quinta-feira, 30 de março de 2023

O primeiro romano a ter um viveiro de aves

É doloroso ver pássaros em gaiolas, e mesmo em viveiros. Não deveriam fazer uso das asas livremente? O costume de ter aves aprisionadas nada tem de novo, sendo possível inferir, por numerosos registros da Antiguidade, que muitos monarcas tinham orgulho em ostentar viveiros com a maior variedade possível de aves silvestres. Se um visitante estrangeiro queria presentear um rei, poderia estar certo de agradar se apresentasse uma ave ou animal exótico. Curiosamente, até mesmo tributos de povos dominados eram, às vezes, pagos, em parte, com seres vivos considerados extravagantes. 
Plínio, o Velho, no Livro X de Naturalis Historia, atribuiu a introdução, entre os romanos, da moda de ter um aviário, a certo aristocrata de Brindisi: "O primeiro a ter um aviário contendo toda sorte de aves foi M. Lænius Strabo, da Ordem Equestre de Brindisi. Com ele teve início o costume de colocar em jaulas os seres vivos que a natureza havia destinado aos céus." (*)
Sim, Plínio estava certo no entendimento de que as aves haviam nascido livres e deveriam voar como bem entendessem. Não estendeu a reflexão, contudo, ao fato de que seres humanos eram, também, livres por natureza, e não deveriam ser escravizados. Como se sabe, a economia romana estava edificada sobre a exploração da força de trabalho cativa, e não era usual que se imaginasse uma mudança nesse padrão, tão pérfido quanto conveniente para os proprietários de escravos e para a grandeza do Império. 

(*) PLÍNIO, o Velho, Naturalis Historia, Livro X. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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quinta-feira, 23 de março de 2023

Sobre a idade dos cavalos

A menos que alguém seja veterinário ou criador de cavalos, dificilmente irá se importar com o estado da dentição dos equinos. Contudo, para quem viveu há mais de cem anos, esse seria um conhecimento necessário, até indispensável, quando fosse comprar cavalos, porque todo mundo precisava deles, quer para puxar carroças, coches ou carruagens, quer para o trabalho na lavoura.
Então, leitores, imaginem-se vivendo, digamos, por volta de 1890, e precisando de um cavalo novo: um catálogo de arreios, selas e outros artigos para animais de tração, publicado nos Estados Unidos, trazia o seguinte guia para quem não era um especialista no assunto, mas não queria ser enganado por um vendedor trapaceiro, na hora de adquirir um potro ou mesmo um animal adulto:

Dentição dos cavalos de acordo com a idade (¹)

Figura 1: 8 a 14 dias;
Figura 2: 2 meses;
Figura 3: 8 meses;
Figura 4: 2 anos;
Figura 5: 3 anos;
Figura 6: 4 anos;
Figura 7: 6 anos;
Figura 8: 7 anos;
Figura 9: 8 anos;
Figura 10: 9 anos.

Agricultor trabalhando a terra com cavalos (²)

(1) ____ Illustrated Catalogue & Price List of Harness and Every Article Necessary for the Horse, Stable & Carriage. New York: R. S. Luqueer & Co., 1890, p. 138. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Ibid., p. 42.


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quinta-feira, 16 de março de 2023

Fábricas em São Paulo no Século XIX

Anúncio de loja e fábrica de chapéus em São Paulo, 1852 (¹)

Eram passados noventa anos desde a proibição de fábricas e manufaturas no Brasil por D. Maria I, e sessenta e sete desde que D. João assinara um decreto permitindo as ditas fábricas e manufaturas. O Brasil deixara de ser colônia, passara a Reino Unido com Portugal e Algarves e, em 1822, chegara a ser nação independente. Como andavam, em 1875, as fábricas na Província de São Paulo?
Em conformidade com Joaquim Floriano de Godoy, senador do Império, a situação era esta:
"Há [fábricas] de cerveja; de dourar; de encadernar; de bilhares; de chá; de chapéus de seda, castor e lebre (²); de chocolate (³); de licores; de livros em branco; de seges e carros (⁴); de móveis; de selins e outros arreios; de tabaco; de vinagres; de vinhos; de fogos; fundição de ferro e bronze; de funileiros e latoeiros; de relógios; e muitas outras que longo seria enumerar. Há boas litografias e tipografias. Há serrarias a vapor. Há grande fábrica de tecidos de algodão." (⁵)
Um ponto positivo nessa lista é a diversificação; note-se, ainda, que em alguns ramos era evidente a necessidade de concorrer com artigos importados, enquanto outras atividades, ganhando contornos industriais, eram sucessoras de antigas oficinas de trabalho artesanal. 
O panorama não era o de uma potência industrial. Mas revelava progresso, quando se faz uma comparação com o quadro vigente por volta da segunda ou terceira década do Século XIX. Havia necessidades locais que deviam ser atendidas, e mesmo algum espaço para pequena exportação para outras Províncias do Império. Os lucros do café, consideráveis nesse tempo, permitiam algumas aventuras promissoras para além do setor agrícola, e as atividades industriais nascentes pareciam ser um caminho natural para quem desejava ousar em algum empreendimento. O século à frente, com a inevitável crise do café, revelaria o acerto desse rumo. 

