a exaltação à coragem e virtude de quem deixava Portugal para vir colonizar o Brasil. Contraditório? Talvez, mas quanto mais de contraditório não houve nos tempos da colonização?

(*) Seguiu-se a edição de 1731. Conforme é pratica neste blog, os trechos citados foram transcritos na ortografia atual.


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terça-feira, 5 de junho de 2012

A expansão da malha ferroviária e os confrontos com a população indígena

A "marcha do café", nome que se deu à expansão da área em que esse produto era cultivado, indo do Vale do Paraíba à região central do Estado de São Paulo e, depois, a pontos ainda mais distantes, somente foi possível porque a expansão da malha ferroviária permitia que as safras fossem escoadas em direção ao porto de Santos, de onde eram enviadas para diversos países. Se não fosse assim, o limite para a área cultivável não seria muito elástico, porque, na época, antes que as ferrovias se implantassem, tudo o que se produzia para exportação conduzia-se aos portos nas costas de muares, em tropas, por isso, geralmente numerosas. Ora, quão longe se poderia ir nessas condições? Muito provavelmente, não muito além do que a região onde estava situada a fazenda Ibicaba, grande centro produtor de café (¹).
As ferrovias, a partir das últimas décadas do século XIX, mudaram tudo. Se a terra e o clima fossem favoráveis, podia-se ir cada vez mais longe, produzindo muito, muito café - o que, aliás, contribuiu para a desvalorização do produto, mas isso já é outra questão. Que outro impedimento poderia haver?
Havia. É que as terras mais a oeste eram habitadas. Habitadas por povos indígenas, que iam, obviamente contra sua vontade, sendo empurrados rumo ao interior, ao mesmo tempo em que, por várias razões, sua população decrescia. A revista carioca O Malho referiu-se, com sarcasmo, a esse "fenômeno" em uma edição datada de 22 de setembro de 1906 (²), conforme se pode ver abaixo:


Jorge Tibiriçá,
Presidente estadual entre
1904 e 1908. (⁴)
Cabem, por suposto, algumas explicações. Houve confrontos entre os índios e os  que trabalhavam para expandir a área cultivada, na tentativa de expulsar os primeiros (um mapa da Império chegara a  referir-se ao Oeste geográfico da então Província de São Paulo como sendo habitada por "indígenas ferozes"). O "chefe Tibiriçá" do texto de O Malho é uma referência ao Presidente estadual (³) Jorge Tibiriçá que comandava o Estado de São Paulo nesta fase de expansão tanto das ferrovias quanto da lavoura cafeeira e de outros cultivos agrícolas. Expansão feita, muitas vezes literalmente, a ferro e fogo. Custou também a vida de uma multidão de indígenas, dizimados não apenas pelas balas das armas dos colonos, mas também por enfermidades que lhes eram fatais, como a varíola, por exemplo, em epidemias que não eram meros acidentes. Um autêntico genocídio.

(1) Na época, nos limites de Limeira e Rio Claro, atual município de Cordeirópolis, SP.
(2) O MALHO, Ano V, nº 210, 22 de setembro de 1906.
(3) Os governadores de Estado eram então chamados de presidentes estaduais.
(4) VIDA MODERNA, Ano II, números 29 e 30, 25 de dezembro de 1907.


