quinta-feira, 31 de agosto de 2017

O sistema de correios dos antigos persas

Sendo donos de um império enorme, os persas (¹) precisavam ter um sistema de correios muito eficiente - se não fosse assim, como garantir que decretos e notícias chegassem com a velocidade conveniente a cada povoação, de modo que ninguém pudesse alegar desconhecimento? Quem poderia assegurar boa administração ou zelar pela segurança das fronteiras, se os governantes civis e comandantes militares não estivessem devidamente informados do que se passava, quer perto, quer longe?
Por outro lado, ter correios eficientes pode muito bem ter ajudado nas conquistas que permitiram a formação de tão vasto império. Vejam, leitores, que, em ambos os sentidos, os bons serviços de correios foram muito úteis aos persas.
De acordo com Heródoto, nada havia, na terra, que fosse "tão ágil e veloz" quanto o sistema de correios que os persas haviam inventado, no qual sempre havia cavalos e homens de prontidão para que nenhum atraso ocorresse. Nem circunstâncias climáticas adversas, ou mesmo as horas da noite, impediam que os correios circulassem: "O primeiro dos correios passa ao segundo os comunicados que recebeu, e este ao terceiro, seguindo assim de um a outro, como acontece nas corridas de tochas por ocasião dos festejos de Hefaístos." (²)
Portanto, leitores, o sistema persa pressupunha um contínuo revezamento de homens e cavalos, que faziam, em turnos, um percurso determinado, à máxima velocidade de que eram capazes. Além disso, era preciso ter gente e cavalos descansados e prontos para a ação, assim que novas ordens chegassem.
Por esse sistema, as informações estavam longe de dar volta ao mundo à velocidade da luz; não obstante, os antigos persas, ressalvadas as limitações de sua época, demonstraram que, quanto aos correios, eram um verdadeiro modelo de competência.

(1) Levando em consideração tudo o que se sabe sobre o modo como os antigos persas eram governados, não é possível afirmar que o povo persa tenha sido grandemente beneficiado pelas conquistas empreendidas por seus monarcas.
(2) Heródoto Histórias, Livro VIII; o trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


Veja também:

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Casacas sob o sol da capital do Império

"Será útil que a civilização acabe com esse uso de andar de jaqueta diante dos contemporâneos e aparecer de casaca à posteridade."
Machado de Assis, Diário do Rio de Janeiro, 12 de junho de 1864

Qualquer um que leia obras escritas por romancistas brasileiros do Século XIX pode, sem muito esforço, descobrir que na capital do Império, gente "de respeito", como se dizia, andava vestida de modo muito impróprio - impróprio para o clima do Rio de Janeiro, mas apropriado, sim, segundo as regras de etiqueta da época. Corram os olhos, leitores, sobre os exemplos seguintes, e já verão o que era a moda masculina sob o sol carioca:

"Bravo! exclamou Filipe, entrando e despindo a casaca, que pendurou em um cabide velho."
Joaquim Manuel de Macedo, A Moreninha

"Alice [...] trocou algumas palavras em segredo com o pai, e tirando-lhe do bolso da casaca uma caixinha oval de tartaruga aproximou-se de Mário, que estava de pé apoiado no recosto da cadeira de D. Francisca."
José de Alencar, O Tronco do Ipê

"Tenho grandes salas, ricos tapetes, cadeiras de estofo, soberbos jantares, mas preciso de gente de casaca, para encher estas salas, pisar esses tapetes, sentar-se nessas cadeiras e comer estes jantares."
José de Alencar, Sonhos d'Ouro

"Às vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala, para restituir a razão ao alienado; em outros casos a moléstia era mais rebelde; recorria então aos anéis de brilhantes, às distinções honoríficas, etc. Houve um doente, poeta, que resistiu a tudo."
Machado de Assis, O Alienista

"Rubião, calado, recompunha mentalmente o almoço, prato a prato, via com gosto os copos e os seus resíduos de vinho, as migalhas esparsas, o aspecto final da mesa, em vésperas de café. De quando em quando dava um olhar à casaca do criado."
Machado de Assis, Quincas Borba

