quinta-feira, 30 de março de 2017

Espécimes animais que você nunca encontrará em um zoológico

Seria difícil exagerar o progresso na impressão de livros ao longo do Século XVI, tanto em quantidade como em qualidade. Embora ainda não fossem baratos, os livros impressos eram muito mais acessíveis que os belos exemplares medievais copiados à mão e repletos de iluminuras. Mais gente lia, mais autores escreviam e publicavam. O desenvolvimento da qualidade gráfica possibilitou o aparecimento de livros como ICONES ANIMALIVM QVADRVPEDVM VIVIPARORVM ET OVIPARORVM e ICONES ANIMALIVM AQVATILIUM IN MARI & DVLCIBVS AQVIS de Conrad Gesner, publicados em Zürich em meados do Século XVI, com centenas de ilustrações: nesse tempo, cada uma delas precisava ser preparada manualmente por um artista, para, depois, ser inserida na composição da respectiva página. 
Os livros em questão mostravam animais chamados "domésticos", que todo mundo conhecia, tais como bois, vacas, patos, galinhas, cabras, etc., e também centenas de peixes, além de animais considerados selvagens, como rinocerontes, elefantes e girafas, sobre os quais reinava grande curiosidade, já que pouca gente na Europa tivera ocasião de vê-los, durante alguma viagem. 
Além de toda essa bicharada, as obras incluíam, aqui e ali, alguns seres realmente exóticos (se é que podemos falar assim), cujas aparições havia quem relatasse como autênticas. Leitores, é até difícil explicar! Será melhor se passarmos imediatamente às imagens (¹), que falarão por si mesmas.

1. Nem mesmo o autor se atreveu a dar nome; o monstro teria sido capturado em Salzburg no ano de 1531.


2. Alguém sabe o que é isso? A cauda lembra o cangambá ou a jaratataca, mas leva os filhotes consigo, como os gambás. As semelhanças param aí. Gesner dizia que era um animal do Continente Americano. Leitores, se algum dia virem um desses, venham contar aqui no blog, sim?


3. A aparição deste animal teria sido registrada na Itália. Como está incluído no livro dos animais aquáticos, supõe-se que fosse um deles. Seria isso a representação infeliz de um otarídeo - leão-marinho ou lobo-marinho, talvez?


4. Dois semelhantes: o primeiro teria sido avistado em Roma em novembro de 1523; já o segundo ("demônio-marinho"), com direito a aparições na Bélgica (Antuérpia), Noruega e Alemanha, vinha acompanhado de referências a autores da Antiguidade que atestavam sua existência.



5. Hidras são cnidários de água doce, e não há nada de monstruoso nisso. Mas a hidra de Conrad Gesner era muito parecida com o venenosíssimo animal da mitologia grega - o texto alemão falava em "serpente aquática com sete cabeças" - e são sete mesmo, todas bastante humanoides...


Quem de vocês terá visto estes bichos em algum zoológico ou aquário? Será que alguém teve a ideia de capturar e dissecar qualquer deles? Os livros de Gesner traziam também o unicórnio, o peixe-monge e o peixe-bispo, personagens que já andaram frequentando este blog.
Hora de falar sério, leitores. O que estas criaturas estranhas nos mostram é que:
  • Havia, no Século XVI, muita curiosidade por saber o que existia em outras terras (lembrem-se de que os livros de Conrad Gesner foram publicados algum tempo depois do apogeu do Renascimento e das Grandes Navegações, e logo contavam com várias edições);
  • Não podemos descartar o fato de que autores e editores incluíssem coisas absurdas intencionalmente em suas obras, como uma espécie de isca para fisgar leitores crédulos e/ou curiosos;
  • A sede de conhecimento vinha, muitas vezes, acompanhada da falta de informações confiáveis, e até especialistas geniais, como era o caso de Gesner, ainda eram crédulos para supor a existência real dessas simpáticas criaturas - criadas pela imaginação, naturalmente.

No Brasil, um pouco mais tarde...

O jesuíta Simão de Vasconcelos escreveu, no Século XVII, em suas Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil:
"Monstros marinhos têm saído à costa, de cuja espécie, nem antes, nem depois sabemos que houvesse notícia em outra alguma parte do mundo. [...] Dos peixes-homens e peixes-mulheres vi grandes lapas junto ao mar, cheias de ossadas dos mortos; e vi suas caveiras, que não tinham mais diferença de homem ou mulher, que um buraco no toutiço, por onde dizem que respiram." (²)
Vejam só, leitores: não é que, afinal, apareceu uma testemunha ocular?!!!

(1) Para esta postagem seguiu-se a segunda edição das obras citadas, publicadas em Zürich por Christof Froshover em 1560; as imagens foram editadas digitalmente para facilitar a visualização neste blog.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, pp. 279 e 280.


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terça-feira, 28 de março de 2017

Escravos africanos em lugar de indígenas

A escravidão, no Brasil, foi de indígenas e de africanos. Desumana, em um e outro caso, como só ela pode ser. Os indígenas tinham nos missionários jesuítas valentes defensores, que se opunham à sua escravização. Os cativos de origem africana, não. Por quê?
O padre Antônio Vieira (¹), em uma de suas cartas, escreveu que calvinistas e luteranos eram menos hereges que paulistas, porque "enforcam a quem furta e fazem pagar a quem deve, e a seita pauliniana [sic] tudo isto está devorando sempre sem escrúpulo." (²)
Só é possível compreender perfeitamente o que Vieira queria dizer se duas coisas forem consideradas em relação aos jesuítas que empreendiam a catequese no Brasil: o desgosto em relação à chamada "heresia protestante" e o ódio aos paulistas que escravizavam indígenas. 
Não se deve pensar, entretanto, que a escravização da população nativa era fenômeno restrito a São Paulo. Em um documento atribuído a outro jesuíta, o padre José de Anchieta (³), pode-se ler esta observação, relacionada à Bahia e adjacências:
"[...] Já sabem [os indígenas] por todo o sertão, que somente gente que está nas igrejas, onde os padres residem, tem liberdade, que toda a mais é cativa (...)." (⁴)
Isso acontecia porque os missionários eram audazes em fazer frente aos colonizadores, quando o assunto era a escravização de indígenas ou qualquer outra ação que comprometesse sua catequese; em alguns casos, houve até rebeliões de colonos contra a presença da Companhia de Jesus, ao ponto de serem expulsos os padres, como aconteceu em São Paulo no ano de 1640.
Entretanto, observando o outro lado dessa história, veremos que a posição dos jesuítas em relação aos escravizados africanos e/ou de origem africana era muito diferente. Os próprios missionários tinham escravos a seu serviço, e não viam nada de errado em tal prática. Em uma carta enviada ao rei D. João III em 1551, o padre Manuel da Nóbrega (⁵) foi explícito em pedir escravos para o Colégio da Bahia:
"[...] Mande dar alguns escravos de Guiné à Casa [Colégio da Bahia], para fazerem mantimentos, porque a terra é tão fértil, que facilmente se manterão e vestirão muitos meninos, se tiverem alguns escravos que façam roças de mantimentos e algodoais [...]." (⁶)
Outro exemplo pode ser encontrado na sugestão feita pelo padre Antônio Vieira, tendo em vista a queixa persistente dos moradores do Maranhão, de que a catequese de indígenas resultava em falta de mão de obra para as lavouras:
"[...] Não podem haver ao presente outros meios mais certos e efetivos, que os de meter no dito Estado [do Maranhão] escravos de Angola [...].
[...].
Comprem e remetam ao Maranhão duzentos escravos, que devem ser homens e mulheres em ordem à propagação [sic] [...]." (⁷)
Como explicar a diferença no trato dos jesuítas com indígenas e africanos? Nos dois casos, a resposta está na catequese. Os missionários da Companhia de Jesus queriam os indígenas "livres", para que, reunidos em aldeias sob a vigilância dos padres, fossem submetidos a doutrinação. Entretanto, apoiavam a escravização de africanos porque entendiam que, vindo ao Brasil, estariam ao alcance da catequese. Por isso, houve até quem julgasse que, em última análise,  a escravidão era um benefício que se fazia aos africanos...
Uma ideia de como era feita a doutrinação de escravizados, fossem eles indígenas ou africanos, pode ser obtida por esta descrição, proveniente de outro relato de Anchieta: 
"O método que se adota nestas missões é ensinar e explicar a doutrina cristã aos índios e africanos reunidos em um lugar, batizar, ouvir-lhes as confissões, separá-los das concubinas e sujeitá-los às leis do matrimônio, o que nesta Província é trabalho quotidiano, necessário e utilíssimo à salvação das almas." (⁸)
A que conclusão chegamos, leitores? No que se refere à escravidão de africanos, por séculos houve bem pouca gente que atinasse com sua imoralidade, mesmo dentro de contextos estritamente religiosos. Nos chamados países protestantes, o movimento abolicionista precisou lutar contra quem, com base na Bíblia, defendia a manutenção da ordem escravista. Interessante é que a mesma fonte era citada por quem queria acabar de vez com a escravidão. Não foi diferente onde o catolicismo predominou (⁹), o que vale, certamente, também para o Brasil. 

(1) 1608 - 1697.
(2) VIEIRA, Pe. Antônio S. J.  Cartas vol. 2isboa Ocidental: Oficina da Congregação do Oratório, 1735, p. 474.
(3) 1534 - 1597.
(4) ANCHIETA, Pe. Joseph de S. J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 378.
(5) 1517 - 1570.
(6) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2, 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, pp. 307 e 308.
(7) VIEIRA, Pe. Antônio S. J.  Op. cit. Lisboa Ocidental: Oficina da Congregação do Oratório, 1735, pp. 176 e 177.
(8) ANCHIETA, Pe. Joseph de S. J. Op. cit. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 399.
(9) Para quem tiver interesse no assunto, poderá ser útil correr os olhos por uma obrinha de muita importância, escrita por José Bonifácio de Andrada e Silva, e que tem por título A Abolição.


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quinta-feira, 23 de março de 2017

As virtudes dos sete reis de Roma

Como encontrar virtudes em quem não parece ostentar nenhuma delas? Pois foi exatamente isso que fez Aneu Floro, historiador contemporâneo do imperador Adriano (¹). 
Todo mundo sabe que os primeiros romanos estavam longe de ser gente muito recomendável; eram desordeiros que contribuíam para transtornar a vida de seus vizinhos na Península Itálica. Pouco se conhece quanto ao seu modo de vida, e, como afirma um antigo provérbio, "quando a História guarda silêncio, as fábulas começam a falar". Neste caso, as fábulas não só falam, mas tagarelam com notável loquacidade.
Existe certo consenso de que a povoação que deu origem a Roma deve ter começado como uma humilde aldeia de pastores, às margens do Tibre, em algum momento entre o ano 1000 e o ano 800 a.C.; a fundação "oficial" da cidade, porém, reconhecida pelos antigos romanos, teria acontecido em 753 a.C., por obra dos gêmeos Rômulo e Remo, aqueles que, jogados no rio quando bebês, não afundaram e foram alimentados por uma loba... Aí está, portanto, uma fábula falante. Rômulo teria sido o primeiro rei e, depois dele, vieram outros seis. Alguns fatos associados aos reis de tempos remotos são bastante duvidosos, mais parecendo lendas (²), já que quase nada existe sobre eles que mereça o nome de sólida documentação (todos os autores que fazem referência a seus respectivos governos viveram muito tempo depois). 
De qualquer maneira, os sete reis foram Rômulo (³), Numa Pompílio, Túlio Hostílio, Anco Márcio, Tarquínio Prisco, Sérvio Túlio e, finalmente, Tarquínio, o Soberbo. E é aí que entra Aneu Floro (⁴), autor de Epitome rerum Romanarum, atribuindo uma grande virtude a cada um dos monarcas que teriam ajudado a lançar os fundamentos do que viria a ser o Império Romano:
  • Rômulo - Tinha espírito empreendedor, fundou a cidade;
  • Numa Pompílio - Muito religioso, conseguiu "domar" os ferozes romanos, ao instituir entre eles o respeito aos deuses;
  • Túlio Hostílio - Era um mestre na arte da guerra, disciplinou os romanos para o combate, estabelecendo as bases do exército;
  • Anco Márcio - Dedicou-se às construções necessárias à cidade;
  • Tarquínio Prisco - Criou símbolos, divisas e outros adereços (anéis, togas, etc.) para estabelecer a dignidade dos cargos públicos e do povo romano;
  • Sérvio Túlio - Fez realizar o primeiro censo e organizou estritamente a administração da cidade;
  • Tarquínio o Soberbo - Se devemos crer em autores como Tito Lívio e Floro, este rei foi um imprestável, que distribuiu ofensas abomináveis entre ricos e pobres, famosos e desconhecidos. Onde estaria a virtude? Floro saiu-se com essa: "[...] O povo, ofendido por suas injúrias, moveu-se pelo desejo de liberdade." Ou seja: a opressão foi útil porque fez brotar um sentimento contrário ao governo exercido por um rei. 
Tarquínio foi deposto e exilado, Roma tornou-se uma República.

(1) Adriano governou entre 117 e 138; portanto, no Século II.
(2) Entende-se que os reis existiram, mas os atos de governo atribuídos a eles carecem ainda de certezas, embora pesquisas históricas e arqueológicas nesse sentido continuem a acontecer.
(3) Há quem afirme que, durante algum tempo, Rômulo teve um companheiro no comando de Roma (não era seu irmão Remo, que foi assassinado). Neste caso, seriam oito e não sete os reis de Roma.
(4) Nessas questões relativas aos tempos remotos de Roma, Floro se reporta aos escritos de Tito Lívio.


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terça-feira, 21 de março de 2017

Sinais de fumaça

Os antigos romanos tinham um sistema de comunicação por meio de sinais de fumaça, que estava em uso para propósitos militares. De acordo com o que Políbio de Megalópolis registrou em sua História, o método, com o passar do tempo, foi aperfeiçoado, tornando-se mais complexo, sim, mas permitindo, com boa execução, transmitir mensagens de fumaça que exprimiam as letras do alfabeto. Empregava-se, naturalmente, o mínimo de letras ou palavras para comunicar uma ideia, lembrando um pouco o que, muito mais tarde, aconteceria com os telegramas. Entretanto, era preciso, a bem da eficiência, que os soldados a quem se encarregava a transmissão de mensagens fossem devidamente treinados. 
Um buriti (no centro da imagem)
A complexidade podia até não ser a mesma, mas os indígenas do Brasil também empregavam sinais de fumaça, sempre que desejavam mandar recados à distância. Aqueles que viviam no Brasil Central faziam uso deste método, descrito por José Vieira Couto de Magalhães:
"Vão subindo por um buriti (¹) e amarrando em torno dele, com um palmo de espaço, faixas de capim verde; descem depois, e ateiam-lhe fogo: a última das faixas o comunica às outras, de modo que a gigantesca palmeira serve de farol, não só por ficar toda em brasas, como também pela coluna elevada de fumaça, que se eleva ao céu em forma de espiral." (²)
É possível que alguns dos leitores queiram saber qual era o objetivo desse sinal. De acordo com Couto de Magalhães, era ao cair da tarde que xavantes, carajás e outros povos faziam uso dele, com a finalidade de informar um ponto de encontro para grupos dispersos de caçadores, embora também pudesse ser usado, ocasionalmente, ao meio-dia, sempre que o líder tribal notasse algum perigo. Não era a sinalização militar dos romanos, é verdade, mas funcionava.

(1) Palmeira típica do Brasil Central, mas que pode, também, ser encontrada em outras áreas.
(2) MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Viagem ao Rio Araguaia. Goiás: Tipografia Provincial, 1864, p. 64.


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quinta-feira, 16 de março de 2017

Como os antigos romanos interpretavam a aparição de cometas

Os que acreditavam em presságios
usavam a forma dos cometas como indício
para suas "previsões" (²)
Povos da Antiguidade - quase todos - tendiam a ver nos fenômenos celestes algum tipo de recado dos deuses. É fácil, hoje, lançar um olhar para seus registros e dizer que não passam de tolices; foram, no entanto, a origem, ainda que remota, de muita coisa a que chamamos ciência em nossos dias. É claro que foi preciso um longo tempo para separar fatos de crendices sem nenhuma base além da imaginação humana, em especial se considerarmos que quase tudo se fazia empiricamente, sem um método de investigação que pudesse assegurar a integridade dos resultados.
Romanos eram apaixonados por cometas, aos quais atribuíam virtudes premonitórias, às vezes como presságio favorável, mas, também, como aviso de tragédia. Plínio, o Velho, no Livro II de sua História Natural, relatou aparições notáveis de cometas "durante a guerra civil no consulado de Otávio, novamente durante a guerra entre Pompeu e César, ou em nosso tempo (¹) por ocasião do envenenamento que assegurou a sucessão do Império de Cláudio César para Domício Nero e, posteriormente, já durante o principado de Nero [um cometa] apareceu quase continuamente com um brilho pavoroso."
Ora, em se tratando de Nero, nem era preciso um evento celeste! Ainda de acordo com Plínio, era em Roma que estava o único templo no mundo consagrado ao culto de um cometa. Não é surpreendente, portanto, que os hábeis políticos romanos tratassem de tirar o melhor partido da crença popular na influência desses belos viajantes do espaço. Augusto (³), a quem hoje reconhecemos como o primeiro imperador, afirmou, segundo relato de Plínio:
"Nos dias de meus jogos (⁴) viu-se, ao norte, um cometa, que apareceu por sete dias. Era observável em toda parte, cerca de uma hora antes do pôr do sol, como uma brilhante estrela. Acreditou-se que essa estrela fosse a alma de César, recebida entre os numes imortais, e, por essa razão, uma estrela foi acrescentada ao busto de César que logo depois foi dedicado no fórum."
Entende-se, neste caso, que Augusto interpretou a aparição do cometa como um presságio favorável. Favorável até demais, já que, por informação de Plínio, sabemos que o futuro primeiro imperador dizia em público que o cometa seria a alma de César que brilhava entre os deuses, mas que, em particular, estava alegre com a suposição de que o objeto celeste, tendo aparecido durante os jogos que ele próprio convocara, vinha assegurar sucesso a seus projetos de poder. Se esta informação for correta, deve-se concluir que o imperador também acreditava piamente em presságios.
E Plínio (⁵), cujos escritos nos ajudam a bisbilhotar o que se passava na Antiga Roma? Acreditava, ele também, que os cometas traziam recados e avisos dos deuses? Para nossa sorte, nem precisamos fazer inferências, já que a História Natural traz a resposta dada por ele mesmo:
"Meu ponto de vista é de que esses eventos [aparição de cometas, meteoros, etc.] sucedem em datas fixas, sob o comando das forças naturais, como todos os outros fenômenos, ao contrário do que pensa o vulgo, sob uma variedade de razões imaginadas." (⁶) 
Excelente consideração para um estudioso da natureza que viveu no primeiro século da Era Cristã. Morreu em 79 d.C., sufocado por uma nuvem de gases provenientes da erupção do Vesúvio que destruiu Pompeia e Herculano. Nem é preciso dizer que tentava observar o fenômeno...

(1) No tempo dele!
(2) MALLET, Allain Manesson. Description de L'Univers. Paris: Denys Thierry, 1683. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Otávio, ou Gaio Júlio César Otaviano, também chamado Augusto, o primeiro imperador em Roma.
(4) Depois do assassinato de Júlio César.
(5) Plínio, o Velho, foi uma das mentes mais brilhantes de seu tempo, capaz de reunir e catalogar uma quantidade absurda de informações, ainda que muitas delas, aos nossos olhos, não passem de lorotas cabeludas. Mas isso nós sabemos depois de milênios de estudo e pesquisa. 
(6) Os trechos citados de Naturalis Historia que aparecem nesta postagem foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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terça-feira, 14 de março de 2017

Veículos que você não encontrará nas ruas (mas que já estiveram nelas)

Em algum desfile ou encontro de proprietários de veículos antigos pode ser; em situações normais, nenhum de vocês, leitores, encontrará veículos como estes nas ruas. Mas eles já estiveram nelas e, lembrem-se, foram considerados como a última palavra em modernidade. Sábias lições podem ser deduzidas!
Comecemos com os de duas rodas do Século XIX. Primeiro, uma bicicleta para um ciclista (¹):


Então, este exótico modelo para dois ciclistas (²):


Deixando de lado questões relacionadas ao conforto de quem usava uma bicicleta com rodas tão desiguais, observemos, por um instante, os trajes dos homens que aparecem nas ilustrações, em nada semelhantes aos uniformes dos atletas do Século XXI. Resta saber quem acharia os trajes alheios mais estranhos: se nós, observando os dos antigos, ou se os antigos, se pudessem ver os nossos.
Agora, veículos de quatro rodas. Como ainda acontece, a propaganda nas primeiras décadas do Século XX procurava associar luxo, prestígio, conforto e tecnologia à posse de um automóvel de "último tipo", respectivamente 1912 (³) e 1914 (⁴):




Finalmente, uma verdadeira relíquia, de que poucos leitores devem ter conhecimento: um bonde-ambulância. É isso mesmo! A notícia da inauguração desse veículo foi publicada na edição de 29 de janeiro de 1922 da revista carioca O Malho (⁵), trazendo esta legenda: "O bonde-ambulância, destinado aos serviços da Assistência Pública Municipal, há dias inaugurado." 

Bonde-ambulância no Rio de Janeiro em 1922 (⁵)

(1) SPENCER, C. The Modern Bicycle. London: Frederick Warne and Co., 1876, p. 29.
(2) Ibid., p. 27.
(3) ILLUSTRAÇÃO PAULISTA, Ano II, nº 57. São Paulo, 17 de fevereiro de 1912.
(4) A VIDA MODERNA, Ano IX, nº 221. São Paulo, 14 de maio de 1914.
(5) O MALHO, Ano XXI, nº 1037. Rio de Janeiro, 29 de julho de 1922. O original pertence à BNDigital. Todas as imagens desta postagem foram editadas para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 9 de março de 2017

Instrumentos musicais da Antiguidade

Povos da Antiguidade construíram e usaram uma ampla variedade de instrumentos musicais. Seria quase impossível listar todos os recursos de que os antigos dispunham para fazer música, de modo que somente trataremos aqui dos instrumentos conhecidos entre os povos da região do Mediterrâneo e adjacências, bem como da Mesopotâmia e de alguns de seus vizinhos.

Grupo de músicos com instrumentos, de acordo com um relevo assírio (¹)
Na construção de instrumentos eram usados diversos materiais: madeira, ossos (de animais, mas, às vezes, até de humanos), chifres de animais, peles (para instrumentos de percussão), fibras vegetais e crinas de animais para cordas. O uso de metais também acontecia, sendo, porém, mais raro, já que demandava um conhecimento técnico, a metalurgia, que não estava disponível entre todos os povos.
Músico grego com
instrumento de cordas (³
)
Em se tratando de instrumentos de cordas, as harpas e suas variantes eram bastante empregadas. Embora pudessem ser encontradas em diversos tamanhos, nunca eram muito grandes, pois, do contrário, não seriam facilmente transportadas (²). O princípio básico para confecção de uma harpa era a fixação de cordas de diferentes comprimentos em algum tipo de arco, geralmente de madeira. Supõe-se que, no começo, as cordas fossem tocadas apenas com os dedos do músico. Mais tarde os plectros foram introduzidos.
Representação egípcia
de uma raposa tocando
flauta dupla (⁵)
Instrumentos de sopro eram, até onde se sabe, feitos inicialmente com tubos ocos, aos quais, mais tarde, foram acrescentados orifícios, para dar origem às flautas primitivas. Havia também as flautas duplas, conhecidas entre egípcios, gregos, assírios e romanos (⁴), e as flautas de pan, em que tubos de diferentes tamanhos eram associados em um único instrumento. Trombetas feitas com chifres ou com metais tinham uso militar e religioso. 
Para a percussão, supõe-se que mãos e pés tenham sido originalmente empregados, e que o desenvolvimento de uma vasta gama de tambores (excelentes para a prática coletiva da música), tenha acontecido com o desejo de ampliar a intensidade do som que se obtinha. Pratos ou címbalos e triângulos também tinham uso frequente.
Observem, leitores, que vários dos instrumentos aqui citados, depois de séculos de desenvolvimento das técnicas de construção, continuam ainda em uso. Não é interessante? Entretanto, há relativamente poucos exemplares de instrumentos da Antiguidade que chegaram até nossos dias. Isso acontece porque os materiais de que eram confeccionados nem sempre eram duráveis o bastante para uma sobrevivência de milênios.
Músicos nômades podiam tocar à noite, ao redor de fogueiras, quando descansavam, depois de caminhadas exaustivas acompanhando rebanhos; entre os sedentarizados, a música era ingrediente que não podia faltar nas festas em honra dos deuses ou nas comemorações das grandes conquistas militares. Em todos os casos, havia música para celebrar a vida, assim como para lamentar a morte. Temos um vínculo, pois, com os povos da Antiguidade: ainda que os instrumentos tenham evoluído, inclusive com o advento da música eletrônica, e que nossas canções sejam outras, não há dúvida que, aqui e ali, os temas ainda se repetem.

(1) LAYARD, Austen Henry. Discoveries on the Ruins of Nineveh and Babylon. London: John Murray, 1853, p. 455.
(2) Esse era um requisito importante entre nômades e seminômades.
(3) ADAMS, W. H. Davenport. Temples, Tombs and Monuments. London: T. Nelson and Sons, 1871, p. 56.
(4) Evidência do compartilhamento de bens culturais e troca de informações nas áreas em que viviam esses povos.
(5) WRIGHT, Thomas. A History of Caricature & Grotesque in Literature and Art. London: Virtue Brothers & Co., c. 1864, p. 7.


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terça-feira, 7 de março de 2017

Os urubus de Manaus no Século XIX

Rua de Manaus em meados do Século XIX, , na qual se vê, à esquerda,
um bando de urubus - desenho de E. Riou, sobre esboço de F. Biard (¹)

A cidade era pequenina. A borracha não dera ainda sinal do brilhareco que fez explodir o crescimento urbano na margem esquerda do rio Negro. Mas já havia em Manaus, de acordo com o pintor francês François Biard, uma lei que daria orgulho a muito ecologista de hoje - era proibido causar dano aos urubus:
"Não se pode matar nenhum deles, sob pena de multa ou prisão, porque essas aves ajudam a limpeza das ruas, sempre atulhadas de cisco." (²)
François Biard esteve no Brasil entre 1858 e 1859. Mais de século e meio depois, o porto fluvial de Manaus é bastante movimentado, de modo que passageiros e mercadorias chegam e partem a cada instante. Turistas observam o mar de água doce à sua frente, em meio a embarcações de todos os tamanhos. Petroleiros gigantescos vêm e vão. Lá estão, também, os felizes descendentes dos urubus manauaras do Século XIX (³), tentando cumprir, como seus ancestrais, o honroso papel de ajudar na manutenção da limpeza. Não é difícil presumir, no entanto, que a tarefa está muito além do alcance de suas forças.

Este grupo de urubus foi visto, há algum tempo, enquanto disputava
uma carcaça de peixe no porto de Manaus

(1) BIARD, François. Deux Années au Brésil. Paris: Hachette, 1862, p. 457.
(2) Idem. Dois Anos no Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 179.
(3) É apenas uma conjectura, leitores...


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quinta-feira, 2 de março de 2017

Hamurabi, por ele mesmo

Não fora pelo Código que leva seu nome, Hamurabi seria apenas mais um reizinho da Mesopotâmia, no longínquo Século XVIII a.C., do qual quase ninguém mais faria menção. O próprio conjunto de leis é geralmente entendido como uma compilação, e não como uma peça única, que tenha, de um instante para outro, saltado da cabeça do rei para a solidez de um monumento. Era lei escrita, no entanto, um considerável progresso em relação às decisões aleatórias de monarcas absolutos que mandavam nos povos contemporâneos.
Ora, antes de inaugurar a cantilena de crimes e respectivas punições, o Código faz uma cuidadosa apresentação dos atributos do rei que ditava as leis. Entre muitas outras declarações, afirma que Hamurabi fora "chamado por nome" pelos deuses, para que fosse governante da Babilônia e para impedir que os fracos fossem oprimidos pelos fortes (é sempre a mesma conversa...). 
Curiosamente, o próprio Hamurabi é quem passa a falar, dizendo que fizera Babilônia poderosa, enriquecera a cidade de Ur, restabelecera os alicerces de Sipar, renovara a vida em Uruk, reunira os habitantes de Isin que estavam dispersos. Era também amado pelo deus Nebu (cultuado em Borsipa), e restaurador da divindade protetora de Assur, entre muitas outras façanhas. Finalmente, o mandatário se afirma "o sol da Babilônia, cujos raios iluminam a Suméria e a Acádia, obedecido pelos quatro cantos do mundo" (¹). Vejam, leitores, estes eram apenas alguns dos títulos; a lista completa levaria à falência os laboratórios farmacêuticos que fabricam medicamentos para quem sofre de insônia. Quanta modéstia, não?
Acontece que, em meio à bazófia, alguns aspectos podem ser destacados:
  • A partir de Babilônia, Hamurabi governava um vasto território, cujas principais cidades são citadas por nome (Ur, Uruk, Sipar, etc.);
  • De acordo com a mentalidade da época, havia notável intercâmbio entre deuses e homens, de modo que os grandes acontecimentos eram sempre relacionados a ações das divindades, cujo bom humor podia ser assegurado mediante um conjunto de cerimônias, nas quais o rei tinha participação de destaque;
  • Poderoso como fosse em seu tempo, Hamurabi não ousava apresentar-se como um deus (²): definia-se a si mesmo como alguém chamado para governar e, portanto, protegido pelas divindades, como alguém que zelava pelos locais de culto e práticas religiosas, como "humilde servidor dos deuses" (³). Sua legitimidade como governante vinha da crença generalizada de que essas afirmações refletiam fatos, daí ser tão importante a aliança entre religião e política para a manutenção do poder.
Nem sempre, porém, apenas uma multidão de títulos, como a que figura no Código de Hamurabi, bastava para assegurar um governo tranquilo, de modo que todo governante sensato dispunha de gente armada para garantir pela intimidação (se possível), ou com o uso da força (quando necessário), que sua autoridade, como queridinho dos deuses, não sofresse contestação. Funcionava, até que algum outro resolvesse provar que também tinha as divindades ao seu lado. Revoluções não eram raras na Antiguidade, e disso Hamurabi sabia por experiência própria.

(1) Os pontos cardeais: Norte, Sul, Leste e Oeste.
(2) Bem diferente, portanto, do que acontecia no Egito.
(3) Neste caso, a autoproclamada humildade no serviço aos deuses era usada para inflar o ego do legislador. A coisa só é contraditória na aparência.


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