terça-feira, 23 de outubro de 2012

Uma ornamentação bem brasileira em altares dos tempos coloniais

É bastante conhecido o fato de que as cores das penas das aves do Brasil encantaram os portugueses desde a chegada da esquadra de Cabral a Porto Seguro. Na carta destinada ao monarca Dom Manuel, Pero Vaz de Caminha relatou que haviam feito a troca, com os indígenas que encontraram, de alguns guizos  por aves coloridas e objetos confeccionados com penas de aves, que seriam todos enviados ao Reino, como amostra das coisas da terra à qual haviam chegado. "Resgataram", diz ele, "por cascavéis e outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos, e carapuças de penas verdes e um pano de penas de muitas cores, espécie de tecido assaz belo, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse."
Nem todo mundo sabe, porém, que as belas penas de aves do Brasil iriam acabar por constituir-se em exótico adorno para altares de igrejas! Ao menos, é o que se depreende do que escreveu Nuno Marques Pereira, no seu célebre Compêndio Narrativo do Peregrino da América, obra extremamente popular no Brasil do Século XVIII. Ao narrar a viagem da Bahia em direção às Minas, o peregrino chega a uma pequena igreja campestre, na qual entra para ouvir missa, não sem antes entabular com o sacerdote mais um de seus extensos diálogos, aliás, uma característica da obra. É na sacristia que observa os adornos para os altares que ora nos interessam:
"Entrei na sacristia, onde achei o sacristão preparando os ornamentos e o mais necessário para se dizer missa. E reparando, vi o grande asseio e alinho com que estava a sacristia tão bem adornada, assim pela limpeza do lavatório, como pela perfeição de um armário, em que estavam cálices e pedras de ara, e mui perfeitos ramalhetes, uns de penas de várias cores e outros de papel, que todos serviam para se porem nos altares nos dias festivos." (*)
É difícil determinar, meus leitores, o quanto o uso de penas e outros artigos próprios do artesanato dos povos indígenas era frequente nos tempos coloniais. Mas, de qualquer modo, a simples menção de seu uso no Peregrino da América nos dá uma pista de que, se é verdade que os missionários cristãos procuraram catequizar os nativos, também é fato que os indígenas, a seu modo, também exerceram uma "catequese", à medida que belas expressões de sua arte acabaram indo decorar nada menos que os altares de uma igreja, quer isoladamente, quer em conjunto com expressões mais convencionais, próprias da religiosidade europeia.

(*) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, pp. 404 e 405.


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