Então, o que acham? O problema é que usar casaca não era simplesmente uma opção. Daniel P. Kidder, missionário metodista que esteve no Brasil entre 1837 e 1840, descreveu muito bem as exigências quanto ao vestuário de quem pretendia pôr os pés em lugares de maior cerimônia:
"Presume-se que todo indivíduo de respeito se vista bem e com propriedade. Daí o fato de se não poder entrar nas repartições públicas, no Museu ou na Biblioteca Nacional, sem ser "de casaca". O paletó-saco constitui a birra principal das regras de etiqueta, no Brasil, e, conquanto se adapte melhor ao clima que qualquer outra roupa e seja geralmente usado em casa, é rigorosamente condenado o seu uso na rua. Assim é que as pessoas respeitáveis devem usar um capote quando saem, ou, se preferirem, um casaco relativamente pesado." (¹)
Lembrando aos leitores da geração Y que não havia ventiladores elétricos e muito menos ar-condicionado no Século XIX, consideremos, agora, o que escreveu o pintor François Biard, ao tratar da mania dos trajes cerimoniosos. Notem, por favor, que Biard, de nacionalidade francesa, esteve no Rio uns vinte anos após Daniel Kidder, e foi muito menos benevolente em suas observações:
"No Brasil todo mundo se veste de preto, não somente para ir às festas, mas, também, durante o dia, muito embora o sol derreta a todos de suor." (²)
Acrescentou, ainda:
"[...] Percorri a cidade [do Rio de Janeiro] [...]. Enverguei, para esse passeio, as roupas leves compradas na Belle Jardinière, mas me senti acanhado ao reparar que todos me olhavam com espanto semelhante ao que manifestávamos (³) antigamente diante de um árabe com seu albornoz ou um grego com sua saia pregueada. Por toda parte o preto predominava. Os caixeiros das lojas, manejando as vassouras, já vestiam, às sete da manhã, elegantes redingotes de casimira. O branco, neste país, onde o preto deveria ser castigo para os galés, era desconhecido." (⁴)
Biard estava errado. Havia, sim, quem usasse branco - os escravos! Vejam, portanto, leitores, que além de imitar o que era moda na Europa, era para se diferenciar dos cativos que a gente de condição livre se submetia à tortura das casacas, mesmo quando o clima e a saúde recomendavam coisa bem diferente.

Convento de Santo Antônio no Rio de Janeiro, Século XIX;
em primeiro plano, dois cavalheiros usando casaca e cartola (⁵).

(1) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, pp. 142 e 143.
(2) BIARD, Auguste François. Dois Anos no Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 12.
(3) Biard se refere aos franceses.
(4) BIARD, Auguste François. Op. cit., p. 32.
(5) ____________ O Brasil Pitoresco e Monumental. Rio de Janeiro: E. Rensburg, 1856. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

A Revolução Russa de 1917

Uma revolução que aconteceu "no lugar errado"

Segundo o entendimento daqueles que em meados do Século XIX defendiam o chamado "socialismo científico", o mundo industrialmente desenvolvido caminhava para uma grande revolução. Nas palavras de Marx e Engels em Manifest der Kommunistischen Partei (¹), "a história de todas as sociedades até agora existentes tem sido a história das lutas de classes. [...] Homens livres e escravos, patrícios e plebeus, senhores e servos, mestres de ofício e empregados, em uma palavra, opressor e oprimido, em constante oposição, têm travado um confronto ininterrupto, seja ele oculto, seja ele aberto, que vez após vez termina, ou com uma completa reconstituição revolucionária da sociedade, ou com a ruína de ambas as classes contendoras". 
Mais adiante, depois de expor uma interpretação da queda do feudalismo por obra da burguesia, o mesmo documento passava a tratar do modo pelo qual o proletariado suplantaria o capitalismo, impondo uma nova ordem social, política e econômica:
"As mesmas armas com as quais a burguesia derrubou o feudalismo voltam-se agora contra ela.
Entretanto, não somente a burguesia forjou as armas que lhe darão a morte, ela chamou à existência os homens que manejarão essas armas - a moderna classe trabalhadora, os proletários."
Uma leitura atenta dos escritos de Marx e Engels leva à conclusão de que, para esses pensadores:
  • a) A revolução socialista era inevitável (²); 
  • b) A revolução somente poderia ocorrer em lugares nos quais as forças produtivas do capitalismo chegassem ao seu máximo desenvolvimento. Aí, no apogeu da luta de classes entre burguesia e proletariado, a revolução socialista encontraria terreno altamente favorável. 
Ora, meus leitores, se havia um país que estava muitíssimo longe dos píncaros do capitalismo, esse país era a Rússia de 1917. Portanto, em obediência à lógica do pensamento de Marx e Engels, a Rússia era um lugar onde a revolução não poderia acontecer. Mas aconteceu.
Por quê? O que veremos a seguir são algumas dentre as razões que podem explicar a ocorrência de uma revolução socialista "no lugar errado":
  • Pobreza extrema do campesinato e dos trabalhadores urbanos, estes últimos não muito numerosos, ainda que, até certo ponto, politizados;
  • A participação russa na Primeira Guerra Mundial, que contribuiu para enfraquecer ainda mais a economia, uma vez que os escassos recursos disponíveis eram direcionados para propósitos militares;
  • Fragilidade da monarquia sob Nicolau II e do governo supostamente democrático implantado após a queda do regime czarista em fevereiro/março de 1917 (³) (Kerenski devia ter negociado imediatamente um acordo com a Alemanha para sair da guerra, mas decidiu permanecer no conflito, gerando enorme insatisfação contra o governo);
  • Deserções em massa no front, não havendo, contra elas, ameaças que valessem;
  • Ocorrência de um inverno precoce e ainda mais rigoroso que o habitual entre 1916 e 1917(⁴);
  • Falta de suprimentos básicos nas cidades, como lenha e carvão (para aquecimento) e cereais para alimentação;
  • Os bolcheviques parecem ter feito a promessa "certa", que a população queria ouvir: paz, terra, pão e libertação das etnias dominadas pelo Império Russo;
  • Vácuo de poder com a "saída" (⁵) de Kerenski.
Ao perceber o momento favorável em outubro/novembro de 1917, Vladimir Ilyich Ulyanov, a quem todos chamamos Lenin, ofereceu, com os bolcheviques, uma alternativa de liderança que parecia apresentar novas propostas e confiabilidade. Desse modo, a Rússia saiu da guerra (⁶), mas os anos seguintes não foram nada fáceis, diante da necessidade de reconstrução após a sangrenta guerra civil ocorrida para sustentar o domínio socialista. Isolado internacionalmente, o novo regime, que parecera tão promissor, tendeu cada vez mais à radicalização, principalmente após a morte de Lenin e ascensão de Stalin como mandatário virtualmente absoluto.

