A religiosidade estranha de muitos colonizadores do Brasil
Colonizadores do Brasil eram gente devota - ao menos na aparência, e segundo seus próprios critérios. Tinham uma religiosidade curiosa, toda própria, de provocar calafrios nos teólogos europeus que eram seus contemporâneos. Mas, em território colonial, o controle da Igreja estava, frequentemente, muito distante, de modo que cada um vivia como julgava conveniente. Sim, houve visitações do Santo Ofício, mas elas somente alcançaram povoações maiores, e em poucas ocasiões. Bem sabem os leitores que, contra João Ramalho e sua mais que numerosa descendência, de nada valiam as ameaças de recurso à Inquisição que lhes faziam os missionários jesuítas. Quem iria, falando sério, imaginar que inquisidores empreenderiam, no Século XVI, qualquer tentativa de vencer o literalmente escabroso Caminho do Mar para fazer uma aparição em São Paulo?
Catequizando indígenas, os jesuítas mantinham um olho nos turbulentos colonos. Este caso, que é um exemplo acabado do tipo de religiosidade que predominava em terras portuguesas na América, vem de um documento atribuído a José de Anchieta, e faz referência a um sujeito rico, que vivia em Santos:
"Por morte deixou parte de sua fazenda para nossa igreja, que ali então se edificava; parte à Misericórdia e a outra parte aos pobres. Houve, nesse homem, enquanto se não deu a Deus, soltura no vício da luxúria; mas por respeito de Nossa Senhora nunca quis pecar com mulher que tivesse o nome de Maria." (¹)
Casos mais cabeludos seriam vistos entre os paulistas que, indo ao sertão para aprisionar indígenas que pretendiam escravizar, ainda assim se imaginavam sob a proteção de Deus. Eram essas figuras que ocasionavam no jesuíta Antonio Ruiz de Montoya a maior revolta, porque, antes da partida rumo ao sertão, faziam devotamente todo um cerimonial religioso, como se estivessem envolvidos no mais sagrado dos empreendimentos:
"Quando saem a cativar homens livres, assim declarados pelos pontífices (com excomunhão prevista aos que lhes tiram a liberdade), a matar muitos deles, a capturar suas filhas e mulheres para seus torpes usos, a desterrar o Evangelho e o Santíssimo Sacramento de seus templos, se confessam e comungam como se fossem em romaria a Compostela." (²)
Acham que era só, leitores? Certamente não: quando atacavam as missões, matando, pilhando e escravizando, os integrantes das bandeiras de apresamento cuidavam em ter, consigo, ao menos um rosário, levando Montoya, em seu relato, a uma interessante conclusão:
"Determinaram-se os inimigos a queimar a igreja: confesso que os ouvi dizer que são cristãos, e mesmo nesta ocasião traziam rosários muito visíveis. Têm, sem dúvida, a fé de Deus, mas as obras são do diabo." (³)
(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 470.
(2) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639.
(3) Ibid. Os trechos citados da obra de Montoya foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
Veja também:
Marta
ResponderExcluirComo sempre suas postagens
são fantásticas e somam sempre.
Bjins
CatiahoAlc.
Obrigada. Tem ideias de assuntos para novos posts? Estou fazendo o planejamento de 2018 rsrsrssss...
ExcluirGostei do pormenor de preservar as Marias. Ao menos desse homem católico estavam a salvo. Talvez o equivalente atual sejam os mártires que matam gente em nome do Islão?!
ResponderExcluirP.S. Consegue planear um ano inteiro de posts?
Pois eu acho que o tal sujeito era um tremendo hipócrita, isso sim!
ExcluirQuanto ao planejamento do blog, é uma prática que venho adotando gradualmente nos últimos anos. A intenção é organizar o trabalho, até porque este blog não é minha única preocupação rsrsrsss. Como resultado, este ano parece ter funcionado bem, e já estou trabalhando no que virá para 2018 - se eu viver para tanto, é claro.