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domingo, 3 de junho de 2012

O Caminho Novo das Minas

Devido às dificuldades do Caminho Velho das Minas, principalmente no que se refere à segurança para o transporte dos "Reais Quintos", o governo português tinha grande interesse em que se abrisse uma nova rota, que fosse sair diretamente no Rio de Janeiro. De grande parte disso encarregou-se Garcia Rodrigues Pais que, como se sabe, era filho do famoso "caçador de esmeraldas", o bandeirante Fernão Dias Pais. Garcia Rodrigues conhecia bem a área, pois a percorrera em companhia do pai. Queria, é claro, obter vantagem com o trabalho, mediante a cobrança de pedágio na passagem pela nova trilha.
Trilha? Sim, no início era apenas uma trilha, a muito custo aberta em meio à vegetação. Nesse tempo não havia máquinas que pudessem auxiliar na pesada tarefa, de modo que uma multidão de escravos, tanto indígenas quanto de origem africana, deve ter despendido muito suor em cortar árvores, roçar o mato, cavar o terreno, nivelar obstáculos.
Dessa trilha por terra deixou-nos Antonil um importante relato, que dará aos meus leitores a oportunidade de observarem o quanto era complicada a situação de quem viajava pelo interior do Brasil no início do século XVIII: há, no roteiro, poucos nomes de vilas ou cidades, ao contrário do que acontecia no Caminho Velho, que passava por localidades já bem conhecidas. Sendo uma nova rota, é compreensível que, ao longo do trajeto, ainda não existisse muita comodidade para quem viajava, apenas alguns pousos de tropeiros, precários ao extremo, que pouco a pouco iam surgindo. Entretanto, é escusado dizer que muitos desses modestos pousos e mesmo fazendas onde se podia fazer algum abastecimento vieram a ser, mais tarde, localidades de importância.
Pelo que diz Antonil, havia duas possibilidades de saída:
a) "Partindo da cidade do Rio de Janeiro por terra com gente carregada e marchando à paulista, a primeira jornada se vai a Irajá, a segunda ao Engenho do Alcaide-Mor Tomé Corrêa, a terceira ao Porto do Nóbrega no rio Iguaçu, onde há passagem de canoas e saveiros, a quarta ao sítio que chamam de Manuel do Couto." (¹)
b) "E quem vai por mar em embarcação ligeira, em um dia se põe no porto da Freguesia de Nossa Senhora do Pilar, e outro, em canoa, subindo pelo rio Morobaí acima, ou indo por terra, chega pelo meio-dia ao referido Sítio do Couto." (²)
Como se vê, as duas possibilidades iam sair no Sítio do Pouso. A partir daí, o caminho era um só. Prossegue Antonil:
"Deste se vai à Cachoeira do Pé da Serra, e se pousa em ranchos. E daqui se sobe à Serra, que são duas boas léguas, e descendo o cume, se arrancha nos Pousos que chamam Frios.
[...].
Travessia do rio Paraíba do Sul com auxílio de canoa,
de acordo com M. Rugendas (⁶)
Dos Pousos Frios se vai à primeira roça do Capitão Marcos da Costa, e dela, em duas jornadas, à segunda roça, que chamam do Alferes.
Da Roça do Alferes em uma jornada se vai ao Pau Grande, roça que agora principia e daí se vai pousar no mato ao pé de um morro, que chamam o Cabaru.
Deste morro se vai ao famoso Rio Paraíba, cuja passagem é em canoas. [...].
Daqui se passa ao rio Paraibuna em duas jornadas [...]. É este rio pouco menos caudaloso que o Paraíba, passa-se em canoa.
Do rio Paraibuna fazem duas jornadas à Roça do Contraste Simão Pereira [...]. Da roça do dito Simão Pereira se vai à de Matias Barbosa e daí à roça de Antônio de Araújo, e desta à roça do Capitão José de Sousa, donde se passa à roça do Alcaide-Mor Tomé Corrêa. Da roça do dito Alcaide-Mor se vai a uma roça nova do Azevedo, e daí à roça do Juiz da Alfândega Manuel Corrêa, e desta à de Manuel de Araújo. E em todas estas jornadas se vai sempre pela vizinhança do Paraibuna.
Da roça do dito Manuel de Araújo se vai à outra rocinha do mesmo.
Desta rocinha se passa à primeira roça do Senhor Bispo, e daí à segunda do dito.
Da segunda roça do Senhor Bispo fazem uma jornada pequena à Borda do Campo à roça do Coronel Domingos Rodrigues da Fonseca." (³)
A partir daí novamente havia duas opções de caminho, de acordo com o destino do viajante. Uma delas era o caminho do rio das Mortes:
"Quem vai para o Rio das Mortes passa desta roça à de Alberto Dias, daí à de Manuel de Araújo, que chamam da Ressaca, e desta à Ponta do Morro [...]. Deste lugar se vai jantar ao Arraial do Rio das Mortes." (⁴)
Outra opção era a estrada das Gerais:
"E quem segue a estrada das Minas Gerais, da roça sobredita de Manuel de Araújo da Ressaca do Campo vai à roça que chamam de João Batista, daí à de João da Silva Costa e desta à roça dos Congonhas, junto ao Rodeio da Itatiaia, da qual se passa ao Campo do Ouro Preto, onde há várias roças e de qualquer delas é uma jornada pequena ao Arraial do Ouro Preto, que fica mato dentro, onde estão as lavras do ouro." (⁵)
É quase desnecessário afirmar que era perfeitamente possível que viajantes acabassem por perder-se em meio à mataria. Por isso, as caravanas costumavam ter guias experientes, habituados às dificuldades do caminho e capacitados a conduzir homens e animais sertão adentro.
Vários autores da época asseveravam ser muito maior a produção de ouro do Brasil do que aquela que oficialmente se contava, a partir da cobrança dos Reais Quintos. Malgrado o trocadilho, fica, porém, a questão: se tal era o caminho, como impedir os descaminhos?

(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p 164.
(2) Ibid.
(3) Ibid., pp. 164 e 165.
(4) Ibid., pp. 165 e 166.
(5) Ibid. p. 166.
(6) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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