Em um assunto, pelo menos, os autores do Século XVI que escreveram sobre o Brasil eram unânimes: o de que os povos indígenas que habitavam as proximidades do litoral eram, em sua maioria, consumidores de carne humana. Hans Staden, por exemplo, anotou, no subtítulo de seu livro Zwei Reisen nach Brasilien (¹), que fazia a "descrição de uma terra de selvagens, comedores de carne humana". Outros autores seguiam aproximadamente o mesmo caminho, apontando o costume que tinham muitos grupos nativos de, ritualmente, abater e devorar os inimigos que haviam derrotado em uma guerra.
Indígenas abatendo prisioneiro (²) |
Pois bem, senhores leitores, vou apresentar-lhes, hoje, aquela que tenho como a mais saborosa (Ai! nada de trocadilhos...) das histórias que já li, envolvendo a questão da antropofagia. Vem ela relatada pelo Padre Simão de Vasconcelos, em sua Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, que foi escrita no Século XVII e, portanto, já um pouco distante, no tempo, do acontecimento narrado. Porém, esse autor afirmava ter-se servido de anotações manuscritas deixadas pelo Padre José de Anchieta, esse sim personagem de destaque do décimo sexto século.
Sem mais delongas, vamos à história.
Um padre jesuíta, em sua missão de catequese, chegou a uma aldeia indígena, onde encontrou uma vovó muitíssimo idosa, que reputou, pela fragilidade, estar já à beira da morte. Ora, eram os padres muito cautelosos em ministrar o batismo, mas em tais situações, in extremis, costumavam fazê-lo, tendo em vista o que entendiam ser para a salvação da alma de um catecúmeno, e desde que pudessem prepará-lo devidamente quanto às "coisas da fé". Portanto, pôs-se o padre a doutrinar a dita senhora, segundo julgava que fosse capaz de compreender, e ela parecia em tudo atender e concordar plenamente.
Animou-se com isso o missionário e, supondo que melhor faria sua tarefa se pudesse dar, ao lado do espiritual, algum conforto material à velhinha, perguntou-lhe se não desejava tomar algum alimento, para que pudesse estar um pouco mais forte.
Segue agora a narrativa de Simão de Vasconcelos:
"- Minha avó (assim chamam às que são muito velhas) se eu vos dera agora um pequeno açúcar, ou outro bocado de conforto de lá das nossas partes do mar, não o comeríeis?
Respondeu a velha, catequizada já:
- Meu neto, nenhuma coisa da vida desejo, tudo já me aborrece, só uma coisa me pudera abrir agora o fastio: se eu tivera uma mãozinha de um rapaz tapuia de pouca idade, tenrinha, e lhe chupara aqueles ossinhos, então me parece tomara algum alento; porém eu (coitada de mim), não tenho quem me vá flechar a um destes." (³)
Segue agora a narrativa de Simão de Vasconcelos:
"- Minha avó (assim chamam às que são muito velhas) se eu vos dera agora um pequeno açúcar, ou outro bocado de conforto de lá das nossas partes do mar, não o comeríeis?
Respondeu a velha, catequizada já:
- Meu neto, nenhuma coisa da vida desejo, tudo já me aborrece, só uma coisa me pudera abrir agora o fastio: se eu tivera uma mãozinha de um rapaz tapuia de pouca idade, tenrinha, e lhe chupara aqueles ossinhos, então me parece tomara algum alento; porém eu (coitada de mim), não tenho quem me vá flechar a um destes." (³)
Como veem os meus leitores, o problema não era exatamente falta de apetite!...
(1) STADEN, Hans. Zwei Reisen nach Brasilien. Marburg: 1557.
(2) DENIS, Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1837. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol 1 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 33.
(3) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol 1 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 33.
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