Intrigas administrativas, antropofagia e escravização de indígenas no palco da colonização no Século XVI
Uma carta escrita pelo jesuíta Manuel da Nóbrega em 1549, cujo destinatário era o padre-mestre Simão Rodrigues, trazia a seguinte observação, com respeito àquele que viesse a ser indicado para o cargo de primeiro bispo do Brasil: "Venha para trabalhar e não para ganhar." (¹) Alguns anos depois, o mesmo Nóbrega, em carta ao cardeal infante Dom Henrique, ainda diria: "Certifico a Vossa Alteza que nesta terra, mais que em nenhuma outra, não poderá um governador e um bispo, e outras pessoas públicas, contentar a Deus Nosso Senhor e aos homens, e o mais certo sinal de não contentar a Nosso Senhor é contentar a todos, por estar o mal mui introduzido na terra por costume." (²)
D. Pedro (ou Pero) Fernandes Sardinha foi o escolhido para primeiro bispo do Brasil. Autores de seu tempo descreveram-no como homem virtuoso e atento às questões pertinentes à Igreja no território colonial, o que não impediu (ou até favoreceu) que entrasse em atrito com o governador-geral Duarte da Costa, cujo filho era tido pelo bispo como um péssimo exemplo para os habitantes da Bahia. O resultado da contenda foi que D. Pedro Fernandes Sardinha deixou a função que ocupava e se preparou para voltar ao Reino, a fim de prestar contas dos entreveros com o governador. O que aconteceu em seguida contribuiu para tornar este bispo tristemente famoso. Gabriel Soares, autor do Século XVI, escreveu:
"Aqui se perdeu o bispo do Brasil Dom Pedro Fernandes Sardinha com sua nau vinda da Bahia para Lisboa, em a qual vinha Antônio Cardoso de Barros, provedor-mor, que fora do Brasil, e dois cônegos e duas mulheres honradas e casadas, muitos homens nobres e outra muita gente, que seriam mais de cem pessoas brancas, afora escravos, a qual escapou toda deste naufrágio, mas não do gentio caeté, que neste tempo senhoreava esta costa da boca deste rio de São Francisco até o da Paraíba. Depois que estes caetés roubaram este bispo e toda esta gente de quanto salvaram, os despiram e amarraram a bom recado, e pouco a pouco os foram matando e comendo, sem escapar mais que dois índios da Bahia com um português que sabia a língua, filho do meirinho da correição." (³)
Mais conciso e mais virulento, o jesuíta Simão de Vasconcelos assim registrou o caso um século mais tarde, em suas Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil:
"Em uma enseada, junto a este rio [São Francisco], alguns anos depois sucedeu o triste desastre do naufrágio do bispo Dom Pedro Fernandes Sardinha, primeiro do Brasil, que dando nela à costa, foi cativo dos índios caetés, cruéis e desumanos, que conforme o rito de sua gentilidade, sacrificaram à gula e fizeram pasto de seus ventres, não somente aquele santo varão, mas também a cento e tantas pessoas, gente de conta, a mais dela nobre, que lhe faziam companhia voltando ao Reino de Portugal." (⁴)
É verdade, leitores. Dom Pedro Fernandes Sardinha e seu ilustre séquito foram vítimas de antropofagia em julho de 1556. É difícil saber o quanto andavam más as relações entre colonizadores e caetés anteriormente ao naufrágio, já que os registros da época, à exceção dos feitos por missionários, tendem a generalizar as características dos povos indígenas, atribuindo a eles toda a responsabilidade quando se declarava uma situação de confronto. Sabemos, porém, que, alguns anos mais tarde, sendo Mem de Sá o governador-geral, determinou-se que todos os "gentios do Caeté" deviam, como castigo, ser escravizados, independente de quem estivesse ou não envolvido na morte do bispo e de seus companheiros de viagem. Uma informação atribuída a José de Anchieta mostra que, afinal, a ordem do governador foi vista como uma licença para matar e escravizar todos os indígenas que fossem encontrados, de tal maneira que um massacre (o de Dom Pedro Fernandes Sardinha) foi seguido de outro ainda maior:
"Neste [...] ano de 1562, estando todos os índios com muita paz e quietação em suas igrejas, e fazendo-se muito fruto nas almas, quis o governador Mem de Sá castigar os índios do Caeté [...], por terem morto o bispo Dom Pedro Fernandes, e outra muita gente que desta Bahia partiu para o Reino em uma nau [...], pronunciou o dito governador sentença contra o dito gentio do Caeté, que fossem escravos onde quer que fossem achados sem fazer exceção nenhuma, nem advertir no mal que podia vir à terra.
