sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Por que Malthus (ainda) não tem razão

"E se em cada caso de namoro gorado morresse um homem, tinha já diminuído muito o gênero humano, e Malthus perderia o latim."
Machado de Assis, A Mão e a Luva

A população cresce em progressão geométrica, enquanto a produção de alimentos só aumenta em progressão aritmética. Está aí a simplificação das ideias de Thomas Robert Malthus, clérigo inglês que escreveu An Essay on the Principle of Population. Preocupadíssimo com o que lhe parecia um aumento sem precedentes da pobreza, propunha que os pobres empreendessem um estrito controle da natalidade, naturalmente pelo único método que, em seus dias, de fato funcionava: nada de relações sexuais, mesmo dentro do casamento. Em defesa de Malthus pode-se observar que ele não foi o primeiro e muito menos o último a aventar a ideia da abstinência para evitar a proliferação de bebês em famílias pobres. Além disso, naqueles tempos, as famílias, independente de condição social, eram quase sempre muito numerosas, ainda que muitos bebês não chegassem à idade adulta - a mortalidade infantil era elevada.
A pobreza que assombrava Malthus era bem velha. Ele é que talvez não a conhecesse, até que a dita cuja resolveu mudar de endereço, migrando de áreas campesinas para os miseráveis subúrbios de Londres e de outras cidades industriais da Inglaterra. 
A "profecia" de Malthus estava ancorada em observações feitas no Século XVIII e primeira metade do XIX. Por que é que não se concretizou tão prontamente?
Há várias razões para isso, e dentre elas, algumas decorrentes da própria industrialização. Junto com o invento de máquinas para as fábricas (principalmente de tecidos), vieram as máquinas para a lavoura. Pouca gente sabe, mas a agricultura foi beneficiada, por exemplo, com o uso de tratores a vapor. Isso, é claro, contribuía para ampliar as possibilidades de cultivo de áreas cada vez maiores, aumentando, por consequência, a oferta de alimentos. Um outro fator, o desenvolvimento da indústria química, favoreceu o aparecimento de uma série de produtos, tais como adubos e defensivos agrícolas, que muito contribuíram para o aumento da produção. É nesse sentido que se diz que, ao lado da chamada Revolução Industrial, ocorreu também uma Revolução Agrícola, estando uma profundamente relacionada à outra.
A industrialização acabou levando, mediante a produção em larga escala, a um barateamento de artigos como tecidos, de tal modo que mesmo os mais pobres já não andavam sujeitos ao uso de andrajos, como antigamente. É bastante provável que, já pelo final do Século XIX, em muitos lugares os trabalhadores e suas famílias tivessem uma expectativa de vida mais favorável do que a alcançada pela  nobreza nos séculos precedentes. Malthus estava errado?
Talvez apenas temporariamente.
Qualquer pessoa que tenha a cabeça no lugar ficará preocupada, se considerar o mundo de hoje. A população continua a aumentar e aumentar, enquanto as terras agricultáveis são danificadas por uma variedade de fatores. Danos ambientais sem precedentes (¹) levam à incerteza não só quanto ao suprimento de comida, mas também, e muito mais grave, quanto ao de água, até mesmo em lugares que eram tidos como verdadeiros paraísos aquáticos - os leitores sabem muito bem do que é que estou falando. E, pior, sem água suficiente, a agricultura se inviabiliza, os gêneros alimentícios tornam-se escassos, os preços sobem.
Malthus, Malthus, Malthus...
Ainda assim, sempre houve e sempre haverá quem veja vantagens no aumento da população, seja por razões religiosas, ou mesmo políticas. De acordo com Políbio de Megalópolis, um grego que foi contemporâneo de parte das Guerras Púnicas (²), os moradores de Tarento, na Península Itálica (³), contrariando o hábito de muitos outros povos, costumavam enterrar os mortos do lado de dentro das muralhas que protegiam sua cidade, uma vez que acreditavam piamente em um oráculo que lhes assegurara que seriam uma população tanto mais feliz quanto mais numerosa alcançasse ser...

(1) Ainda que não isoladamente.
(2) Entre Roma e Cartago.
(3) Era parte da chamada Magna Grécia.


