quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Presentes para as visitas

Uma prática interessante de hospitalidade no Período Colonial


Conta Pedro Taques de Almeida Paes Leme, na Nobiliarchia Paulistana, que Francisco Rodrigues Penteado, cidadão de São Paulo, foi um dos primeiros a explorar o ouro das Gerais, tornando-se, por isso muito rico. Estabeleceu-se em sua fazenda em Araçariguama, na qual fundou uma capela em honra de Nossa Senhora da Piedade.
Ora, tão devoto era o nosso homem, que, anualmente, fazia celebrar grandes festas para homenagear a santa de sua devoção, e isso sem poupar despesas que tornassem ainda mais grandiosos os ofícios religiosos, como refere Pedro Taques:
"Enquanto durou a vida do fundador havia anualmente festa da mesma Senhora, que durava um oitavário de missas cantadas, com três distintas festividades em que havia sermão, conduzindo-se para elas a música da cidade em distância de onze léguas, e sendo convidadas várias pessoas de autoridade que faziam uma corte daquela opulenta fazenda, na qual em todos os dias reinava a profusão e bom gosto. Completava-se o oitavário com um aniversário pelas almas do purgatório com ofício de nove lições, música a canto de órgão, sermão etc."
Até aqui meus leitores podem estar considerando que este era um costume, na época, mais ou menos frequente entre devotos de uma certa capacidade econômica, que se traduzia, algumas vezes, em festas religiosas como a descrita, outras em construir e deixar legados para capelas e igrejas, ou ainda deixar, em testamento, recursos que, devidamente administrados, deviam servir para contínuas celebrações de missas por intenção das almas dos mortos - dentre as quais, é claro, a do próprio testador. Não desconsideremos, também, um certo exagero, aliás típico em Pedro Taques, quando se tratava de gabar o que ele supunha serem virtudes da gente de São Paulo.
Há, porém, um aspecto curioso em relação às festas que fazia celebrar Francisco Rodrigues Penteado, e que pode muito bem nos dar uma ideia de costumes que então estavam em vigor e que hoje nos pareceriam, à primeira vista (se descolados do respectivo contexto), exóticos e até ridículos (*). Diz a Nobiliarchia, referindo-se ao retorno dos convidados a suas casas, após o encerramento das festas em Araçariguama:
"No regresso para a cidade eram conduzidos os hóspedes com a mesma grandeza de tratamento, sendo além disso brindados com presentes de toucinho e mais pertences de grandes capados, por forma de viático para o caminho."
Que lhes parece, senhores leitores? Fica pois aí a sugestão, para a próxima vez que estiverem em busca de ideias de um presentinho para as visitas...

(*) Lembrem-se os leitores de evitar o julgamento dos valores de outros tempos pelos nossos. O que pensaria alguém do século XVII ou XVIII dos costumes do século XXI? No entanto, o fato não deixa de ter seu lado humorístico.


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domingo, 1 de setembro de 2013

Servos e escravos: qual a diferença?

Servos e escravos eram a mesma coisa? Há quem defenda que sim. Afinal, uns e outros tinham que trabalhar, trabalhar, trabalhar, não é mesmo? Mas as semelhanças não iam muito além disso.
Os servos, é preciso dizê-lo, tinham condições de sobrevivência bastante variáveis, de acordo com o lugar em que viviam. De um modo geral, porém, estavam ligados à terra, o que significa que não podiam deixá-la quando bem entendessem, nem podiam, livremente, mudar de senhor, procurando algum que lhes fosse mais agradável. Mudavam de senhor se a terra na qual viviam tivesse, por qualquer razão, um novo dono. E mais, sua condição era hereditária: quem nascia servinho, crescia servo e passava a vida toda como servo, sem ter a possibilidade de mudar de estrato social, e sua descendência seria sempre restrita à servidão.
Sim, essa não era uma perspectiva animadora. Mas não parava aí.
Os servos estavam obrigados a trabalhar um determinado número de dias a cada semana nas terras de seus respectivos senhores. Podiam ser dois, três ou mais dias, porém nos dias restantes trabalhavam para si mesmos e para a manutenção de suas famílias. Apesar de tudo, isso era para eles uma garantia importante, já que sempre tinham assegurado um pedaço de terra que cultivavam para o próprio sustento. E tanto isso é verdade que, que quando esse direito começou a ser desrespeitado, todo o sistema acabou ruindo. Cabe, no entanto, observar que, via de regra, as terras cultivadas para os senhores eram as melhores, ficando as inferiores reservadas aos servos. A humanidade não mudou tanto assim, como se vê.
Indo adiante, convém lembrar que, além do trabalho compulsório nas terras do senhor, estava o servo obrigado a pagar certos impostos. Exemplificando, se precisavam usar o moinho (que era propriedade do senhor), deviam pagar uma taxa. Valia o mesmo para outras instalações.
Porém...
Porém, nunca, nunca mesmo, um servo poderia ser vendido. Não era mercadoria. Não havia nada que pudesse ser chamado de um "mercado de servos". E é exatamente nisto que reside a grande diferença em relação aos escravos.
Um escravo estava obrigado a trabalhar, e isso tanto quanto seu senhor determinasse. Se, eventualmente, recebia um pequeno terreno para cultivar para si mesmo em suas mais do que escassas horas de folga, era, com frequência, na intenção de que desse menos despesas ao seu "proprietário". Não foi sem causa que Antonil escreveu que, no Brasil, para manter escravos eram necessários PPP:
"No Brasil costumam dizer que para o escravo são necessários três PPP, a saber, pau, pão e pano. E posto que comecem mal, principiando pelo castigo, que é o pau, contudo prouvera a Deus que tão abundante fosse o comer e o vestir como muitas vezes é o castigo, dado por qualquer causa pouco provada ou levantada, e com instrumentos de muito rigor, ainda quando os crimes são certos, de que se não usa nem com os brutos animais, fazendo algum senhor mais caso de um cavalo que de meia dúzia de escravos, pois o cavalo é servido e tem quem lhe busque capim, tem pano para o suor e sela e freio dourado." (¹)
Mas, principalmente, um escravo era, sim, mercadoria. Era vendido, comprado, outra vez vendido, talvez novamente comprado, conforme os desejos ou o humor dos senhores. Houve tempo, em se tratando do Brasil, que nesse comprar e vender escravos não havia qualquer respeito a algum vínculo familiar ou afetivo que os escravizados pudessem ter entre si, e não me refiro apenas aos escravos de origem africana, já que a mesma coisa pode ser dita em relação aos indígenas reduzidos à escravidão pelos colonizadores. Se quisermos referir em poucas palavras qual era a condição do escravo, basta dizer que, para os senhores e para a legislação que vigorava, os escravos eram tidos como "coisas", tais como eram os móveis de uma casa ou os animais de carga. E, para que não reste nenhuma dúvida quanto à veracidade desse fato, vou citar alguns exemplos extraídos da legislação portuguesa, as célebres Ordenações do Reino (²) que, é bom lembrar, não valiam somente em Portugal - eram também vigentes no Brasil.
Lê-se no Terceiro Livro das Ordenações, Título LIII:
"Se o autor demandar uma herdade ou casa, deve declarar nos artigos o lugar certo [...]. E se demandar um escravo, cavalo ou outra coisa móvel ou se movente, deve declarar os sinais certos ou qualidades dela [...]."
Novamente no Livro Terceiro, aparece "escravo" em uma lista de possíveis litígios (conforme o Título LXXXII, § 1):
"E se for contenda sobre algum escravo, besta ou navio, e pendendo a instância da apelação morresse o escravo ou besta, ou perecesse o navio, não deixarão por tanto de ir pelo feito em diante [...]."
Agora no Livro Quarto, Título I, § 2, quando se expressa a questão da compra e/ou venda de escravo e outras mercadorias:
"Assim como se o vendedor vendesse um tonel de vinho ou de azeite, ou um escravo ou uma besta, e o comprador comprasse essa coisa, contentando-se dela a tempo certo, em tal caso, se durando o dito tempo, o comprador for dela contente, valerá a venda e será firme [...]."
Creio, meus leitores, que já temos o suficiente para demonstrar que escravo, ao contrário de servo, era, legalmente, mercadoria. Essa era, portanto, a maior e  mais brutal diferença entre um e outro.

(1) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 26.
(2) Ordenações do Reino, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.


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