[...] Nas igrejas dos padres (⁵) havia muito gentio que procedia daquele, mas criados e nascidos nesta parte da Bahia, que não viram e nem foram em tais mortes, mas como o demônio sabia que era esta a melhor invenção que podia haver para destruir o que estava feito e impedir que não fosse por diante a conversão do gentio, ajudou-se do desejo que os portugueses tinham de haver escravos, tanto que em breves dias se despovoou toda a terra [...]." (⁶)
Abreviando a história: quando os indígenas compreenderam o que estava acontecendo, trataram de fugir com suas famílias para o sertão. Quem esperaria outra coisa?
O governador ainda tentou consertar o erro, mas sem muito resultado:
"Vendo o governador quão mal isto saíra, e quantos males e pecados daqui resultaram, que pagavam os inocentes pelos culpados, e que a terra se destruíra em tão pouco espaço de tempo, revogou a sentença dos caetés, mas a tempo que já não havia remédio, porque como os homens andavam já tão metidos no saltear dos índios, como ainda agora hoje em dia se vê [...], usavam outra manha não menos perigosa, onde os índios se iam esconder para fugir deles, e faziam com eles que se vendessem uns aos outros, dizendo que eram caetés [...]." (⁷)
Vejam, leitores, que a morte do bispo Dom Pedro Fernandes Sardinha ocorreu em 1556, e foi somente uns seis anos mais tarde que o novo governador-geral resolveu punir os responsáveis. Não se trata, aqui, de defender a antropofagia - isto está fora de questão - mas, como duvidar de que, tanto tempo depois, o suposto castigo aos caetés não passasse de um reles subterfúgio, de uma tentativa de aplicar um verniz de legalidade para o apresamento e escravização de indígenas?
(1) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 296.
(2) Ibid., p. 313.
(3) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, pp. 37 e 38.
(4) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, pp. 52 e 53.
(5) Referência aos missionários da Companhia de Jesus.
(6) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 355.
(7) Ibid., p. 356.
Veja também:
A igreja agiu erradamente,punindo o justo pelos pecadores.Os indios já estavam aqui, e a igreja deveria os ter respeitados.Em qualquer situação a igreja sempre quer e leva vantagem, sem pensar no outro como humano e sim como alguém q pode aumentar o numero de religiosos.Impondo a cultura aos indios que já possuia a sua.
ResponderExcluirOlá, Unknown,
ExcluirVejo que você não entendeu o assunto. Quem decidiu punir os índios caetés pela morte do bispo Dom Pedro Fernandes Sardinha foi o governador-geral, e não a Igreja. Se tiver tempo, leia o texto novamente e verá que quem informou sobre o massacre de índios, lamentando o fato, foi José de Anchieta, missionário jesuíta que trabalhava em favor da liberdade dos povos indígenas. É verdade que não se pode apoiar tudo o que a Igreja fez nesses tempos, mas devemos ser justos: na questão indígena, os missionários não só estavam dispostos a dar a vida pela liberdade dos ameríndios, como até, em alguns casos, morreram, de fato, para defesa de seus catecúmenos.
existe outra versão da história, onde o filho de Duarte da costa, perseguiu e matou o bispo...
ResponderExcluirO péssimo relacionamento entre o filho do governador-geral e o bispo gerou boatos. No entanto, toda a documentação que se tem aponta para a morte do bispo após o naufrágio, em um acontecimento que é consistente com o que acontecia na época até com frequência. A vida no Brasil desse tempo era uma aventura nem sempre gloriosa.
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