quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Descobridores tomavam posse das terras encontradas em nome do rei

Quando chegavam a um lugar que supunham estar descobrindo, navegadores dos Séculos XV e XVI, e mesmo mais tarde, tomavam posse do território em nome do respectivo rei ou imperador, com a formalidade que era, então, corrente. Assim fez Colombo, assim fez Cabral. Assim fizeram muitos outros.
As ordens expedidas para os que navegavam eram enfáticas nesse sentido. Ao mandar Martim Afonso de Sousa ao Brasil em 1530, como líder de uma expedição que devia investigar melhor o litoral e verificar as possibilidades de colonização, dizia o rei D. João III: ".[...] dou poder ao dito Martim Afonso de Sousa para que em todas as terras que forem de minha conquista e demarcação (¹) que ele achar e descobrir possa meter padrões [...] em meu nome [...]." Outro exemplo vem das ordens dadas a Pedro Sarmiento de Gamboa, a quem se encarregou uma expedição pelo Estreito de Magalhães nos anos de 1579 e 1580: "E onde quer que chegardes e saltardes em terra, tomareis posse, em nome de sua majestade, de todas as terras das províncias e partes a que chegardes, fazendo a solenidade e registros necessários, dos quais deem fé e testemunho em forma pública os ditos escrivães que levais." (²)
Sabe-se, mediante registro feito por seu escrivão, que Pedro Sarmiento cumpriu direitinho as ordens recebidas: "[...] o capitão superior Pedro Sarmiento se pôs em pé, e lançando mão a uma espada que tinha na cinta, disse em alta voz, em presença de todos, que fossem testemunhas de como "em nome da Sacra, Católica e Real Majestade do rei D. Filipe nosso senhor, rei de Castela e seus anexos, e em nome de seus herdeiros e sucessores", tomava posse daquela terra perpetuamente" (³). Em outra ocasião, registrou-se que a posse da terra foi declarada "sem contradição dos naturais" (⁴). Não consta, todavia, qualquer relatório de como e se os "naturais" foram informados da cerimônia e de seu significado.
Na lógica da época, quando descobridores tomavam posse de algum território, era como se o próprio rei ali estivesse, na pessoa de seus súditos, declarando que as terras encontradas eram, agora, de sua propriedade, incorporadas ao patrimônio real, com os aspectos práticos que daí resultavam, incluindo o direito a explorar o território e sua população como julgasse conveniente. E, como o rei estava longe, era também aos exploradores que competia, posteriormente, extrair as riquezas existentes, enviando às cabeças coroadas a parte que lhes correspondia. 
Ao desembarcar em 1518 no que viria a ser, mais tarde, a Nova Espanha, Hernán Cortés, no dizer de Bernal Díaz"tomou posse daquela terra por sua majestade e em seu real nome" (⁵). Ambicioso como era, não fazia ideia, contudo, do império que iria encontrar e, depois de combates e perdas terríveis, conquistar e destruir. Seria diferente se, em lugar de um súdito, estivesse lá, em pessoa, o rei da Espanha? Ninguém pode afirmar com certeza, mas os costumes então vigentes e os interesses econômicos, em tudo respaldados por argumentos religiosos, permitem, a quem quer que reflita sobre o assunto, fazer algumas conjecturas. Deixo aos leitores o direito às próprias conclusões.

(1) Uma provável referência às terras que, pelo Tratado de Tordesilhas, seriam de Portugal, mesmo que ainda não estivessem formalmente descobertas.
(2) GAMBOA, Pedro Sarmiento de. Viage al Estrecho de Magallanes. Madrid: Imprenta Real de la Gazeta, 1768, p. 16.
(3) Ibid., pp. 72 e 73.
(4) Ibid., p. 165. Os trechos aqui citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Benefícios da prática do remo

"Que é o carnaval? A vida voltada pelo avesso, não te parece?"
Coelho Neto, A Bico de Pena

Este assunto não está fora de lugar, não, senhores! Foi em 1900, no carnaval. Ah, sim, concordo, carnaval, no final do Século XIX, era coisa bem diferente daquilo que se vê no Século XXI, mesmo no Rio de Janeiro, onde um remador apaixonado teve a ideia de ir às ruas para distribuir aos foliões um panfleto em que, não faltando humor, defendia as virtudes de seu esporte favorito. O texto, publicado na edição de 24 de março do jornal Semana Sportiva (¹), dizia:

"O exercício do remo:
Dá coragem aos desanimados;
Educa o corpo e o espírito;
Faz desaparecer a obesidade;
Proporciona o vigor dos músculos;
Faz aumentar a força;
Torna o homem sóbrio;
  "        "      "        honrado;
  "        "      "        moralizado;
  "        "      "        um hércules (²);
  "        "      "        morigerado;
  "        "      "        meigo;
  "        "      "        perspicaz;
  "        "      "        inteligente;
  "        "      "        leal;
  "        "      "        amigo de si mesmo;
  "        "      "        prudente;
Prolonga a vida;
Fortalece a saúde;
Cultiva o entendimento;
Prepara bons e arrojados patriotas."

Se a moda pega... O fato é que, na época, remo e canoagem despertavam entusiasmo em muita gente, e as competições, fossem no mar (como no Rio de Janeiro), ou em algum rio (no Tietê, em São Paulo), atraíam não só praticantes, como uma multidão de curiosos e torcedores. Outro esporte, cuja prática estava emergindo, logo arrastaria multidões aos jogos, e se tornaria a maior paixão de muitos brasileiros.

Quem consegue ver onde está o remador solitário, em uma tarde de domingo,
no lago Paranoá? (Brasília - DF, Século XXI)

(1) Ano XI, nº 378, p. 2.
(2) Não se esqueçam, leitores, era carnaval.


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

"Meu filho não gosta de estudar História. O que faço?"

Aos leitores de História & Outras Histórias:
A postagem de hoje foge um pouco ao padrão deste blog, tanto no tema quanto na extensão. É dirigida a um público específico, constituído por pais e mães aflitos com o desempenho escolar dos filhos. Para atendê-los, reuni considerações que já apresentei em palestras para pais e professores em escolas, assim como algumas observações inéditas. Por suposto, haveria muito mais a dizer, mas me ative ao essencial: não seria razoável tratar de casos específicos aqui. Uma recomendação aos leitores: NÃO LEIAM se não tiverem senso de humor.

*****

"Meu filho detesta estudar História. O que devo fazer?" Quando alguém me diz algo assim, logo suspeito que, no mínimo, o problema deve ter começado na geração precedente. Mas, falando sério: é ótimo que as preferências variem. É assim que existe gente pesquisando e ensinando nos mais diversos ramos do conhecimento. Quem foi que disse que todos os estudantes precisam gostar de todas as disciplinas? Os gostos são tão variados quanto diferentes são as pessoas. Não há nada de mau nisso.
No entanto, se você ainda não enfrenta este problema, evite ser teatral e falar com desgosto sobre as frustrações nas aulas de História de seus dias de estudante. Seu filho não precisa desse tipo de inspiração. Por outro lado, se você tem boas recordações, não deixe de dizer a ele, mas sem se impor como modelo absoluto. Seu filho é um ser humano único e, mesmo tendo em você um bom exemplo, terá que desenvolver seu próprio modo de ver o mundo e de lidar com as situações da vida, se quiser ser um adulto feliz. Administrar algum desconforto no quotidiano escolar é parte desse processo.
Agora, supondo que o problema já tenha se instalado, faço algumas sugestões, que dividi em dois campos: as de caráter geral, que valem para qualquer disciplina escolar, e as específicas, relacionadas ao estudo de História. Lembre-se de adaptar as ideias à idade de seu filho. Sugestões úteis para filhos adolescentes nem sempre servem para quem tem crianças cursando os primeiros anos do ensino fundamental.

Considerações gerais


1. Não acredite em soluções mágicas. Educação é obra de longo prazo.

2. Paciência e perseverança (são coisas diferentes), deverão fazer parte de toda a trajetória escolar de uma pessoa. Demonstre essas virtudes e incentive seu filho a fazer o mesmo. Jamais se esqueça de que, por mais estranho que pareça, o erro é parte do processo de aprendizagem. 

3. Procure manter um bom relacionamento com os professores de seu filho (todos, não só os de História), e com a administração da escola. Lembre-se, porém, de que a escola foi escolhida por você, e é preciso confiar no trabalho docente. Cooperar com a educação escolar é diferente de interferir a todo o tempo. Resista à tentação de ser um "pai helicóptero", "sobrevoando" tudo o que se faz na escola. Professores são profissionais treinados para ministrar instrução escolar. Confie neles e eles confiarão em você, para estabelecer contato quando for necessário.

4. Apoie práticas de sala de aula e tarefas extraclasse que incentivem a construção de um vigoroso pensamento independente, em lugar de meras repetições.

5. Jovens estudantes devem ser apoiados na busca por formas criativas de lidar com as informações. Os velhos questionários que dispensam o raciocínio e favorecem a "decoreba" devem ser definitivamente proscritos. Auto da fé neles! (se você não sabe o que era um auto da fé, também precisa estudar História).

6. Não imagine que é preciso elogiar seu filho o tempo todo. Ele sabe quando o elogio é merecido e quando não passa de manifestação de ansiedade paterna. Dizer a verdade sobre seu desempenho escolar é importante para implantar nele um senso de realidade. Estudar e fazer as tarefas são obrigações, e não mérito. Por outro lado, jamais deixe de elogiar quando ele se esforça e dá o melhor de si, ainda que as notas não sejam tão altas quanto você gostaria. Aprender para a vida é mais importante que ter um boletim perfeito.

7. Compartilhe princípios e valores com seu filho. Seja explícito quanto às suas expectativas. Pode acreditar: isso não irá magoá-lo, só lhe dará segurança. Se necessário, deixe esse aspecto bem claro para a direção e corpo docente da escoa que você escolheu ou vier a escolher.

8. Não tenha receio de compartilhar com o professor o desgosto que seu filho tem pelas aulas. Seria um absurdo esperar que todo o planejamento escolar sofra alteração por causa das preferências de um único aluno, mas sempre é possível mesclar atividades mais leves, e até divertidas, em meio ao trabalho denso. Não obstante, é fundamental verificar, antes da matrícula, a linha pedagógica seguida pela escola. Deixar isso para mais tarde pode resultar em conflitos que são perfeitamente evitáveis, se a escola for escolhida com base nas expectativas dos pais. Seja realista: aulas continuamente leves, engraçadas, lúdicas, sem nenhuma ênfase no conteúdo programático, não conduzem a resultados sólidos. Você não quereria uma coisa dessas.

9. Professores são seres humanos. Se alguma coisa efetivamente não lhe agradar, é seu direito e obrigação expressar as preocupações, mas faça isso com toda a cortesia, principalmente se seu filho estiver por perto. Você dará a ele uma lição de civilidade que não tem preço.

Sobre História, especificamente


1. Verifique se a ojeriza é apenas com História, se abarca o conjunto das disciplinas, ou pelo menos algumas delas. Se o problema for mesmo com História, mantenha a calma e conserve uma atitude positiva em relação à "matéria detestável". Evite críticas à escola e ao professor diante de seu filho. Desvalorizar quem ensina não irá ajudar seu jovem estudante a ganhar interesse pela matéria. 

2. Se você tem filhos pequenos, saiba que há livros excelentes sobre História até para pré-escolares. Procure adquirir alguns, com boas ilustrações, de leitura fácil e de material resistente. Não deixe a leitura por conta de seu filho: leia com ele, comente e valorize o conhecimento assim obtido. Tente fazer isso antes que ele comece a ter aulas especificamente de História - trata-se de uma ação preventiva. Alunos mais velhos também devem receber livros adequados à idade como um presente. Diga a seu filho que você viu o livro ao passar por uma livraria, gostou e trouxe para ele. Evite obrigá-lo a ler, mas faça perguntas e favoreça o interesse. 

3. Se seu filho já tiver idade suficiente, incentive-o a ir além daquilo que aprendeu na escola, buscando mais informações em livros e na Internet, por exemplo. Talvez você possa apresentá-lo ao blog História & Outras Histórias... Isto vale especialmente para adolescentes e jovens adultos. 

4. Que tal, de vez em quando, assistir a um filme histórico em companhia de seu filho? Faça disso um tempo agradável em família. Não se esqueça, porém, de ver o filme antes ou de obter informações, para saber se é adequado à idade dele. Seja prudente!

5. Comente notícias (nacionais e internacionais) em casa. Isto não é perda de tempo. Faça perguntas, para incluir seu filho na conversa, com a maior naturalidade possível. Deixe a censura de lado e anime-o a falar livremente, manifestando opiniões próprias. Essa prática irá ajudá-lo a perceber que aquilo que estuda na escola é útil para entender o mundo em que vive.

6. Quando era criança, precisei, durante algum tempo, tomar um medicamento de sabor abominável. Obviamente, eu detestava. O que vocês acham que meus pais fizeram? Teriam eles dito: "Coitadinha, vamos deixá-la em paz, ela não gosta do remédio, tem todo o direito..."? Nada disso! A despeito da pequena guerra doméstica resultante, a gosma nojenta foi escrupulosamente ministrada três vezes ao dia, pelo prazo especificado pelo pediatra. Graças a isso, a doença foi superada e cresci saudável (talvez até demais). 
Contei essa parábola da vida real para lhe dizer que é preciso aceitar o fato de que em qualquer matéria há conceitos difíceis, que devem ser trabalhados com persistência, e cujo aprendizado, a despeito de necessário, pode ser maçante, e até desagradável. Se seu filho vier com a pergunta: "Para que eu tenho que estudar isso?", explique que é assim que ele conhecerá suas origens, as do país em que vive, as da própria humanidade, e que o estudo irá ajudá-lo a ser um cidadão consciente e capaz de pensar por si mesmo. Chegará a apreciar mais intensamente as várias manifestações culturais (artes plásticas, filmes, música etc.) entendendo o que, de fato, significam. Ao estudar História é possível tomar contato com valores de outras culturas e aprender a respeitá-las. Chega-se a perceber que, no passado, não houve somente acertos, mas também muitos erros, cuja repetição deve ser evitada a todo custo. Percebe-se que a democracia é uma conquista valiosa demais para ser tratada com indiferença. 
Seja firme: no futuro seu filho irá lhe agradecer por isso.


*****

Por hoje, é só. Um dia desses escreverei especificamente para professores de História, com mais algumas sugestões e ideias. 

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

A mameluca Suzana Dias

Gostemos disso ou não, quase todas as pessoas a quem documentos antigos dão destaque eram do sexo masculino. Há muitas razões que explicam tal fenômeno, mas não é disso que trataremos agora. Vamos a uma exceção, de quem Pedro Taques de Almeida Paes Leme, escrevendo no Século XVIII, se ocupou longamente na Nobiliarchia Paulistana:
"Suzana Dias foi irmã do capitão-mor Belchior Carneiro, que penetrou o sertão da Parnaíba em 1608 a descobrimento de minas de ouro ou de prata, que ficaram sem efeito por falecer no mesmo ano a 29 de setembro [...]. Sua irmã dita Suzana Dias faleceu em Parnaíba com testamento a 2 de setembro de 1634 [...]. Foi filha de Lopo Dias e de sua primeira mulher Beatriz Dias, a qual foi filha do rei de Piratininga Teveriçá (¹), o qual depois da sagrada fonte (²) se chamou Martim Afonso Teveriçá [...]." 
Monumento em homenagem a Suzana Dias
em Santana de Parnaíba - SP
Apesar das palavras de Pedro Taques, é discutível em que grau Suzana Dias descendia do chefe indígena Tibiriçá, assim como permanece desconhecida a data de seu nascimento. Uma coisa é certa, porém: Suzana Dias era mameluca, filha de um colonizador de origem lusitana e de uma mulher de linhagem indígena. Nesse sentido, foi ela um exemplo típico do povoamento em São Paulo nesses tempos já distantes, nos quais a língua de Portugal era falada nas ruas, se tanto, enquanto, por influência materna (³), dentro de casa todo mundo se expressava no falar indígena, nascendo, daí, curiosas expressões mistas de um e outro idioma. Hábitos, costumes e tradições de ambas as culturas iam se amalgamando. Era a dinâmica da colonização.
Em Santana de Parnaíba - SP, um pequeno monumento recorda Suzana Dias. Na placa se lê: "Homenagem a Suzana Dias (segunda metade do Século XVI - 1634) - filha de Beatriz, da estirpe do Cacique Tibiriçá, e do português Lopo Dias, que juntamente com seu filho André Fernandes, fundaram esta cidade." 
Suzana Dias foi casada com Manoel Fernandes Ramos, português, e, após o falecimento deste, com Melchior da Costa. Seus descendentes foram notáveis exploradores, indo cada vez mais longe, guiados pelas águas do rio Tietê. Aqui e ali, fundaram novos núcleos de povoamento, que hoje são cidades, e, por essa razão, ficaram conhecidos como "Fernandes povoadores".