Como a notícia da Revolução Russa chegou ao Brasil

Na edição de sexta-feira, 9 de novembro de 1917, o jornal Correio Paulistano noticiava:
"Deu-se em Petrograd, quase no meio da indiferença geral, um pequeno golpe de Estado [sic!], que transferiu o poder das mãos do sr. Kerensky para as do "Soviet" militar [sic], encarnação da política maximalista (⁷). Os telegramas da Havas, duma sobriedade onde se reconhece a ação da censura (⁸), não dão pormenores do acontecimento; constatam laconicamente o fato sem aludir aos meios empregados pelos revolucionários para se tornarem senhores da capital da Rússia e do governo. O "Soviet", logo que se instalou no palácio imperial, decidiu expor ao público o seu programa de realização imediata. Esse programa consiste exclusivamente [sic] em concluir a paz separada com o inimigo, no mais curto prazo, sem dependência de cláusulas restritivas. Donde se conclui que o golpe de Estado de Petrograd, antes de ser uma revolução nacional, foi uma revolução alemã [sic!!!], fato que não pode surpreender ninguém, atendendo às estreitas ligações que sempre existiram entre os agentes germânicos e os maximalistas. É possível, provável até, que os revolucionários de maio, os que obedecem ao sr. Kerensky, não reconheçam o novo estado de coisas nem sancionem a política internacional que o "Soviet" militar se propõe seguir, com absoluto desprezo dos compromissos tomados com os países aliados."
Entendam, leitores, que na data em que a notícia foi publicada, a situação era ainda bastante confusa, até mesmo para os próprios russos. Além disso, para chegar ao Brasil, essas informações precisaram quase dar a volta ao mundo, passando pelo crivo da censura de guerra (como o jornal assinalou), a fim de evitar que a certeza quanto à posição da Rússia em abandonar o conflito mundial afetasse o moral das tropas da Entente no front. De qualquer modo, é fácil perceber que as palavras do Correio Paulistano, revelando algum desconhecimento sobre a situação política na Rússia para além da tomada do poder pelos bolcheviques, demonstram, também, pouca ou nenhuma simpatia pelo movimento revolucionário, na suposição de que, afinal, tudo não passaria de uma arruaça a ser, em breve, sufocada.
O jornal, porém, estava errado. Lenin e os bolcheviques, contra as expectativas internacionais, conseguiriam suplantar a "resistência branca" (⁹), fundando um novo regime que controlaria o poder, não por uns poucos anos, mas por longas décadas.

(1) Conhecido, em português, como Manifesto Comunista. As citações que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Atendendo a uma espécie de "lei" que supostamente regeria os acontecimentos da sociedade.
(3) Somente em 1918 é que a Rússia passou a adotar o Calendário Gregoriano; por essa razão é que se diz que a "revolução branca" ou "democrática" aconteceu em fevereiro ou março de 1917, dependendo do calendário a ser considerado, valendo o mesmo para a revolução socialista (outubro ou novembro de 1917).
(4) Com estações agrícolas curtas, era preciso produzir muito para assegurar suprimentos para os meses (muito) frios; as obras dos romancistas russos do Século XIX estão repletas do pessimismo resultante, ao menos em parte, da parceria entre conjuntura político-econômica e longuíssimos invernos.
(5) Fuga, na verdade. Impossível não questionar o raciocínio político de Kerenski - o que esse indivíduo tinha na cabeça (além do chapéu, é claro)?
(6) Lenin já negociara com a Alemanha o fim da participação russa na guerra, mesmo antes que a Revolução Bolchevique fosse uma realidade.
(7) Referência aos bolcheviques.
(8) Não se esqueçam, leitores, de que a Primeira Guerra Mundial estava em andamento, e a divulgação de notícias era, mais do que nunca, uma questão de Estado.
(9) Em referência ao fardamento usado pelas forças militares adeptas do regime czarista.