Veja também:

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Escravos que usavam sapatos

Escravos podiam, no Brasil, ter um profissão específica - já tratei desse assunto aqui no blog. O que vou mostrar, hoje, é que esse costume era muito antigo, não se restringindo apenas aos dias do Império, quando a escravidão, afinal de contas, já declinava.
Pedro Taques de Almeida Paes Leme escreveu a sua Nobiliarchia Paulistana no Século XVIII. Tratando de um sujeito por nome João Pires das Neves, falecido em São Paulo no ano de 1720, informou:
"João Pires das Neves foi nobre cidadão de São Paulo, muito abastado e com grande tratamento. A sua fazenda era um como arraial, pelas casas que tinha, com numerosa escravatura de pretos e mulatos, e estes oficiais de artes fabris e mecânicas, os quais trajavam calçados."
Se tivermos paciência para dissecar esse trechinho, poderemos chegar a algumas constatações interessantes.
Em fins do Século XVII e início do XVIII a escravidão era usual na Capitania de São Vicente, imperando a escravidão de índios, não de negros e mulatos. Temos, portanto, um caso que fugia à regra, uma vez que os escravos de João Pires das Neves, de acordo com Pedro Taques, eram "pretos e mulatos". Para isso era preciso que fosse muito rico, já que a carência de moeda corrente em São Paulo é que, ao menos em parte, levava os colonizadores à escravização de índios, na impossibilidade de comprar africanos.
Acrescenta a Nobiliarchia que os escravos de João Pires eram "oficiais de artes fabris e mecânicas". Para manter cativos especializados em dedicação exclusiva a certas tarefas, devia haver muito trabalho para eles o tempo todo, o que nos leva a conjecturar se não atenderiam a serviços de terceiros, sendo a renda em proveito do ilustre fazendeiro. É certo que não se pode afirmar tal coisa, mas também seria imprudência descartar completamente a possibilidade, uma vez que há registros, ainda que não muito numerosos, de gente que mantinha oficinas nas quais escravos eram os "funcionários".
Finalmente, há o detalhe de que os escravos "trajavam calçados". Pedro Taques não mencionaria este pormenor não fora o fato de que era absolutamente incomum. No Brasil, o costume era que escravos andassem descalços, a fim de evidenciar diante da sociedade a sua condição servil. É bom recordar: o costume não foi inventado na Colônia. Vinha dos antigos romanos, que assim o faziam porque, de outro modo, poderia ser difícil, à primeira vista, distinguir um homem livre de um escravo. Afinal, em Roma não havia a possibilidade, com raríssimas exceções, de estigmatizar escravos com base na cor da pele. Além disso, muitos escravos tinham origem social elevada (gregos, por exemplo, derrotados em combate) e eram ocupados na educação de jovens patrícios romanos. A ausência de calçados era, então, a marca da perda da liberdade.
Por tudo isso, pode-se dizer, em conclusão, que, de fato, João Pires das Neves e seus escravos deviam ser, senão um espanto, ao menos um componente algo incomum na pequena São Paulo de seus dias.


*****

Debret também retratou uma dessas exceções, em que, aos escravos, permitia-se o uso de sapatos. É o que se vê nesta cena de casamento de escravos de uma família rica (*) no Século XIX. Nela, as personagens não só usam roupas apropriadas para uma ocasião especial como exibem, nos pés, os calçados que sua condição servil habitualmente proibia.


(*) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, vol. 3, Paris: Firmin Didot Frères, 1839. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Argumentos para um embaixador que deseja preservar a paz

Na Antiguidade havia povos muito briguentos. As guerras aconteciam pelos motivos mais fúteis, inclusive pelo prazer da contenda. Como veem os leitores, as coisas corriam mais ou menos como hoje, apenas com a diferença de que as armas então disponíveis não eram igualmente letais. 
Ainda assim, gente ajuizada compreendia que, na maioria dos casos, era prudente evitar a guerra, que, afinal, teria resultado imprevisível. 
Políbio de Megalópolis, um grego que viveu entre os romanos e foi contemporâneo de parte das Guerras Púnicas (¹), formulou alguns argumentos interessantes como sugestão aos embaixadores que, no exercício de sua funções, pretendessem a manutenção da paz. Escreveu ele:
"A guerra é semelhante à doença, enquanto a paz corresponde à saúde, de tal modo que, na paz, os enfermos se curam, enquanto que, na guerra, os saudáveis é que morrem; vigorando a paz, os velhos são sepultados pelos jovens, mas, na guerra, os jovens são sepultados pelos velhos; finalmente, na guerra, ninguém se acha seguro nem mesmo sob a proteção das muralhas, enquanto que na paz há tranquilidade até às fronteiras." (²)
Estas são boas ideias que deveriam ser consideradas pelos mandatários (e pelos mandões) que vivem sobre a superfície deste planeta já cansado de tantos conflitos inúteis e devastadores, não é mesmo? Principalmente porque, na hora dos grandes riscos, são os comandados que estão na frente da batalha, ao preço da própria vida, e não aqueles que ditam as ordens.

