As principais leis abolicionistas anteriores à Lei Áurea (1888) foram a Lei Eusébio de Queirós (1850), que determinou a abolição do tráfico de africanos para o Brasil, a Lei do Ventre Livre (1871), que tornava formalmente livres os filhos de mães escravas nascidos a partir da data em que a lei passou a vigorar, e a Lei dos Sexagenários (1885), verdadeiro absurdo que, ao mesmo tempo em que alforriava os escravos idosos, isentava os antigos senhores de qualquer responsabilidade para com eles. Entretanto, havia um outro modo pelo qual um escravo poderia vir a ser livre: a compra da liberdade. Vamos ver um exemplo disso.
Em 16 de janeiro de 1873, na cidade de Campinas, uma escrava de nome Joaquina apresentou-se diante da autoridade competente, alegando querer resgatar a própria liberdade, para o que apresentou a quantia de trezentos mil réis. Afirmava ela que, por ser idosa (tinha mais ou menos cinquenta anos) e por estar incapacitada para o trabalho, não deveria valer mais do que duzentos mil réis. Seguindo a tramitação normal, o senhor, Bernardo Novaes, foi chamado a uma primeira audiência para escolher em uma lista as pessoas que deveriam arbitrar o valor da escrava. Enquanto transcorria o processo de manumissão, Manoel Ferraz de Campos Sales (futuro presidente da República) foi nomeado curador de Joaquina, e o pecúlio de trezentos mil réis que ela apresentara foi depositado em mãos de Augusto Klein. Posteriormente, a escrava foi avaliada em duzentos mil réis, sendo a importância entregue a dona Maria Benedita do Carmo, esposa de Bernardo Novaes e legalmente curadora de seus bens. Por solicitação de Campos Sales, os restantes cem mil réis foram entregues à libertanda e, finalmente, para concluir o processo, Joaquina recebeu a "carta de alforria", que transcrevo:
"O Dr. Francisco Gonçalves da Silva, Juiz Municipal nesta cidade e termo de Campinas.
Faço saber aos que esta virem que a preta Joaquina, de cinquenta anos, foi por este Juízo declarada liberta por sentença de vinte de março do corrente ano, visto exibir a quantia de duzentos mil réis, valor arbitrado para sua liberdade nos respectivos autos, que foi recebida pela curadora de seu ex-proprietário Bernardo Novaes; portanto fica ela de hoje em diante livre como se assim nascesse, na forma da respectiva lei. E para seu título mandei passar a presente que vai por mim assinada.
Campinas, 22 de março de 1873.
Eu, José Henrique Pontes, escrivão, que isso escrevi." (*)
Esse belíssimo e emblemático documento não deixa de sugerir algumas considerações:
- A escrava, dizendo-se idosa e sem condições para o trabalho, afirmava ter aproximadamente cinquenta anos. Isso não chega a ser surpreendente, já que as péssimas condições de vida da imensa maioria dos escravos geralmente conduziam a uma invalidez precoce;
- De onde veio o dinheiro para a alforria? Talvez nunca venhamos a saber, mas uma possibilidade está relacionada ao surgimento, por essa época, de diversos clubes abolicionistas, que se empenhavam por levantar fundos para a compra da liberdade dos cativos;
- Outro detalhe interessante é que o processo transcorreu rapidamente (pouco mais de dois meses), aparentemente sem obstáculos por parte do proprietário ou de sua curadora. Havia senhores, porém, que colocavam dificuldades à manumissão de seus escravos, circunstância em que um processo de alforria podia durar mais de um ano.
Interrogamo-nos sobre o modo de vida de Joaquina após sua libertação. Lamentavelmente não temos documentação a respeito e apenas podemos conjecturar sobre as dificuldades em estabelecer-se, sozinha, como idosa, mulher e ex-escrava numa sociedade absolutamente preconceituosa. O que Joaquina não podia saber é que, passados cento e tantos anos, estaríamos nós, hoje, falando sobre ela. E, qualquer que tenha sido seu destino, homenageamos aqui suas mãos trabalhadoras que ajudaram a estabelecer este país.
(*) Cartório do Segundo Ofício de Campinas, maço 76, 1866 - 1883.
(*) Cartório do Segundo Ofício de Campinas, maço 76, 1866 - 1883.
Veja também:
É provável que o dinheiro tenha vindo de biscates que ela, quem sabe, fazia. Por esse tempo alguns senhores, menos rígidos e cientes de que a abolição se aproximava, permitiam que, principalmente as mulheres, vendessem confeitos, e deixavam uma parte com elas (como no comercial da CEF algum tempo atrás, sobre a poupança). Pode ser que fosse uma estratégia para se livrarem de pessoas como Joaquina, e ainda recuperarem o seu capital. Pelo que, se assim for, Joaquina deve ter sobrevivido da atividade que lhe deu a liberdade. Muito instrutivo seu blog. Felicidades.
ResponderExcluirAntes de mais nada, obrigada por acessar este blog e por participar com seu comentário.
ResponderExcluirSim, há uma possibilidade de que ela houvesse juntado dinheiro para isso. Não era frequente, mas acontecia. Ocorre que isso era mais comum entre trabalhadores escravos de áreas urbanas mais populosas (como o Rio de Janeiro, capital do Brasil naquela época). Não posso ter certeza, mas, neste caso específico, como consultei diretamente a documentação citada, tenho um palpite de que o dinheiro para a manumissão pode ter vindo de algum dos clubes republicanos que pululavam na Campinas daqueles dias. Mas, como eu disse, é só um palpite, ainda que embasado em muitos outros casos semelhantes que conheço, da mesma época e localidade.