terça-feira, 30 de outubro de 2012

O uso da língua indígena em São Paulo no Período Colonial

Parece discutível o número de indígenas escravizados durante os dois primeiros séculos da colonização, mas, se devemos acreditar em depoimentos da época, havia quem tivesse quinhentos, seiscentos, até perto de mil índios "administrados". Seria, nesse caso, um número muito maior do que o de escravos africanos que havia em engenhos no Nordeste: os maiores tinham entre cento e cinquenta e duzentos escravos, mais ou menos.
Sem tentar números definitivos, pode-se considerar, no entanto, que a presença indígena entre os colonizadores, particularmente na Capitania de São Vicente, foi marcante. Os colonos, percebendo o quanto eram vantajosos, adotaram muitos dos hábitos e costumes dos nativos. A convivência, marcada muitas vezes por confrontos e opressão, em alguns casos estreitou-se. Em meio às intermináveis listagens de filhos de paulistas, Pedro Taques de Almeida Paes Leme citou, não poucas vezes, "bastardos mamelucos", filhos de colonos com índias. Meninos brancos aprendiam, desde pequenos, a falar a língua dos indígenas. Em muitas casas, português, mesmo, só se falava com os estranhos. Em família, a "língua geral", tupi-guarani, chegava a predominar. Foi assim até bem adiantado o século XVIII. Sobre isso, contou Hércules Florence:
"Em São Paulo, há sessenta anos, as senhoras conversavam nessa língua, que era a da amizade e da intimidade doméstica. Ouvi-a ainda da boca de alguns velhos." (*)
Disso restaram topônimos e outras expressões incorporadas ao português do Brasil. A prova de quanto o falar indígena havia invadido a intimidade das famílias paulistas vem do fato de que muita gente, inclusive grandes sertanistas, tinha, além do nome de batismo, por suposto de origem lusa, também um apelido, em língua indígena, pelo qual se deixava chamar na vida quotidiana. Disso, vão, a seguir, alguns exemplos, todos da Nobiliarchia Paulistana, de Pedro Taques de Almeida Paes Leme (século XVIII).

a) Referindo-se a João do Prado: "Teve fora do matrimônio um filho mameluco, chamado Domingos do Prado, que na matriz de São Paulo casou em 1616 com Filipa Leme, filha bastarda do grande Pedro Vaz de Barros, chamado pelo idioma brasílico Pero Vaguaçu."

b) "Lucindo Cabral, o Tanguá de alcunha, foi para Buenos Ayres."

c) "O dito Domingos Vaz de Siqueira foi filho de Gaspar Vaz da Cunha, o Jaguareté de alcunha..."

d) "Segunda vez casou com Mécia Fernandes, vulgarmente chamada pelo idioma brasílico Meciuçu, que quer dizer Mécia grande, natural de São Paulo, filha de Antônio Fernandes e de sua mulher Antônia Rodrigues..."

e) "Francisco Dias de Siqueira, capitão-mor, chamado de alcunha Apuçá, que quer dizer surdo."
 
(*) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 224.


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