quinta-feira, 7 de junho de 2012

Compêndio Narrativo do Peregrino da América, um best-seller do Brasil Colonial

Dá para imaginar um best-seller no Brasil de população quase toda analfabeta do século XVIII? Pois houve, desde que respeitadas as proporções. O título era Compêndio Narrativo do Peregrino da América; seu autor, o padre Nuno Marques Pereira. Sobre esse padre-escritor, pouco se sabe. Pairam dúvidas até sobre sua origem, se de Portugal, se do Brasil. Já quanto ao conteúdo do livro, propunha-se, ao narrar o trajeto de um peregrino desde a Bahia até as minas de ouro, ir apresentando lições de caráter moral e religioso, na intenção de corrigir os péssimos costumes que, segundo o autor, eram amplamente seguidos no Brasil.
Para que os leitores deste blog possam fazer uma ideia da natureza do livro, selecionei alguns trechos (*) sobre três tópicos, que podem ser lidos logo abaixo.

Árvores frutíferas da América

"Comecei a seguir minha jornada por entre amenos campos e copados arvoredos, que com o brando terral faziam agitação às flores, que exalando fragrantes aromas me suavizavam o sentido do olfato; e para recreação da vista me lisonjeavam o sentido do ver tantas árvores floridas, sem mais cultura que a fábrica da natureza que as havia aperfeiçoado, e muitas com vistosos pomos, de que participei [...]."

Castigo de um avarento

"Sabei que o mísero não só nega a seu próximo o que lhe pede, mas também a si mesmo o de que necessita, porque em lhe faltando o que tem, não há quem dele se compadeça. Digo isto pelo que vi acontecer a um homem, que navegava em um seu barco das Vilas do Sul para a Cidade da Bahia. Costumava este entrar primeiro pela barra de Jaguaripe, quando levava na sua embarcação farinhas para vender na cidade, e por mais que lhe pedissem os moradores pobres daquele rio que lhes vendesse algumas para seu sustento, representando-lhe suas necessidades, nunca lhas queria vender. Sucedeu que vindo em certa ocasião entrando pela mesma barra, como esta é arriscada e de perigo, pelos bancos de areia que tem, deu o barco em cima de uma coroa. E como se visse naquele perigo, começou a bradar, e ainda que os que estavam em terra o ouviram, lhe não quiseram acudir, por saberem que era a embarcação daquele miserável, e ali se desfez e perdeu toda a carga que trazia."

Sobre o relaxamento na espiritualidade por parte do clero no Brasil

"Porque está hoje o mundo (e principalmente este Estado do Brasil) em tais termos, que mais parecem alguns sacerdotes mercadores-negociantes que Ministros de Deus e Curas de almas. E se não, vede o que está sucedendo nos tempos presentes. Propõe-se um clérigo a qualquer igreja, e a primeira coisa que procura é saber o quanto rende cada ano e o que tem de benesses, se são ricos os fregueses e se dão boas ofertas. Sendo que só deviam procurar se havia bons paramentos na igreja e se eram devotos e zelosos os fregueses de obrar bem no culto divino, e quando muito, saber se era sítio sadio e se havia bom passadio do sustento corporal."

É obra, vê-se, de religiosidade intensa mas algo ingênua; na linguagem, resvala com frequência nos exageros típicos do Barroco; o estilo é, muitas vezes, prolixo. Que haveria, pois, nesse livro, para alcançar sucessivas edições? Diante do número reduzido de leitores potenciais entre a população alfabetizada, presume-se que fosse lido em voz alta, para entretenimento também dos que ouviam, em muitas casas, à luz de velas ou de candeias a óleo de baleia, nas longas noites coloniais. Que fazia sua popularidade?
À parte o fato de que, por sua temática, devia eventualmente ser recomendado tanto do púlpito quanto do confessionário, tenho um palpite de que interessava aos leitores e ouvintes porque tratava de coisas do Brasil, não da Europa. Era a descrição da natureza exuberante, que conheciam muito bem, as questões políticas e sociais que pontuavam o quotidiano na Colônia, o relacionamento entre as várias camadas sociais, as questões ligadas aos direitos e obrigações de senhores e escravos, a vida na cidade da Bahia, com seus usos, costumes, (i)moralidade, burocracia, criminalidade, ao lado de vistosas festas religiosas, não exatamente favoráveis à introspecção que nosso padre-escritor propunha, mas que caíam facilmente no gosto da população, a exaltação à coragem e virtude de quem deixava Portugal para vir colonizar o Brasil. Contraditório? Talvez, mas quanto mais de contraditório não houve nos tempos da colonização?

(*) Seguiu-se a edição de 1731. Conforme é pratica neste blog, os trechos citados foram transcritos na ortografia atual.


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