(1) Guerras entre Roma e Cartago, travadas entre 264 e 146 a.C., tendo como principal objetivo a hegemonia no Mediterrâneo ocidental.
(2) Tradução de Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


Veja também:

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

"Boca do Inferno" e "Braço de Prata"

Antônio de Sousa Meneses, que começou mandato como governador-geral do Brasil em maio de 1682, fez um governo absolutamente desastrado e, por isso, sequer chegou a cumprir no cargo os três anos costumeiros. Indispôs-se com gente importante da Bahia, desagradou ao povo em geral, ofendeu clérigos e, como se fora pouco, andava de grande amizade com um seu favorito que exercia o cargo de alcaide-mor, Francisco Teles de Meneses, personagem que, aliás, acabou vítima de assassinato em razão das intrigas políticas em que se envolveu.
O senhor governador tinha o curioso apelido de "Braço de Prata". Explica-se: havia perdido um braço ao lutar em Pernambuco contra holandeses. Como o Século XVII não foi nenhuma era dourada da cibernética, o braço perdido foi substituído por um de prata, daí a alcunha que lhe deram.
Ocorre que, nos dias do Governo-Geral de Antônio de Sousa Meneses, vivia em Salvador ninguém menos que o poeta barroco Gregório de Matos Guerra, esse também de famoso apelido, ou seja, o "Boca do Inferno". Papel e tinta era todo o arsenal necessário para que, em seus versos, Gregório de Matos imortalizasse a vida e a obra do péssimo governador. Vão aqui uns poucos exemplos de quantos louvores andou tecendo o "Boca do Inferno" em honra ao "Braço de Prata".
O primeiro descreve a chegada de Antônio de Sousa Meneses à Cidade da Bahia:

"Quando desembarcaste da fragata,
Meu Dom Braço de Prata,
Cuidei, que a esta cidade tonta e fátua
Mandava a Inquisição alguma estátua
Vendo tão espremida salvajola
Visão de palha sobre um mariola."

Critica, depois, nos dois trechos seguintes, tanto o caráter quanto a administração do governador-geral:

"O certo é seres um caco,
um ladrão da mocidade,
por isso nesta cidade
corre um tempo tão velhaco:
farinha, açúcar, tabaco
no teu tempo não se alcança,
e por tua intemperança
te culpa o Brasil inteiro,
porque sempre és o primeiro
móvel de qualquer mudança."

"Dizem que sou um velhaco,
e mentem por vida minha,
que o velhaco era o Governo,
e eu sou a velhacaria.
Quem pensara e quem dissera,
quem cuidara, e quem diria,
que um braço de prata velha
pouca prata, e muita liga!"

Uma observação final: percebe-se que Gregório de Matos não nutria, também, grande estima pela cidade de Salvador de seus dias...


Veja também:

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Um pequeno degrau móvel para as princesas

Como princesas e outras damas importantes subiam e desciam de carruagens


Não sei se alguém dos leitores já terá imaginado - talvez ao ler alguma coisa da literatura brasileira do Século XIX - quão complicada era a vida das jovens e senhoras de alta posição social, cada vez que tinham de subir ou descer de uma carruagem, coche ou outro veículo qualquer. Sim, porque a moda, com seus longos vestidos, geralmente dotados de armações, não era exatamente um elemento facilitador dos movimentos...
Lembremo-nos, ainda, de que muitas mulheres usavam espartilhos (que horror!), e teremos uma ideia de como era difícil andar com semelhante indumentária, até porque a maioria das damas importantes não era dada a fazer quaisquer exercícios físicos, no sentido que hoje atribuímos à expressão, ou seja, o de atividades esportivas.
Ora, sendo assim, como é que se evitava comprometer a elegância que convinha a gente tão importante, sempre que fosse preciso entrar ou sair de uma carruagem?
Simples: um criado (livre ou cativo) acompanhava a dama que saía a passeio, levando para ela um pequeno degrau móvel que era usado quando necessário. Valia a mesma prática para as moças e senhoras que desejavam andar a cavalo. Então, cada vez que a dama ia entrar em sua carruagem ou montar em um cavalo, o dito criado apresentava-se com o degrau, repetindo a operação quando a madame pretendia descer ou desmontar. 
Como se vê, esse luxo era para poucas. O costume parece ter-se introduzido no Brasil com as princesas e outras damas de importância que vieram ao Rio de Janeiro com o Príncipe Regente Dom João (1808), mas perdurou, entre as mulheres que podiam ter servidores para o dito degrau, enquanto foi corrente o uso de carruagens.