Anúncio de fábrica de chocolate em São Paulo, 1888 (⁶)

(1) AURORA PAULISTANA, Ano I, nº 47, 5 de junho de 1852.
(2) Nada de admiração: eram as modas da época.
(3) Artigo essencial, como todo mundo sabe.
(4) Para tração animal, é claro.
(5) GODOY, Joaquim Floriano de. A Província de S. Paulo. Rio de Janeiro: Typ. do Diário do Rio de Janeiro, 1875, pp. 24 e 25.
(6) CORREIO PAULISTANO, Amo XXXIV, nº 9511, 15 de maio de 1888.


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quinta-feira, 9 de março de 2023

Um rato por duzentos denários

As mortes em massa têm levado muita gente a pensar que as guerras de hoje são muito piores que as da Antiguidade. A seu modo, porém, as guerras sempre foram ruins, e nunca deixarão de ser. 
Uma das piores coisas que um exército invasor procurava fazer, se não fosse possível a vitória no combate em campo aberto,  era forçar a rendição dos inimigos, que se encontravam trancafiados dentro de uma cidade murada, levando-os à completa falta de víveres. A morte vinha pela sede, se a cidade não tivesse um suprimento confiável de água, e, mais provavelmente, pelo fim do estoque de alimentos. Mais sorte tinham os que morriam por ferimentos em batalha que os que enfrentavam os horrores da morte por inanição, precedida por dias ou meses em que os sobreviventes comiam literalmente quase qualquer coisa que pudessem encontrar, tal era o desespero. De acordo com Plínio (¹), autor romano do Século I, houve um incidente durante as Guerras Púnicas que ilustra muito bem esse fato:
"Um rato foi vendido por duzentos denários quando Casilinum estava sitiada por Aníbal, e o homem que o vendeu morreu de fome, mas o comprador sobreviveu, de acordo com os anais (²)." (³)
Ratos, como se sabe, não correspondem à dieta favorita de seres humanos. Só eram devorados como último recurso, quando já não havia nada melhor à disposição. O detalhe notável é que um murídeo foi vendido por nada menos que duzentos denários - lembrem-se, leitores, de que o denário era o valor pago, habitualmente, por dia, aos trabalhadores braçais assalariados. Ora, o ratinho em questão custou o salário de nada menos que duzentos dias de trabalho. Se a história contada por Plínio corresponder à realidade, esse foi o valor que garantiu a sobrevivência do comprador. Em termos absolutos, foi um preço muito alto. Considerando o assunto, tanto sob a perspectiva do vendedor como do comprador, pergunto: valeu a pena? 

(1) c. 23 - 79 d.C.
(2) Anais eram registros oficiais com os acontecimentos notáveis de cada ano.
(3) PLÍNIO, o Velho. Naturalis Historia, Livro VIII. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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quinta-feira, 2 de março de 2023

Quaresma colonial

Nos dois primeiros séculos coloniais, as povoações de europeus e seus descendentes eram escassas no Brasil; a maioria delas tinha poucos moradores. É que uma parte considerável da população vivia no campo, não nas vilas e cidades, de modo que as famílias de senhores de engenho e de cultivadores de cana-de-açúcar e tabaco, por exemplo, apenas saíam das fazendas nas datas importantes, como era o caso das celebrações religiosas, em que as povoações sonolentas se viam, de uma hora para outra, repletas de habitantes temporários, que chegavam com o rangido dos carros de bois, de carroças ou com o pateado de cavalos e mulas. O comércio ganhava algum impulso e as casas, que em dias comuns permaneciam fechadas, se enchiam de movimento, em particular nas vastas cozinhas repletas de escravas que, vindo com os senhores, tinham de preparar comida para tantas bocas. 
A agitação, porém, era efêmera. Acabava tão logo a festa também chegava ao fim. Então, o movimento acontecia em sentido contrário, à medida que as famílias voltavam às fazendas. Com exceção das povoações maiores, as demais ficavam por conta do padre e de uns poucos comerciantes. Até a festa seguinte.
Os ritos quaresmais traziam gente às povoações por um tempo relativamente longo. Religiosos como eram, os membros da elite colonial não deixariam de aparecer nas igrejas, e as ruas e vielas ressoavam com rezas e cânticos piedosos. Ir às procissões era obrigação a que ninguém faltaria, a não ser em casos extremos. O padre André de Barros, da Companhia de Jesus, que escreveu uma biografia do também jesuíta Antônio Vieira, relatou, de passagem, o costume da vinda de famílias de fazendeiros à cidade para as celebrações da Quaresma. "[...] os concursos eram grandes", disse ele, "por se recolherem à cidade no tempo da Quaresma as famílias, que em suas lavouras e roças vivem fora dela [...]" (*). 
Interessante costume, esse: nas fazendas, os escravos, fossem eles indígenas ou de origem africana, eram forçados a trabalho extenuante, que para alguns significava a morte, enquanto seus senhores iam à vila ou cidade próxima e, com ares de penitentes, lotavam igrejas e capelas, rezavam devotamente e se imaginavam com um pé no céu. 

(*) BARROS, André de S. J. Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus, Livro II.. Lisboa: Officina Sylviana, 1746, p. 129.


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