(1) O cacique Tibiriçá.
(2) Referência ao batismo do chefe indígena.
(3) Em parte devido ao número reduzido de mulheres de origem portuguesa vivendo em São Paulo na época.


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Como Hernán Cortés e seus homens curaram os ferimentos recebidos em combate contra os tlaxcaltecas

Depois de deixar o litoral, onde ficaram alguns espanhóis com a finalidade de estabelecer uma povoação, Hernán Cortés e cerca de quatrocentos e cinquenta homens seguiram adiante, porque sua meta era chegar ao coração do império asteca. De caminho, encontraram os tlaxcaltecas, que de modo nenhum aceitaram fazer a paz com os recém-chegados. O confronto foi inevitável e, ao contrário do que ocorrera contra povos menos poderosos, dessa vez os europeus, ainda que não derrotados, tiveram perdas importantes, entre mortos e feridos. Enfrentaram, além disso, a falta dos recursos a que estavam acostumados para tratar ferimentos. 
Que fazer?
O depoimento cru de Bernal Díaz del Castillo, um dos soldados, explica, sem disfarces piedosos: "[...] com a gordura de um índio gordo que ali matamos, que se abriu, se curaram os feridos, porque não havia azeite [...]" (¹). Era costume usar azeite como emoliente para tratar ferimentos.
Não, leitores, não me façam perguntas quanto à eficácia do tratamento. Sabe-se, porém, que essa primeira batalha contra os tlaxcaltecas foi travada em 2 de setembro de 1519. Novo combate, três dias mais tarde, enfraqueceu a resistência da população local, que, a contragosto, foi tratando de negociar a paz. 
Enquanto isso, em seu acampamento, os espanhóis se ocupavam em curar os feridos. Como? Do mesmo modo que haviam feito após o primeiro confronto: "[...] se curaram todos os feridos com a gordura do índio, como já disse outras vezes" (²), informou Bernal Díaz, testemunha ocular.

(1) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. Os trechos dessa obra aqui citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Ibid.


terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Fazendas que produziam todo o tecido de algodão que utilizavam

Plantação de algodão no Estado da Bahia, Século XXI (fotografia infravermelha)

Venham comigo leitores, vamos dar uma olhada no que acontecia em fazendas do Século XIX quando o assunto era a fabricação de tecidos de algodão.
Indígenas do Brasil - tupinambás, por exemplo - eram hábeis na arte de fazer objetos de algodão, não para vestuário, que isso não usavam, mas para a confecção de redes de dormir, de acordo com o que assegurou Hans Staden, alemão que esteve no Brasil no Século XVI. Posteriormente, o cultivo do algodão em maior escala serviu para a produção de tecidos rústicos, empregados na confecção do vestuário dos escravos. Foi assim nos tempos coloniais, e continuou a ser Século XIX afora, ainda que, nessa época, já houvesse tecelagens capazes de fornecer o tecido pronto, em grande quantidade, para quem desejasse comprar. Mas, como veremos, era costume, em fazendas no interior do Brasil, que tecidos de algodão se fizessem em casa mesmo.
Referindo-se ao cultivo de algodão, o segundo barão de Paty do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, fala, em obra escrita na primeira metade do Século XIX, "da sua utilidade incomparável, seja como gênero de exportação ou de consumo doméstico, pois que no interior de uma fazenda pode-se fabricar toda a roupa de cama, de mesa, e mesmo camisas e calças, ao menos para os escravos [...]" (¹). Refere, a seguir, o que observou em propriedades agrícolas interioranas, para onde seria difícil, talvez, conduzir a produção industrializada da capital do Império ou de outras cidades: "[...] Temos visto nos sertões várias famílias que fiavam e teciam em casa todo o pano de uso doméstico, redes, cobertores, toalhas, lençóis, pano chamado de Minas para sacos, capas e vestidos dos negros; tudo se fabricava pelas pretas (²) sob as vistas das senhoras, que se não desdenhavam de pôr elas mesmas mãos à obra. [...]" (³)
A necessidade, gerada pela distância de centros urbanos importantes, impunha não só o cultivo do algodão, mas a confecção das peças indispensáveis ao consumo local. Detalhe que não pode ser ignorado: a convivência entre senhoras e escravas, aproximadas pelo trabalho, talvez contribuísse para uma tênue diluição das diferenças sociais, de modo análogo ao que viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil no Século XIX já haviam observado ao presenciarem serviços religiosos nas capelas das fazendas, com senhoras e suas escravas rezando, lado a lado, esquecidas, momentaneamente, do abismo que as separava.

(1) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, pp. 226 e 227.
(2) Era assim que Lacerda Werneck se referia às escravas.
(3) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Op. cit., p. 227.


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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

A pira funerária de Júlio César

Os antigos romanos eram afeiçoados a tradições, mas, quando reconheciam a utilidade de um novo procedimento, aceitavam mudanças. Querem um exemplo, leitores? Vejam o que disse Plínio, o Velho (¹):  "Entre os romanos a cremação não é uma instituição antiga, o [velho] costume era enterrar." (²) Neste caso, a cremação foi adotada para evitar que os corpos dos soldados que morressem em combate fossem desenterrados por inimigos e profanados. Na antiga religião romana o culto aos mortos, principalmente no contexto das famílias patrícias, tinha papel fundamental. 
Compreende-se, portanto, que a cremação tenha sido o procedimento escolhido quanto ao corpo de Júlio César, assassinado em 15 de março de 44 a.C. Contudo, os rituais funerários foram bastante tumultuados. No cenário político de Roma naquele momento não havia espaço para nada diferente. 
A pira funerária foi erguida no Campo de Marte, conforme disse Suetônio (³) em De vita Caesarum. O cenário, em extremo suntuoso, incluiu um leito de marfim, adornado de ouro e púrpura, para o cadáver do ditador vitalício. É evidente que os partidários de César pensaram em cada detalhe para impressionar as (volúveis) massas, porque até mesmo as roupas que o ditador usava no momento em tombara apunhalado foram colocadas à cabeceira. Óbvio, deviam estar completamente manchadas pelo sangue do morto. 
O cerimonial prosseguiu com pompa, inclusive com a realização de jogos (parece que em Roma todas as ocasiões eram pretexto para esses espetáculos). O leito fúnebre foi, então, conduzido ao foro, onde a multidão, liderada por dois indivíduos armados com espada, ateou fogo ao cadáver, juntando galhos e até mesmo as roupas usadas por alguns dos circunstantes. Soldados romanos que haviam lutado sob as ordens de César entregavam suas armas às labaredas, flautistas, segundo a tradição, tocavam melodias tristes e, no dizer de Suetônio, até mesmo estrangeiros lamentavam o falecido, cujo corpo era, diante de seus olhos, consumido pelas chamas. 
A encenação não tardou a produzir resultado. A multidão, em fúria, voltou-se contra os envolvidos na conspiração que, contrária à ditadura perpétua que fazia perigar a República, entendera resolver o problema eliminando o ditador. 

(1) 23 d.C.  79 d.C.
(2) Naturalis historia, Livro VII. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) 69 - 141 d.C.


terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Como eram feitos os quartos para hóspedes na vila de São Paulo

A hospitalidade, no Brasil Colonial, não só era vista como um dever, mas como uma necessidade. Não havia hotéis, é claro, e quem viajava precisaria encontrar hospedagem nas residências de famílias, se não quisesse passar a noite ao relento.
A menos, porém, que os hóspedes fossem pessoas de importância ou parentes próximos, havia, quase sempre, a preocupação de mantê-los distantes da família, especialmente o mais longe possível das mulheres da família (¹). Para isso, os compartimentos da casa destinados a quem se hospedava deviam ser de difícil comunicação com a área reservada ao convívio doméstico. 
Com essa premissa, não se oferece dificuldade para a compreensão do que escreveu o padre Manoel da Fonseca, autor setecentista: "[...] em São Paulo [...] costumam seus moradores fabricar nas suas fazendas recâmaras para os hóspedes de tal sorte unidas à casa, que, ficando da parte de fora, se possam servir sem detrimento, e independentes da mais família." (²)
Observaram leitores, as expressões "da parte de fora" e "independentes da mais família"? Quem precisa de mais explicações?

(1) Lembrando que as residências eram, nesse tempo, dotadas de gelosias, compreende-se melhor os costumes e as obsessões de uma sociedade marcada por forte segregação feminina.
(2) FONSECA, Manoel da, S.J. Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil. Lisboa: Off. de Francisco da Silva, 1752, p. 59. Reedição da Cia. Melhoramentos de S. Paulo.


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