Veja também:

terça-feira, 22 de agosto de 2017

O furto de mulas nos ranchos para pouso de tropeiros

Há diferença, tecnicamente, entre roubo e furto: no primeiro caso, entende-se que algo é subtraído de seu legítimo proprietário com emprego de violência; no segundo, o dono pode nem perceber, num primeiro momento, que algo desapareceu... No assunto de que trataremos hoje, porém, tanto caberia, em alguns casos, o termo "roubo", como, em outros, a palavra "furto". O que interessa é que ambas as situações não eram de todo incomuns nos ranchos que, à beira de estradas, recebiam, antigamente, os tropeiros e viajantes. Portanto, quando for mencionado um delito, entendam também a possibilidade do outro.
Será ótimo se deixarmos de lado, leitores, qualquer tendência de tornar romântico o passado. Viajar pelas péssimas estradas existentes no Brasil entre os Séculos XVIII e XIX era bastante perigoso, sendo invulgares, senão desconhecidas, as viagens turísticas (¹). Como regra geral, só viajava quem tinha necessidade estrita. O brigadeiro Cunha Matos (²) anotou, em seu Itinerário, o caso de um oficial militar assassinado por um tropeiro que contratara. O motivo - óbvio - é que esse indivíduo pretendia roubá-lo:
"Às 11 horas e 10 minutos (³) cheguei ao Córrego da Sepultura por se achar enterrado ao pé de uma cruz o Major Raimundo de S. Paulo, que aí foi assassinado pelo seu tropeiro, auxiliado segundo dizem, pelos Pereiras do Porto do Paranaíba, a fim de o roubarem." (⁴)
Menos drástico e mais frequente era o sumiço de animais de carga, das próprias cargas e de pertences de uso pessoal de tropeiros e viajantes. Sendo escasso o policiamento, até mesmo nas povoações maiores, pode-se bem imaginar o que acontecia nesses ranchos precários, à margem de precaríssimas estradas. É também por um registro feito por Cunha Matos em maio de 1823 que podemos ter uma ideia do grau de vigilância necessário a quem se aventurava por rotas terrestres:
"O número de bestas que aqui [em Barbacena - MG] se furta é incrível, e não se passam horas sem que o comandante do distrito receba queixas e reclamações, não só dos moradores da vila, mas também dos viandantes que se acomodam nos [...] ranchos." (⁵)

Mula de tropeiro, desenho de Thomas Ender (⁶)

Cabe esclarecer que situação análoga pode ser admitida, na mesma época, para quase todo local de pouso. Uma questão, todavia, se impõe: por que era tão fácil surrupiar mulas? 
A cada entardecer formava-se nos ranchos um ajuntamento de pessoas tão variado quanto numeroso, sujeitas a um convívio forçado que não passava de uma noite. Na manhã seguinte, tropas de muares e viajantes se dispersavam, seguindo cada qual seu rumo, sendo restrita a probabilidade de um novo encontro. Situação perfeita para os ladrões, portanto, que, na escuridão noturna, desapareciam por entre terras incultas, indo, talvez, a algum outro rancho, para vender os animais roubados, enquanto se mantinham à espreita de ocasião favorável para nova pilhagem.

(1) A melhoria de algumas estradas e, principalmente, a implantação de ferrovias, tornaram mais frequentes as viagens como passeio.
(2) 1776 - 1839.
(3) No ano de 1823.
(4) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. 91.
(5) Ibid., pp. 37 e 38. 
(6) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Parem a música!

Na paz ou na guerra, a música pode ser uma ferramenta poderosa (que, às vezes, sai do controle)


"A unidade alemã e a unidade italiana são devidas, antes de tudo, à vocação lírica das duas nações (¹). Cavour sem Verdi, Bismarck sem Wagner não fariam o que fizeram. A música é a ilustre matemática, apta para resolver todos os problemas. É pelo contraponto que o presente corrige o passado e decifra o futuro."
Machado de Assis, Gazeta de Notícias, 8 de julho de 1894

Quem é que não sabe que a música pode ter um efeito espantoso sobre o estado de ânimo das pessoas? Pode tranquilizar os agitados, reforçar sentimentos amorosos, excitar o ódio ou patriotismo (esses últimos não deveriam andar juntos, mas vão, muitas vezes pelo mesmo caminho). Foi assim no passado, e continua a ser até hoje. Muito se tem dito sobre os valores incitados por alguns hinos nacionais. Camufladas em palavras de um idioma desconhecido, ideias exclusivistas e xenofóbicas são entoadas até mesmo em eventos esportivos que deveriam promover a paz e a fraternidade entre os povos. Contradições humanas, certamente.
Ficando apenas no terreno da chamada música erudita, quase não haverá compositor que não se tenha aventurado em alguma obra de caráter militar e/ou nacionalista e/ou patriótico e/ou ufanista, e por aí vai. Afinal, era útil para assegurar as boas graças de um soberano ou de algum nobre envolvido com assuntos bélicos, em tempos em que dispor de um patrono abonado não era mau negócio.  Nem Beethoven escapou - compôs Wellingtons Sieg, ou A Vitória de Wellington (o título é autoexplicativo). E, como se fora pouco, até a música composta para fins eminentemente religiosos acabou usada, a posteriori, para propósitos nacionalistas, como se exemplifica por Ein fest Burg ist unser Gott, do reformador Martinho Lutero (²), que pode ser ouvida na Kaisermarsch composta por Wagner (³) em 1871, no contexto na unificação da Alemanha. Associar política e religião não era nenhuma novidade no Século XIX e, infelizmente, parece que ainda não saiu de moda.
Vamos terminar, leitores, com uma divertida tradição que vem da Antiguidade. Está dito que a música foi e é frequentemente usada para incentivar o patriotismo. Pois bem, conta-se que Filipe II da Macedônia, o pai de Alexandre, o Grande, teve de proibir a música entre suas tropas. A razão era simples: sob o estímulo daquilo que ouvia e cantava, a soldadesca era tomada por violenta excitação, tornando-se incontrolável. Não sabemos, agora, quais eram as palavras usadas, tampouco conhecemos as melodias, mas, se essa história for mesmo verdade, um estudo das canções bélicas dos antigos macedônios seria emocionante, concordam? Pena que já não estejam disponíveis!

(1) Machado não falava sério - ou falava?
(2) Que, obviamente, jamais pretendeu tal uso, 
(3) Ao que tudo indica, essa música não teve sobre o Kaiser o efeito esperado por Wagner.


Veja também:

terça-feira, 15 de agosto de 2017

O sarampo matou muitos indígenas nos tempos coloniais

É sabido que os colonizadores que vieram ao Brasil trouxeram, involuntariamente (¹), doenças que, não sendo sempre letais entre europeus, mostraram-se desastrosas para os indígenas, levando à morte um número incalculável deles. Umas dessas doenças foi o sarampo.
Em uma biografia de caráter encomiástico, o jesuíta Manuel da Fonseca, referindo-se ao tempo em que viveu o padre Belchior de Pontes (²), observou, ao relatar uma visita feita por esse religioso a certa família que tinha muitos escravos ameríndios:
"Foi tão rigoroso em um daqueles anos o sarampo (enfermidade a que os índios de ordinário resistem pouco), que depois de ter acabado a muitos daquela casa, continuava com tal fúria, que indo a ela o padre Pontes, achou oito enfermos." (³)
Na mesma obra, mas tratando de ocasião posterior, Manuel da Fonseca escreveu:
"Deu o sarampo em casa de Guilherme Vicente, vizinho de Itapycyryca (⁴), e com tal fúria, que escapou só ele e sua mulher, pelo terem já tido em outro tempo." (⁵)
Aliado à gripe, à varíola e a outras doenças mais, o sarampo explica a alta taxa de mortalidade entre indígenas nessa época, em particular no caso dos escravizados, que, devido a tal circunstância, estavam mais expostos ao contato com os colonizadores. Montoya (⁶) estimou que uma das bandeiras de apresamento que esteve nas missões do Guayrá e Tape teria levado uns sessenta mil índios - número altíssimo, que não encontra correspondente nos registros de escravizados em São Paulo. Mesmo considerando que os ameríndios aprisionados por paulistas eram também vendidos em outras praças (⁷), é forçoso admitir que as doenças tiveram papel preponderante em eliminar etnias nativas da América, ainda que não tenham sido, para isso, o único fator.

(1) Ao menos nesse tempo; nos séculos posteriores houve casos em que, intencionalmente, doenças foram introduzidas entre indígenas, com a finalidade de despovoar regiões pretendidas para expansão agrícola.
(2) 1644 - 1719.
(3) FONSECA, Manoel da, S.J. Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil. Lisboa: Off. de Francisco da Silva, 1752, pp. 128 e 129. Reedição da Cia. Melhoramentos de S. Paulo.
(4) O padre Manuel da Fonseca queria dizer "morador de Itapecerica".
(5) FONSECA, Manoel da, S.J. Op. cit., p. 178.
(6) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639.
(7) No Rio de Janeiro, por exemplo.


Veja também:

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Travessuras dos deuses gregos

Deuses greco-romanos não foram incontestáveis nem na Antiguidade


Mesmo quando a antiga civilização grega estava em boa forma, já havia críticas às crenças religiosas populares. Platão, em sua República idealmente configurada, propunha que de modo nenhum a juventude devia ser induzida a crer em deuses como Zeus e Hera, que não podiam ser apresentados como paradigmas de autocontrole e moralidade. O raciocínio de Platão era simples: quem pretendia formar bons cidadãos não poderia ensinar a devoção a deuses que não passavam de maus exemplos. 
Estaria o filósofo exagerando? Vai aqui uma pequena coleção de travessuras, talvez pouco conhecidas, que mostram o que deuses gregos eram capazes de aprontar:
  • Um caso de teofagia: segundo a Teogonia de Hesíodo, Zeus Olímpico (ele mesmo!) devorou Métis, sua primeira esposa (¹), que era a personalidade mais sábia que havia, tanto entre os deuses como entre os humanos.
  • Mais Hesíodo: Zeus Olímpico era pai de uma infinidade de seres; entre eles estavam as nove musas, cuja mãe era Mnemósine. Oh! Acontece que Zeus era casado com Hera, e sua filharada tinha uma variedade de mães, e não apenas deusas: vez por outra Zeus se apaixonava por uma mortal... E então nascia um semideus.
  • Ainda segundo Hesíodo, Urano foi emasculado por seu filho Cronos (que depois seria pai de Zeus). Que estirpe!
  • Palas Atena (até ela), enciumada pelos belos trabalhos de agulha feitos por uma mortal de nome Aracne, tão bons que se equiparavam aos seus (se é que não levavam vantagem), teria presenteado a infeliz bordadeira humana com a capacidade de tecer e tecer, eternamente - transformada em uma aranha (²), é claro.
  • Vingança desproporcional: Acteon, um caçador, viu, um dia, por acaso, a deusa Diana (também caçadora), que saía do banho em um riacho. Irritadíssima, Diana transformou o indiscreto caçador em um cervo que (nem é preciso lembrar), foi logo perseguido e estraçalhado pelos cães de caça que acompanhavam a deusa.
  • Para escapar do assédio de Apolo, Dafne, uma ninfa que pastoreava ovelhas, viu-se transformada em um loureiro. 
  • Mais Apolo, e mais vingança desproporcional: Furioso com Marsias, um flautista que ousou desafiá-lo em um torneio de música, o deus que conduzia a carruagem do sol ordenou que seu oponente, amarrado a uma árvore, fosse esfolado vivo. Os berros de Marsias foram suficientes para comover as outras divindades, que resolveram transformar o infeliz torturado em um rio, com águas compostas de lágrimas e sangue.
Vaso grego com decoração retratando
o nascimento de Palas Atena (⁴)
Algumas dessas estripulias parecem, hoje, até poéticas, mas, na Antiguidade, nem sempre eram vistas com tanta benevolência. No final do Século II, em face da perseguição imposta aos cristãos pelo Império Romano, Tertuliano escreveu na Apologia endereçada ao Senado:
"Vossa justiça é uma ofensa aos céus, porque, ao condenar ladrões, assume que há deuses que deveriam ser enforcados." (³)
Indo mais longe na argumentação, chegou a sugerir que seria mais sensato ter homens virtuosos na conta de divindades, e não deuses cheios de defeitos de caráter, como eram aqueles do panteão greco-romano:
"Há, porventura, entre vossos deuses, algum que seja mais sábio que Sócrates, ou mais justo que Aristides, melhor soldado que Temístocles, melhor comandante que Alexandre, de mais sucesso que Polícrates ou mais eloquente que Demóstenes? Há entre os eleitos para deuses alguém mais sábio que Catão, mais justo e melhor general que Cipião, ou melhor comandante que Pompeu, ou mais feliz que Sila, ou melhor orador que Túlio? Se a divindade é questão de mérito, melhor seria ser atribuída a eles, do que a Júpiter ou Saturno." (³)
Portanto, leitores, tudo indica que, quanto ao conceito que faziam dos deuses venerados entre o povo, Tertuliano e Platão estavam de acordo, ainda que, quanto ao tempo, tenham vivido separados por vários séculos.

(1) As lendas da Antiguidade divergiam quanto ao modo como isso ocorreu, mas uma tradição corrente era de que Métis, transformada em água, fora engolida por Zeus.
(2) Havia outras explicações para a origem dos aracnídeos, mas esta é perfeitamente compatível com o caráter de Palas Atena, ciumenta e vingativa como poucos.
(3) As citações da Apologia de Tertuliano que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) BIRCH, Samuel. History of Pottery vol. 1. London: John Murray, 1858.


Veja também:

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Uma cerimônia feudal na selva da América do Sul

A homenagem era uma cerimônia típica do feudalismo. Por meio dela é que formalmente eram reconhecidos os laços de suserania e vassalagem. Envolvia, de um lado, a obrigação de proteção (por parte do suserano) e, de outro, vários deveres, dentre os quais, o do serviço militar (por parte daquele que se reconhecia como vassalo). Não é difícil perceber que a homenagem fazia sentido dentro da sociedade medieval, em que as guerras eram frequentes e os exércitos, constituídos por gente da nobreza, não eram e nem podiam ser muito numerosos.
Agora, leitores, respirem fundo: é que iremos encontrar uma autêntica cerimônia de homenagem no ano de 1659, não na Europa, mas no Brasil. O autor da ideia foi ninguém menos que o padre Antônio Vieira - sim, o jesuíta famoso por seus sermões. Está na hora de uma explicação.
Antônio Vieira, que exercia funções diplomáticas para o monarca português, um dia entalou na cabeça que queria vir ao Brasil para trabalhar na catequese de indígenas. Veio, e logo percebeu que seu maior obstáculo eram os colonizadores, que tinham, sim, grande interesse nos índios, mas para escravizá-los. O jesuíta não perdeu tempo, e obteve do rei uma ordem pela qual, ao menos oficialmente, o trabalho compulsório de indígenas ficaria restrito àqueles capturados em "guerra justa". Os demais deviam ser catequizados pelos missionários, sob as ordens do próprio Vieira.
Sucede que, há tempos, portugueses e vários grupos indígenas conhecidos como nheengaíbas viviam às turras, fazendo estragos de parte a parte, sempre que era possível. Pôs-se o padre Vieira a negociar a paz, e, surpreendentemente, os indígenas confiaram nele e concordaram em depor as armas. 
Mas era preciso dar um aspecto oficial ao acordo. Vieira achava que os índios, atribuindo grande importância às cerimônias pomposas, seriam mais fiéis à palavra empenhada se um juramento fosse feito de forma solene. Que fazer? Organizou-se uma homenagem, com tanto luxo quanto as circunstâncias permitiam, na presença de chefes indígenas já catequizados, de portugueses e dos chefes dos nheengaíbas. O melhor é deixar que o próprio Antônio Vieira conte o que aconteceu, tendo por cenário uma pequena igreja construída pelos índios:
"Ao lado direito da igreja estavam os principais (¹) das nações cristãs com os melhores vestidos que tinham, mas sem mais armas que as suas espadas. Da outra parte estavam os principais gentios (²) despidos e empenados ao uso bárbaro, com seus arcos e flechas na mãos; e entre uns e outros os portugueses. Logo disse missa o padre Antônio Vieira, em um altar ricamente ornado [...], à qual [...] assistiam os gentios de joelhos [...]." (³)
Depois da missa, o mesmo Vieira perguntou aos nheengaíbas se era de sua vontade que viessem a ser vassalos do rei de Portugal. A pergunta foi respondida afirmativamente, e, ato contínuo, cada chefe, ajoelhado e pondo as mãos entre as do padre, proferiu o seguinte juramento:
"Eu Fulano, principal de tal nação, em meu nome e de todos os meus súditos e descendentes, prometo a Deus e a El-Rei de Portugal a fé de Nosso Senhor Jesus Cristo, e de ser (como já sou de hoje em diante) vassalo de Sua Majestade, e de ter perpétua paz com os portugueses, sendo amigo de todos os seus amigos e inimigo de todos os seus inimigos, e me obrigo de assim o guardar inteiramente para sempre." (⁴)
Feito o juramento, cada chefe beijava a mão ao padre e era por ele abençoado. Desnecessário é dizer que tudo se fazia com a assistência de intérpretes. Abraços e festas completaram o evento.
Convenhamos, leitores, que a cena descrita por Vieira é digna de um exercício de imaginação. Tentem, portanto, visualizar toda essa pantomima medieval em meio à selva amazônica. O rei, a quem se acrescentavam tantos vassalos, de tudo foi informado por carta datada de 11 de fevereiro de 1660.

(1) Caciques ou chefes indígenas.
(2) Chefes dos nheengaíbas.
(3) VIEIRA, Pe. Antônio S. J.  Cartas vol. 2. Lisboa Ocidental: Oficina da Congregação do Oratório, 1735, p. 34 e 35.
(4) Ibid., p. 37.


Veja também:

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Terremotos no Império Romano

Parte expressiva do território até onde se estendeu o Império Romano estava em áreas sujeitas a tremores de terra mais ou menos frequentes. Não é surpresa, portanto, que, nos registros feitos por autores da Antiguidade, os terremotos fossem seguidamente mencionados.
Tácito (¹), por exemplo, citou vários incidentes relativos a tremores: um que atingiu Pompeia alguns anos antes que a cidade fosse soterrada pelo Vesúvio (²), uma sucessão de tremores sentidos em Roma no ano 52 d.C., provocando o desabamento de casas (³), e um grande terremoto que, nos dias de Tibério, arruinou doze cidades da Ásia Menor (⁴), entre outros.  
Plínio, o Velho (⁵), em extensa dissertação no Livro II de sua Naturalis Historia, afirmou que "os babilônios achavam que terremotos e rachaduras, como tudo o mais, eram consequência da ação das estrelas." (⁶) Sensatamente cético, Plínio procurava causas naturais para os tremores de terra, ainda que nada soubesse sobre a existência de placas tectônicas. Já entendia, porém, que alguns terremotos são seguidos por tsunamis (⁷): "Tremores de terra são seguidos por inundações que vêm do mar" (⁸), escreveu.
Mais enfático que Tácito em relação ao mesmo incidente, Plínio entendia que o terremoto ocorrido nos dias de Tibério fora o maior de que, até então, se tivera notícia:
"O maior tremor de terra de que os mortais têm memória aconteceu durante o principado de Tibério César, quando doze cidades da Ásia vieram ao chão em uma noite [...]." (⁹)
É claro que, para os supersticiosos romanos, tremores de terra, assim como outros fenômenos naturais, eram vistos como prodígios, manifestações da ira dos deuses que deviam ser conjuradas com sacrifícios. Tertuliano (¹º) referiu, na Apologia, que tremores estavam entre os pretextos que conduziam à perseguição de cristãos no Império:
"Se o Tibre alcança os muros da cidade, ou se o Nilo não transborda o suficiente para as plantações, se o céu, sem nuvens, não traz chuva, se há tremor de terra ou se ocorre escassez de trigo, ou se grassa a peste, o povo não tarda a gritar para que joguem os cristãos ao leão."
Voltemos a Tácito. Quando um terremoto de maiores proporções ocorria dentro dos limites do Império Romano, era usual que recursos públicos fossem oferecidos - e aceitos - para reparar os danos materiais. Bem, assim era na maioria dos casos. Prodígio, mesmo (¹¹), a ponto de merecer registro no Livro XIV dos Annales, ocorreu no ano 814 da fundação de Roma (¹²): "Naquele ano, a ilustre cidade de Laodiceia, na Ásia, que havia sido arrasada por um terremoto, foi reconstruída com seus próprios recursos, sem receber qualquer auxílio de nossa parte [de Roma]." (¹³) Pelo visto, esse fato foi novidade até para Tácito, tão acostumado às manhas de seus contemporâneos.

(1) 47 - 120 d.C.
(2) TÁCITO, Annales, Livro XV.
(3) Ibid., Livro XII.
(4) Ibid., Livro II.
(5) 23 - 79 d.C.
(6) PLÍNIO, Naturalis Historia, Livro II.
(7) Ainda que a palavra "tsunami" lhe fosse, como é óbvio, desconhecida.
(8) PLÍNIO, Op. cit., Livro II.
(9) Ibid. 
(10) 160 - 220 d.C.
(11) Até para os critérios do Século XXI.
(12) 61 d.C.
(13) Todas as citações das obras de Plínio, Tácito e Tertuliano que aparecem nesta postagem foram traduzidas por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


Veja também:

terça-feira, 1 de agosto de 2017

A inspeção das marmeladas

O que seria motivo de preocupação entre os administradores da vila de São Paulo de Piratininga, lá pela última década do Século XVI? As atas da Câmara de São Paulo mostram, entre os assuntos recorrentes, a necessidade de zelar por cercas e muros (como prevenção contra ataques de indígenas) e o cuidado com a conservação dos caminhos que levavam à vila - em um documento datado de 1584, cuja autoria é atribuída a Anchieta, o "Caminho do Mar", que ligava o planalto à vila litorânea de Santos, é descrito como um "dos mais trabalhosos caminhos que [...] há em muita parte do mundo" (¹). Além disso, eram frequentes os problemas com a prática de preços exorbitantes no incipiente comércio local; reclamações quanto a pesos e medidas desonestos não eram nenhuma raridade. 
Então...
Então, na ata da Câmara de São Paulo, relativa ao dia 22 de fevereiro de 1597, encontra-se o delicioso registro de uma ordem para que todos os que faziam marmeladas comprovassem a qualidade do produto, "para se saberem os que as fazem boas ou más". No melhor estilo da época, e já prevendo desobediência, a ordem vinha acompanhada da seguinte observação: "[...] com pena de perderem as marmeladas para o conselho, cativos e acusador, e mil réis de pena [...]."
O zeloso escrivão (naquele ano era Belchior da Costa) tratou de assinalar, também, no final dos apontamentos relativos àquele dia: "Foi apregoada a postura [...] das caixas de marmelada". Ou seja, as autoridades devem ter feito "passar bando", conforme o uso costumeiro. Fico imaginando o teor da proclamação que poderia ser lida pelas ruas, acompanhada por toque de caixa...
Marmelo (⁶)
Não pensem, leitores, que as marmeladas eram questão de pouca importância! Para a insolente vilazinha que era São Paulo, estabelecida serra acima (quando quase todas as vilas eram fundadas no litoral), cuja população obedecia às ordens vindas do Reino apenas quando queria (porque não havia quem a obrigasse a outra coisa), que aprisionava índios para escravização e desafiava os missionários jesuítas, fazendo pouco-caso de referências sutis ou explícitas à Inquisição - sim, para os moradores de São Paulo, as marmeladas eram importantes economicamente. Dez anos antes da ordem da Câmara para inspeção dos tais doces, Gabriel Soares, senhor de engenho na Bahia, observou, em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, como parte de uma lista do que se produzia em São Paulo: "os marmelos (²) são tantos que os fazem de conservas, e tanta marmelada que a levam a vender por as outras capitanias" (³). 
Quando não havia refrigeração, alimentos que resistiam por longo tempo, como peixe seco, biscoitos, feijão, farinha de mandioca e marmeladas (geralmente embaladas em caixas de madeira), eram bastante valorizados como suprimento para quem viajava, fosse por mar ou por terra (⁴). A produção de marmeladas de São Paulo era suficiente para ser exportada para outras capitanias, daí a relevância da ordem dada pelos vereadores (⁵), juízes e procurador naquele distante fevereiro de 1597. Não era implicância ou rabugice de quem mandava. Sabendo o quanto as fraudes eram pretexto de rusgas na jovem povoação, havia sabedoria em zelar pela reputação das marmeladas, ainda que hoje isto pareça até ridículo.

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 320.
(2) O marmeleiro não é nativo do Brasil; entende-se, portanto, que, ainda no Século XVI, seu cultivo já estava perfeitamente adaptado às condições do Planalto Paulista. Mais tarde, doces feitos com outras frutas, pelo mesmo processo da marmelada, receberiam, genericamente, também esse nome.
(3) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 99.
(4) A monção do governador Rodrigo César de Meneses, que foi a Cuiabá em 1726, levava, entre diversos outros itens, nada menos que 144 caixas de marmelada.
(5) Nesse tempo, eram só dois: Antônio de Proença e Balthazar de Godoy.
(6) STURM, Jacob. Deutschlands Flora in Abbildungen nach der Natur. Nürnberg: 1796. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também: