Os romanos odiavam a monarquia. É um tanto difícil separar os fatos das lendas quando se trata do período da história romana conhecido como realeza (que vai da fundação lendária de Roma em 753 a.C., fazendo de Rômulo o primeiro rei, até a expulsão de Tarquínio, o Soberbo, último dos famosos "sete reis de Roma"), mas parece evidente que o ódio à realeza ter-se-ia originado com os desmandos do último rei. Cícero, político e escritor romano do Século I a.C., perguntou: "Tu não vês que a maldade e a soberba de Tarquínio fizeram com que o título de rei fosse odiado pelo povo?" (¹) Também disse, apontando aquela que, para ele, era a deficiência fundamental de uma monarquia: "Dentre tudo o que falta ao povo cujo governante é um rei, a primeira delas é a liberdade, a qual não consiste em ter um senhor justo, mas em não ter qualquer senhor." (²)
Ora, meus leitores, esse ódio dos romanos à realeza estava muito longe de ser apenas uma questão de palavras. Os desdobramentos práticos são de arrepiar os cabelos. Vejamos:
- De acordo com Cícero (³), Espúrio Cássio, um político importante da República, foi acusado de buscar o favor do povo com vistas a fazer-se rei e, por isso, foi condenado à morte, com voto popular e aprovação de seu próprio pai, que se declarara convencido da culpa do filho (⁴);
- O cônsul Lúcio Júnio Bruto, um dos líderes do movimento que afastou Tarquínio do poder em 509 a.C., fez executar seus dois filhos, porque os rapazes eram partidários do monarca, fato que levou Aneu Floro a escrever: "O pai mostrou publicamente que adotava o povo romano em lugar dos filhos"; (⁵)
- Durante uma grande escassez de alimentos no Século V a.C., Espúrio Mélio, conforme relato de Tito Lívio (⁶), comprou trigo na Etrúria para distribuição gratuita entre a plebe, levantando suspeitas de que se quisesse fazer aclamar rei, mas por ordem do ditador escolhido para aquela ocasião extrema, foi executado, e sua casa, a título de exemplo, foi completamente arrasada;
- Nas intrigas que se acumularam após o assassinato de Júlio César, Otávio, que pretendia suprimir a concorrência de Marco Antônio, não vacilou em acusá-lo de ter pretensões monárquicas, até porque não lhe faltava, para isso, argumento convincente, já que, segundo Aneu Floro, quando estava em companhia de Cleópatra, o triúnviro adotava a indumentária típica de um rei: "Levava cetro de ouro na mão, espada ao lado, vestia púrpura adornada com pedras preciosas e usava um diadema [...]" (⁷).
Suponho, a esta altura, que alguns de meus leitores já tenham franzido a testa, com um muito razoável questionamento: Se tal era o ódio à monarquia, como explicar que Roma tenha se tornado um império? Não foram monarcas os imperadores de Roma?
É necessário dizer, portanto, que muitos romanos dos dias do Império ficariam surpresos se soubessem que, séculos depois, seu governo seria rotulado de monárquico, segundo nosso ponto de vista, mas não de acordo com o deles. Para os romanos, aquele a quem chamamos imperador era apenas príncipe, ou seja, nada mais que o principal cidadão da República romana, a despeito do componente dinástico eventualmente introduzido. A conservação do senado e de outros cargos e instituições típicas da República foi fundamental para manter as aparências - ou a cegueira conveniente, se preferirem.
(1) CÍCERO, Marco Túlio. De re publica, Livro I.
(2) Ibid., Livro II.
(3) Ibid.
(4) Foi jogado da Rocha Tarpeia em 485 a.C.
(5) FLORO, Aneu. Epitome rerum Romanarum.
(6) LÍVIO, Tito. Ab urbe condita libri.
(7) FLORO, Aneu. Op. cit. As citações das obras de Cícero e Aneu Floro foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
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