*****

Em 1890, um catálogo americano (de R. S. Luqueer & Co.) oferecia um curioso acessório para pequenas carruagens, que pode ser visto na imagem abaixo:




Veja também:

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

O laconismo dos espartanos

"...a diplomacia é a arte de gastar palavras, perder tempo, estragar papel, por meio de discussões inúteis, delongas e circunlocuções desnecessárias e prejudiciais."
                                          Machado de Assis, Diário do Rio de Janeiro, 24 de janeiro de 1865

Esparta tornou-se famosa pelo militarismo, pelo estilo de vida frugal de seus habitantes, pela educação severa ministrada à juventude. Mas também ficou conhecida pelo hábito que os espartanos eram levados a adquirir, desde a infância, de falar apenas o estritamente necessário. Esse costume recebeu o nome de "laconismo". Explica-se: Esparta ficava na Lacônia, que era parte do Peloponeso, que era parte da Antiga Grécia. 
Consta que Xerxes, soberano persa, enviou um embaixador aos espartanos, exigindo deles que lhe entregassem "água e terra", uma expressão que, na prática, equivalia a dizer: "Rendam-se, espartanos! Quero tudo, sem condições ou reservas". 
De acordo com Políbio de Megalópolis, ao invés de discutir com o diplomata (como fariam quase todos os povos, até como estratégia para ganhar tempo), os gregos de Esparta, que nunca foram paradigma de sutileza nas relações com estrangeiros, limitaram-se a jogar o embaixador dentro de um poço e, depois, cobriram-no de terra, dizendo ao sujeito que fosse relatar a Xerxes que já havia conseguido o que lhe mandara exigir.
Laconismo às últimas consequências.


Veja também:

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Tragédia no carnaval

Um crime duplo que abalou São Paulo no Século XVII


Podem estar certos os leitores que o episódio de hoje não foi extraído de nenhum jornal sensacionalista da atualidade - mas bem poderia figurar em algum, não fora o fato de ter ocorrido no Século XVII. Como verão, é história das mais escabrosas, contada por Pedro Taques de Almeida Paes Leme em sua Nobiliarchia Paulistana.
Alberto Pires, casado com Leonor de Camargo, foi-se a celebrar o "entrudo", o carnaval daqueles tempos. Diz Pedro Taques:
"Foi Alberto Pires extremosamente amante de sua mulher, em um dos dias de carnes tolendas, como chamam em Castela, e de entrudo no Brasil, quando Alberto Pires, em brinquedos dos que o inveterado costume destes dias introduziu, sem desculpa na maior parte dos reinos da Europa, sucedeu receber Leonor de Camargo Cabral, do próprio marido, uma limitada pancada [sic!!!] na fonte da parte esquerda, e caiu no mesmo instante morta. Esta casualidade não teve testemunhas de vista, que acreditassem a inocência do sucesso, para ficar o marido livre da suspeita de homicida." 
Bem avisei ao leitores que a história era cabeluda. Do modo como narrou Taques, dá-se a entender que a desdita ocorreu por acidente. Mas não para por aí...
O próprio Pedro Taques reconhecia não ter melhores testemunhos sobre o caso senão os depoimentos de idosos que se lembravam do acontecido. Diz, no entanto, que era corrente em  São Paulo que, desesperado com a morte da mulher, Alberto Pires teve a ideia sinistra de "armar uma cena" para inocentar-se do crime. Convidou parentes para celebrar o entrudo em sua casa e, estando um seu cunhado já perto, matou-o e colocou o corpo ao lado do de D. Leonor de Camargo. Em seguida, reuniu a família e alegou ter surpreendido a esposa e o cunhado em flagrante adultério. Em "defesa da honra", teria matado a ambos. 
Qual foi a reação dos circunstantes a tamanha lorota? Conta Pedro Taques:
"Mandou logo chamar aos seus parentes a toda pressa e aceleração, e acudindo muitos, a estes publicou que, em desagravo da sua honra, matara os adúlteros que lhe ofendiam a pureza do tálamo sacramental, cujos corpos estavam no mesmo lugar onde tinham cometido a torpeza. Sem proceder o mais mínimo acordo de reflexão se arrebataram os ânimos enfurecidos dos parentes do agressor Alberto Pires, que lhe aplaudiram a insolência como ação briosa, com que lavara a mancha da sua desonra no próprio sangue daqueles adúlteros."
Não se escandalizem os leitores com os costumes que vigoravam naqueles tempos; nós seguimos adiante, já que o caso está longe de terminar. Havia também o outro lado, o partido dos que haviam morrido... Continua Pedro Taques:
"Então os irmãos dos mortos, em numeroso corpo de armas (cada partido solicitava o despique pela dor que lhe ocupava) procuraram também lavar a ofensa de sua mágoa no mesmo sangue do autor dela, tirando-se-lhe a vida a ferro frio."
É possível imaginar o ambiente na pequena São Paulo de fins do Século XVII diante desses acontecimentos? Alberto Pires, que assassinara a mulher e o cunhado, fugiu e ocultou-se em casa de sua mãe, Dona Inês Monteiro, uma fazendeira rica e influente. Ainda assim os que lhe desejavam a morte foram à fazenda pelas horas da noite, ameaçando incendiar a casa e demais instalações se o criminoso não lhes fosse entregue. Por respeito às palavras veementes de Dona Inês, acabaram desistindo (momentaneamente) de que a justiça se fizesse ali mesmo. Alberto Pires foi preso e depois levado a Santos, de onde, por mar, devia seguir para o Rio de Janeiro, e dali para a Bahia, diante de cujo tribunal responderia por seus atos.
A poderosa mãe-fazendeira seguiu por terra, imaginando manobrar pela libertação do filho, conforme registrou Pedro Taques:
"D. Inês Monteiro, logo que de São Paulo descera para a vila de Santos o desgraçado filho, se pôs em marcha por terra a demandar a vila de Paraty, e passar-se à cidade do Rio de Janeiro (onde por parte de seu pai tinha parentes da família de Alvarengas de avultado merecimento), com firmes esperanças de libertar seu filho à custa de toda despesa de dinheiro."
Apenas uma rápida observação - estão notando os leitores as práticas da época para obstar a ação da Justiça? Então, respirem fundo, que já nos avizinhamos ao desfecho.
Os tremendos esforços de Dona Inês Monteiro foram completamente frustrados. A pequena embarcação que levava Alberto Pires enfrentou contratempos no mar e, em lugar de ir diretamente ao Rio de Janeiro, aportou na Ilha Grande. Logo a notícia da chegada de Dona Inês Monteiro ao Rio foi dada aos vingadores (e vingativos) parentes ofendidos, que não perderam a ocasião que se lhes ofereceu no momento em que o réu saía da Ilha Grande com destino ao Rio de Janeiro, já que, alcançando-o, "lhe puseram ao pescoço uma grande pedra e o lançaram vivo ao mar, em cujas águas teve o seu sepulcro, e para logo fizeram com que a embarcação tomasse o rumo para a vila de Santos, o que executou o mestre da sumaca, ou porque o temor o venceu, ou o dinheiro o obrigou." 
Pedro Taques, conquanto admitisse ter dúvidas quanto a detalhes do sucedido, tinha a virtude de não economizar palavras quando se tratava de contar as velhacarias que sabia terem ocorrido em sua amada São Paulo, até porque acontecimentos da mesma estirpe não eram raros no Brasil de séculos atrás.
É isso, por hoje, senhores leitores. Têm aqui o ponto final.


Veja também:

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Rio Negro

Jovem barqueiro no rio Negro - AM

Muito apreciado no Século XIX, o Dicionário Geográfico, Histórico e Descritivo do Império do Brasil, de J. O. R. Milliet de Saint-Adolphe (publicado em 1845, quando o jovem D. Pedro II já ocupava o trono), fornecia um grande número de informações sobre o País, há pouco independente, e sobre o qual havia, então, escassas notícias confiáveis. É certo, porém, que uma obra dessa natureza, quando muito do território brasileiro era completamente desconhecido, devia conter falhas e imprecisões, que, todavia, em nada desmerecem sua importância.
Vamos a um exemplo prático, com a descrição que o Dicionário fazia do rio Negro, afluente à margem esquerda do grande rio Amazonas:
"Rio da Província do Pará (...), chamado pelos indígenas Guariguacuru, nome que os primeiros exploradores portugueses trocaram no de Negro, por isso que suas águas com serem límpidas têm certa tinta escura, mormente se se comparam com as águas louras do Hiapura, com o qual corre paralelamente obra de 10 léguas antes de ajuntar-se com o Amazonas." (*)
"Certa tinta escura"?!!!...
O rio Negro, não tem, em seu leito, grande quantidade de partículas argilosas, já que suas águas correm por terreno rochoso. Além disso, em virtude da decomposição da grande quantidade de material orgânico que a floresta deposita ao longo de seu curso, há liberação de ácidos que também contribuem para a aparência escura da água, daí o nome - rio Negro. Essas são duas das explicações de maior aceitação atualmente.


Embarcação em viagem pelo rio Negro - AM

Saint-Adolphe não tinha, é claro, como percorrer por si mesmo, com todas as dificuldades de deslocamento que havia em seu tempo, todo o território que sua ambiciosa obra descrevia. Dependia de informações de outros autores, de alguns dados oficiais, de registros feitos por expedicionários das várias missões estrangeiras que andavam percorrendo o Brasil (coisa que, aliás, era moda, na época). O valor do seu Dicionário Geográfico, Histórico e Descritivo do Império do Brasil estava em sistematizar informações e atribuir-lhes relevância, fato que ganha maior significado se levarmos em conta que, no Século XIX, mesmo os brasileiros de maior instrução pouco sabiam sobre seu próprio país, dando antes preferência ao estudo e conhecimento de outras nações, em particular as da Europa.

(*) SAINT-ADOLPHE, J. O. R. Milliet de. Dicionário Geográfico, Histórico e Descritivo do Império do Brasil vol. 2. Paris: J. P. Aillaud, 1845, p. 147.


Veja também:

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Circunstâncias em que era possível cancelar a alforria de um escravo liberto

Um dos modos pelos quais um escravo podia vir a ser um homem livre era a alforria, isto é, a concessão de liberdade definitiva, por decisão de seu senhor, confirmada por escritura legalmente válida. Porém, sob algumas circunstâncias, as Ordenações do Reino (¹) permitiam a revogação da carta de alforria. Lê-se no Livro 4º, Título LXIII, § 7:
"Se alguém forrar seu escravo, livrando-o de toda a servidão, e depois que for forro, cometer contra quem o forrou alguma ingratidão pessoal em sua presença ou em ausência, quer seja verbal, quer de feito e real, poderá esse patrono revogar a liberdade que deu a esse liberto e reduzi-lo à servidão em que antes estava, e bem assim por cada uma das outras causas de ingratidão (...)."
Convenhamos, "ingratidão pessoal" acabava soando como coisa demasiadamente vaga, tornando instável a situação do liberto. No Brasil, a melhor coisa que um liberto por alforria da parte do senhor podia fazer (não era dos fatos mais comuns), era "dar no pé", e ir viver sua vidinha bem longe do tal patrono.
No Reino havia ainda uma outra razão pela qual a alforria poderia ser revertida, conforme o Livro 4º, Título LXIII, § 8:
"E bem assim, sendo o patrono posto em cativeiro, e o liberto o não remir, sendo possante para isso, ou estando em necessidade de fome e o liberto lhe não socorrer a ela, tendo fazenda, por que o possa fazer, poderá o patrono revogar a liberdade ao liberto, como ingrato, e reduzi-lo à servidão, em que antes estava."
Explica-se: na era das grandes navegações, e mesmo mais tarde, vez por outra uma embarcação lusitana caía em poder de "mouros" do norte da África, que aprisionavam seus ocupantes e, para devolvê-los, pediam resgate. Então, se um liberto houvesse enriquecido e seu antigo senhor estivesse refém dos mouros, ficava o ex-escravo obrigado a contribuir para que o resgate fosse pago. Resta saber, num caso desses, se o liberto resolvesse não colaborar, como é que o tal senhor feito prisioneiro, poderia, afinal revogar a alforria... (²)

(1) Conforme edição de 1824 da Universidade de Coimbra. As Ordenações foram compiladas e publicadas pela primeira vez no início do Século XVII. Assim, vigoraram no Brasil durante o Período Colonial. Após a Independência, muitos juristas brasileiros ainda recorriam a elas.
(2) Entende-se que a revogação sucederia em caso de que algum outro pagasse o resgate, de modo que o senhor pudesse voltar ao Reino.


Veja também:

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Serviço secreto à moda da Antiguidade

Durante uma revolta de gauleses, tropas romanas sitiadas conseguiram avisar César, pedindo socorro, da seguinte maneira: estava entre os romanos um desertor gaulês de certa importância, o qual tinha um escravo, também das Gálias. Esse escravo, depois de ser-lhe prometida a liberdade e outras recompensas mais, recebeu uma lança na qual foi colocada a mensagem destinada a César. Ora, sendo gaulês o dito escravo, conseguiu passar pelas tropas gaulesas sublevadas sem despertar qualquer suspeita e, desse modo, chegou, afinal, ao lugar em que estava César, entregando-lhe a mensagem. Soldados romanos já tinham tentado levar o mesmo recado, porém sem sucesso. Romanos eram presos e torturados até a morte. Um gaulês (traidor, se quiserem), conseguiu o que os romanos não puderam fazer.
Se a mensagem era secreta, como é que sabemos de tudo isso? Ora, foi o próprio César quem contou a aventura em De Bello Gallico, Livro V.
Para informar que estava enviando socorro, César recorreu a uma outra estratégia, mandando como mensageiro um gaulês aliado, que integrava a tropa sob seu comando. Dessa vez, a carta foi escrita em grego, para evitar que, acontecendo de cair em mãos de seus inimigos, pudesse ser lida e compreendida. O gaulês, temeroso, evitou a tentativa de entregá-la pessoalmente, mas arremessou-a com um dardo para dentro do acampamento romano cercado. Só três dias depois é que um soldado veio a descobri-la, quando as forças romanas que vinham como auxílio já podiam ser vistas à distância.


Veja também:

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Cuidado ao atravessar a rua!

"Qual é a semana [...] em que não morre alguém debaixo de um bond elétrico? E bond elétrico é revolução?"
Machado de Assis, Gazeta de Notícias, 28 de abril de 1892

Correio e rua Primeiro de Março, Rio de Janeiro, c. 1889 (¹)

Menino, olha o carro! Cuidado ao atravessar a rua...
Outro dia ouvi uma menininha cantando:
"Quando saio a passear,
Um cuidado devo ter:
Ao atravessar a rua
O sinal obedecer!"

É bom que se tenha cuidado, mesmo, nessas ruas brasileiras de trânsito caótico. Mas cuidado também era necessário quando o trânsito, apesar de intenso, não fluía à mesma velocidade.
Em um livrinho destinado à prática escolar da leitura, publicado em 1875, cuja autora era a professora Guilhermina de Azambuja Neves, podia-se ler:
"Nos lugares onde transitam muitos carros ou nas encruzilhadas onde há trilhos de ferro não atravesses de uma calçada para outra sem te certificares primeiro de que não vem algum veículo que te possa pisar." (²)
Nesse tempo, "carros" e "veículos" urbanos, no Brasil, só os de tração animal.
Não tenho dúvidas de que a percepção da velocidade depende do tempo em que se vive. Gente que viajou nas primeiras locomotivas a vapor, capazes de desenvolver apenas uns poucos quilômetros a cada hora, tinha sensação de vertigem devido à velocidade. O mesmo acontece em relação aos acidentes de trânsito - eram numerosos e trágicos no passado, quando carroças, carruagens, seges e coches, todos com tração animal, infestavam as ruas, como o são atualmente, com automóveis que se deslocam por ruas e avenidas, quando em boa ordem, a 60 ou 80 quilômetros por hora. Se o assunto é tragédia, vale recordar que o cientista francês Pierre Curie, que morreu em 19 de abril de 1906, foi, em um dia de tempo chuvoso, atropelado por uma carruagem. Sem mais rodeios, teve a cabeça triturada. Sim, acidentes com carruagens e seus cavalos podiam ser tão fatais quanto um atropelamento por automóvel ou trem.
Quando os primeiros bondes elétricos foram introduzidos no Rio de Janeiro (na época, capital do Brasil), não foram poucos os acidentes, vários deles com óbitos. Machado de Assis, que era, então, colunista do jornal Gazeta de Notícias, comentou alguns desses casos, dentre os quais vão aqui alguns, para que os leitores percebam que os acidentes com bondes elétricos eram creditados à velocidade que desenvolviam, quando comparados aos velhos bondes puxados por burros
Em 14 de outubro de 1892 Machado escreveu:
"Custa muito passar adiante, sem dizer alguma coisa das últimas interrupções elétricas; mas se eu não falei da morte do mocinho grego, vendedor de balas, que o bond elétrico mandou para o outro mundo, há duas semanas, não é justo que fale dos terríveis sustos de quinta-feira passada. O pobre moço grego se tivesse nascido antigamente, e entrasse nos jogos olímpicos, escapava ao desastre do largo do Machado. Dado que fosse um dia destruído pelos cavalos, como o jovem Hipólito, teria cantores célebres, em vez de expirar obscuramente no hospital, tão obscuramente que eu próprio, que lhe decorara o nome, já o esqueci."
Diria também, em 23 de outubro do mesmo ano:
"Se os dois anciãos que o bond elétrico atirou para a eternidade esta semana houvessem já feito por si mesmos o que lhes fez o bond, não teriam entestado com o progresso que os eliminou."
Sarcástico, não? Os "desastres", como se usava dizer, nem sempre eram fatais, mas podiam resultar em lesões graves, como se vê neste outro trecho, datado de 13 de novembro de 1892:
"Moderno e antigo a um tempo é o novo desastre produzido pelo bond elétrico, não por ser elétrico, mas por ser bond.
Parece que contundiu, esmagou, fez não sei que lesão a um homem. O cocheiro evadiu-se."
Aparece aí, no final desta última citação, um fato que, mutatis mutandis, não deixa, às vezes, de ocorrer até hoje, quando acontece algum acidente de trânsito. 
À vista de tudo isso, só resta lembrar o conselho da Professora Guilhermina de Azambuja Neves: "...não atravesses de uma calçada para outra sem te certificares primeiro de que não vem algum veículo que te possa pisar." Ou, mais simplesmente: - cuidado ao atravessar a rua, menino!...

(1) ______________ Album de Vues du Brésil. Paris: A. Lahure, 1889. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) NEVES, Guilhermina de Azambuja. Entretenimentos Sobre os Deveres de Civilidade 2ª ed. Rio de Janeiro: 1875, pp. 115 e 116. O exemplar consultado pertence à BNDigital.


Veja também:

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O primeiro convento de freiras em Salvador

Por muito tempo os colonos que viviam em Salvador, a primeira capital do Brasil, insistiram com o governo português no sentido de obter permissão para que se criasse na Bahia um convento para mulheres. A tal permissão era, no entanto, persistentemente negada, sob a alegação de que era inconveniente encerrar mulheres em um convento quando a terra precisava ter sua população aumentada...
A autorização só aconteceu em 6 de julho de 1665, saindo de ninguém menos que o rei D. Afonso VI, a quem eram atribuídas severas limitações mentais (e também físicas...) decorrentes de uma enfermidade que tivera ainda na infância. O fato é que, com seu aval, a Bahia e o Brasil vieram a ter seu primeiro convento para mulheres.
Com alguma restrição - poderiam ser admitidas no máximo cinquenta freiras (*) - o convento de Irmãs de São Francisco foi estabelecido com a ajuda de quatro religiosas de Évora enviadas à Bahia, que prepararam as primeiras noviças e elegeram Madre Marta de Cristo como superiora. Consta que as quatro retornaram ao convento de origem em Portugal no ano de 1686. 
Alguém poderá perguntar por que é que os moradores de Salvador e adjacências desejavam tanto um convento. Costumes da época dão a resposta: meninas que se recusavam peremptoriamente a um casamento ajustado pelo pai eram mandadas, não raro, para uma dessas instituições, assim como aquelas de quem se suspeitava algum relacionamento não sancionado pela família. Eram também destino de mulheres idosas e/ou viúvas, e de muitas outras infelizes condenadas a passar a vida quase sem ver a luz do sol. Poucas eram as que entravam para um convento por vontade própria, com o que se poderia chamar de autêntica vocação religiosa. Isso valia, é claro, não apenas para esse primeiro estabelecimento de Salvador, mas para a maioria dos conventos e "recolhimentos" existentes no Brasil Colonial.
Cumpre dizer, concluindo, que famílias respeitáveis, de muitas posses e considerável tradição tinham orgulho em dizer que tal ou qual filha, neta, sobrinha - uma parente qualquer - era religiosa desta ou daquela ordem. Era fator de prestígio, não muito diferente de ter um filho padre ou mesmo religioso conventual. No caso das mulheres, funcionava, além disso, como instrumento de repressão. Um a mais, apenas, em tempos nos quais se recomendava às casadas "de bem", que vivessem reclusas em suas casas, para evitar qualquer suspeita ou ciúme dos respectivos maridos.

(*) Nas décadas subsequentes esse número seria fartamente ultrapassado.


Veja também: