quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

A atuação dos missionários jesuítas durante uma epidemia de varíola no Século XVI

A varíola foi um dos maiores terrores dos tempos coloniais. Matava, muitas vezes, mas a sobrevivência a ela era igualmente temida - não raro, desfigurava e/ou resultava em cegueira. Sendo desconhecida na América antes da chegada de europeus em fins do Século XV, mostrou-se particularmente letal entre a população indígena, havendo mesmo quem tenha acusado os conquistadores espanhóis de tê-la deliberadamente "apresentado" à população asteca. A vacinação foi introduzida no Brasil em fins do Século XVIII, mas, até lá, muita gente, de todas as idades, perderia a vida por causa da terrível doença. 
Se levarmos em conta o terror que a varíola inspirava, torna-se ainda mais surpreendente o comportamento dos missionários jesuítas quando uma epidemia de varíola irrompeu no Brasil, fazendo mortes numerosas entre indígenas. No primeiro século da colonização, a assistência médica aos colonizadores era praticamente nula - que se poderia supor, então, que ocorresse relativamente à população nativa? Vejamos o que diz um documento atribuído a Anchieta (¹):
"Em tempo das bexigas [varíola] [...], os padres andavam com alguns moços pelas casas dos índios, lavando-os e limpando-os; era tal a doença das bexigas que, curando-os desta maneira, muitas vezes lhes ficava a pele e a carne dos doentes pegada nas mãos, e o cheiro era tal que se não podia sofrer; os padres lhes acudiam com lenha e água, e andavam com os índios sãos buscando e repartindo isto, e em casa dos que tinham mandavam fazer de comer para os mais necessitados, e em alguma parte se fazia de comer cada dia para sessenta a setenta pessoas, e se os padres lhes faltavam com isto, faltava-lhes o remédio." (²)
Por suposto, ao lidar com os enfermos, os missionários tinham em vista a catequese. Prossegue o mesmo documento:
"De noite e de dia andavam os padres ministrando-lhes os sacramentos da confissão e unção sem descansar, nem terem tempo para rezar suas horas, enterrando cada dia dez e doze, ajudando-lhes a fazer as covas e trazê-los à igreja para os encomendar e enterrá-los [...]." (³)
Ao que se supõe, os padres não tinham qualquer ideia quanto ao modo como a doença se propagava, ou, se tinham, parece que enfrentavam corajosamente a possibilidade de contágio. No entanto, devido às condições de higiene em que atuavam, é razoável perguntar se, no empenho por atender às necessidades básicas dos enfermos, não acabavam, eles mesmos, quando iam de casa em casa, contribuindo para que mais gente adoecesse. Vários dentre os jesuítas estiveram doentes, embora não fique claro, pela maneira como se expressa o autor do documento (quem quer que seja ele), se tiveram varíola ou outra moléstia qualquer:
"[...] Dos grandes trabalhos que nestas doenças os padres tiveram com eles, vieram a adoecer, de que estiveram muito mal [...]." (⁴)

(1) Embora haja alguma dúvida quanto ao verdadeiro autor, esse documento é autenticamente do Século XVI. É provável que a epidemia de varíola referida seja a de 1563.
(2) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 380.
(3) Ibid.
(4) Ibid., pp. 380 e 381.


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