quarta-feira, 30 de julho de 2014

Rico como um Creso

A expressão já caiu em desuso, mas, antigamente, referindo-se a alguém muito rico, diziam as pessoas de certa instrução que o sujeito "era rico como um Creso".
Pois bem, Creso foi rei da Lídia, na Ásia Menor, no Século VI antes de Cristo. A capital desse reino era a cidade de Sardes, que se tornou riquíssima, em decorrência das conquistas militares empreendidas por Creso, bem como da exploração de ouro no rio chamado Pactolo. O ouro do Pactolo está, no entanto, envolvido em uma série de lendas, razão pela qual, historicamente, será mais sensato considerar que, como acontecia na Antiguidade (e em outros tempos também) foi mesmo a guerra que fez da corte de Sardes um lugar esplendoroso. Embora seja um fato de difícil comprovação, acredita-se que no reino da Lídia tenha ocorrido a invenção da cunhagem de moedas.
Tamanha era a fama da riqueza que havia no reino de Creso que - é Heródoto quem relata - gente de toda a Grécia corria a visitá-lo, não ficando fora disso os famosos "sábios". Até mesmo Sólon, o legislador ateniense, teria estado em Sardes.
No entanto, Creso, imensamente rico, não estava ainda satisfeito. Levando em conta a natureza humana, seria mesmo estranho que estivesse. Resolveu meter-se em guerra contra Ciro, o Persa, crendo, ainda segundo Heródoto, que o oráculo de Delfos lhe era favorável.
Tolinho... Tudo que vinha de Delfos tinha sentido dúbio, e podia ser interpretado de acordo com a vontade de quem mandara consultar a pítia. Em termos práticos, Creso confiava nos recursos tão vastos de que podia dispor, bem como na ajuda de supostos aliados, como os egípcios, por exemplo. Eram os lídios, ademais, tidos como bons soldados: combatiam a cavalo, empunhando lanças compridas.
Um detalhe curioso, mencionado por Heródoto, é que, no decisivo combate, Ciro teria posto um grupo de camelos à frente de suas tropas, com o objetivo de intimidar os cavalos montados pelos lídios. A esperteza parece ter funcionado. Pelo menos, a princípio. Os lídios, derrotados em campo, refugiaram-se em Sardes, que finalmente foi tomada pelo inimigo.
Relatos do passado são discordes quanto ao que ocorreu em seguida. Dizem, alguns, que Creso e sua família tentaram morrer queimados no alto de uma pira, para que não caíssem em mãos dos persas; dizem, outros, que os persas teriam tomado a iniciativa de queimar o rei dos lídios, mas que, finalmente, teriam mudado de ideia. Heródoto menciona que, sendo Ciro um tanto supersticioso, alarmou-se com o fato de começar a chover sobre a fogueira, o que lhe parecia um presságio infeliz. De qualquer modo, Creso, foi, por ordem de Ciro, conduzido vivo à sua presença. Mas, se pensam os leitores que, a seguir, houve um espetáculo de carnificina ao estilo assírio-babilônico, estão enganados. A política de Ciro era, em geral, fazer aliados. Por isso, não somente conservou Creso vivo, como o fez membro de seu conselho.
No entanto, de homem reputado o mais rico de seus dias, viu-se Creso reduzido a prisioneiro de luxo na corte de Ciro, o Persa. Não podem negar, meus leitores: o estudo da História e as reflexões que sugere, ainda quando sem grande profundidade e sutileza, podem ser muito úteis, até mesmo para "pessoas comuns", não é verdade?


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segunda-feira, 28 de julho de 2014

Sobre a obrigação de plantar árvores

As Ordenações do Reino, leis portuguesas compiladas e publicadas no início do Século XVII, mas que, em grande parte, já estavam em vigor muito antes disso, não eram exemplo de moderação nas penas, muito menos de equidade, isso de acordo com os atuais conceitos vigentes em sociedades democráticas. Algumas de suas disposições, no entanto, mereceriam ter dignas sucessoras.
Quer um exemplo, leitor? O § 26 do Título LXVI, Livro Primeiro, no qual é estabelecida a obrigação de que sejam plantadas árvores em terrenos baldios. Vamos "à letra da lei":
"...Farão semear e criar pinhais nos montes baldios, que para isso forem convenientes, e os farão defender e guardar. E nos lugares que não forem para pinhais, farão plantar castanheiros e carvalhos e outras árvores, que nas ditas terras se puderem criar. E constrangerão os donos das terras e propriedades, que façam plantar as ditas árvores nas partes em que menos as ocupem, fazendo sobre isso posturas, com as penas que lhes bem parecer..." (*)
A propósito, a obrigação de mandar plantar árvores era dos vereadores de cada localidade. Lei interessante, essa!

Árvores em fotografia infravermelha

(*) Ordenações do Reino, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.


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sexta-feira, 25 de julho de 2014

O culto aos deuses e a importância dos reis-sacerdotes na Antiguidade

Uma característica predominante entre os povos que, na Antiguidade, habitavam a região a que hoje chamamos Oriente Médio, é que os monarcas, fossem eles os governantes de verdadeiros reinos ou de simples cidades, eram apresentados, não como autênticos deuses, mas como seus representantes. Uma consequência lógica desse fato é que os reis eram, quase sempre, também sacerdotes.
Um deus-peixe da
Mesopotâmia (²)
No entanto, o estabelecimento desse fenômeno pode ter ocorrido em ordem inversa: sacerdotes, por seu suposto relacionamento próximo com uma ou com várias divindades, acabavam, pouco a pouco, sendo guindados ao mando político. Afinal, quem melhor para governar que um indivíduo capaz de tratar com os deuses? E, se quisermos buscar mais além, encontraremos raízes profundas na estrutura familiar patriarcal que, ainda em tempos de nomadismo, era bastante comum, embora a sedentarização tenha sido um passo importante no rumo da identificação entre um deus e um determinado território.
Ora, meus leitores, se continuarmos o encadeamento lógico que começamos - sacerdotes tornavam-se reis, mantendo, porém, as funções no âmbito do sagrado - veremos facilmente por que motivo, para a mentalidade oriental, religião e política eram indissociáveis.
Quais eram, então, as consequências práticas dessa teocracia? Vejamos:
- Considerava-se, via de regra, que os deuses, e não os moradores humanos, eram os verdadeiros donos de um determinado lugar (os reis eram seus representantes);
- Era muito importante manter o culto do(s) deus(es) do lugar, para evitar alguma tragédia resultante de seu desagrado (daí decorrendo a grande importância do rei-sacerdote);
- Secas, inundações e outros fenômenos eram vistos como resultado da fúria de uma divindade local, em virtude de alguma falha no culto que se lhe supunha devido, sendo obrigação do rei-sacerdote tomar as providências necessárias para dar ao(s) deus(es) a correspondente satisfação;
Nebu (ou Nebo), 
divindade
da Mesopotâmia (²)
- A religião do lugar adquiria certa conotação de "patriotismo" (¹), resultando, assim, na obrigação de adotá-la para quem vinha de fora da comunidade;
- Finalmente, a maioria dos povos do Oriente Médio não descria dos deuses de seus vizinhos, apenas considerava que, para além do palco das lutas humanas, os deuses todos, dos diferentes reinos, fossem eles grandes ou pequenos, é que travavam as verdadeiras guerras, sendo as vitórias e derrotas humanas apenas a consequência dos combates entre divindades. Deuses mais fortes derrotavam deuses fracos. Portanto, povos dominadores entendiam que tinham um panteão mais poderoso que o dos povos dominados. Isto, é certo, até que aparecesse alguém em condições de derrotar os valentões do dia...
Não, não, senhores leitores, nada de achar tudo isso muito engraçado. Sejamos justos com os antigos. Quanto dessas remotas ideias podemos encontrar, um tanto disfarçadas, é verdade, em nosso moderníssimo mundo ocidental, em pleno Século XXI? Basta apenas escavar um pouquinho para trazer a descoberto as premissas ideológicas que, em última análise, andam na cabeça de muita gente, norteando expectativas e direcionando os rumos da política - em pequena e em larga escala.

(1) Uso o termo, aqui, com muitas restrições, por não me ocorrer, neste momento, um outro mais indicado. Mais tarde e em outro lugar, ou seja, na Península Itálica, entre os romanos, o uso seria mais apropriado, particularmente no chamado "culto ao imperador"; entre os antigos gregos, tão encrenqueiros, como se sabe, que quase não sabiam viver sem pensar em guerra, a religião era vista como um fator de unidade.

(2) LAYARD, Austen Henry. Nineveh and Babylon. 
London: John Murray, 1882.


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quarta-feira, 23 de julho de 2014

Quanta cana um engenho real podia moer

Cana-de-açúcar (²)
De acordo com Antonil, um engenho real (com roda d'água) moía, semanalmente, as seguintes quantidades de cana-de-açúcar, no Século XVIII:
- Diariamente: 25 a 30 carros de cana;
- Semanalmente: até sete vezes a quantidade diária (o que significa que um engenho, nesse caso, funcionava os sete dias da semana, sem interrupções).
Explica o Padre Antonil (ou Andreoni...):
"No espaço de vinte e quatro horas é moída uma tarefa redonda de vinte e cinco até trinta carros de cana, e em uma semana das que chamam solteiras (que vêm a ser, sem dia santo), chegam a moer sete tarefas." (¹)
Era, para a capacidade do maquinário da época, uma quantidade enorme de cana, que resultava em lucros (grandes) para os senhores de engenho, para os que transportavam o açúcar até a Europa (lucros maiores) e para os que, depois de refinado o açúcar, vendiam-no nos mercados europeus (lucros muito maiores).
Essa quantidade de cana moída valia, como já disse, para os engenhos d'água, também chamados engenhos reais, que eram muito superiores em capacidade de moagem aos engenhos-trapiches, mais conhecidos como "engenhocas", e que eram, geralmente, movidos por animais (os muito pequenos usavam escravos para mover o maquinário). Mas havia, ao menos no Nordeste açucareiro, um grave problema em relação aos engenhos d'água: a falta exatamente dela, a água, quando, durante as longas estiagens, tão frequentes na região, os cursos d'água que moviam o maquinário chegavam a secar. Por isso, mesmo havendo cana para moer durante o ano todo, nem sempre isso acontecia - não por faltar a cana, e sim a água. Foi o que explicou o Padre Fernão Cardim, jesuíta, em carta ao Provincial de sua Ordem, datada dos anos oitenta do Século XVI:
"Tornando aos engenhos, cada um deles é uma máquina e fábrica incrível, uns são de água rasteiros, outros de água copeiros, os quais moem mais e com menos gasto, outros não são d'água, mas moem com bois, e chamam-se trapiches; estes têm muito maior fábrica e gasto, ainda que moem menos, moem todo o tempo do ano, o que não têm os d'água, porque às vezes lhes falta." (³)

(1) ANTONIL, André João (Giovanni Antonio Andreoni). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 53.
(2) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648, p. 83. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) CARDIM, Pe. Fernão, S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, p. 54.


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segunda-feira, 21 de julho de 2014

Fofocas de Heródoto

Embora chamado por muita gente de “Pai da História”, Heródoto de Halicarnasso (*) não foi um historiador como hoje em geral se entende. Mas foi, no Século V a.C., um ótimo contador de histórias. Vão aqui algumas das “novidades” com que deliciava seus ouvintes, ao redor da fogueira, nas longas e escuras noites das Olimpíadas gregas.

1. De acordo com Heródoto, a família do famoso Tales de Mileto era, na verdade, originária da Fenícia.

2. Esta é sobre Ciro, que governou medos e persas: Ciro bebia apenas a água do rio que atravessava a fortaleza de Susa. Por esse motivo, cada vez que saía em campanha militar, era seguido por uma verdadeira procissão de carros de quatro rodas cuja finalidade era transportar água, aliás acondicionada em vasilhas de prata.

3. Heródoto relatava que, em seus dias, era esta a ração fornecida a cada um dos soldados que compunha a guarda pessoal do faraó:
Pão - pouco mais de três quilogramas;
Carne - pouco mais de 1 quilograma;
Vinho - pouco mais de dois litros.
Para os padrões da época, eram muito bem alimentados. Compreende-se: eram responsáveis pela segurança do monarca, e isso com todas as implicações daí decorrentes.

4. Afirmava Heródoto que os espartanos somente executavam condenados à morte durante as horas da noite, jamais sob a luz do dia.

5. Finalmente, ainda de acordo com Heródoto, os atenienses foram os primeiros dentre os gregos a ir ao combate correndo. Isso teria ocorrido contra medos e persas, na Batalha de Maratona (490 a.C.). A Batalha de Maratona é parte do que se usa chamar de Primeira Guerra Médica (contra os medos).

(*) Halicarnasso pertence hoje à Turquia. Na Antiguidade, era parte da Magna Grécia.


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sexta-feira, 18 de julho de 2014

Para quem quiser tirar o chapéu

Vez por outra, quando alguém faz algo notável, ouve-se a observação: "É de tirar o chapéu!..."
Mas que chapéu, se ninguém, ou quase ninguém mais usa chapéu, a não ser em raríssimas ocasiões, como cerimônias especiais ou em folias de carnaval? Acabou-se, já se vê, a história de tirar o chapéu, a título de cumprimento.
Era o ano de 1892, e Machado de Assis observou, em sua coluna "A Semana", no jornal carioca Gazeta de Notícias:
"...se a gente fosse a amar todas as pessoas a quem tem obrigação de tirar o chapéu, este mundo era vale de amores, em vez de ser um vale de lágrimas."
Podem rir, senhores leitores; agora, voltemos aos chapéus, que quase ninguém mais usa, ainda que, no passado, fossem coisa não apenas usual, mas indispensável. Portanto, os anúncios de chapéus de todos os tipos, destinados ao público masculino, eram frequentes nas revistas que então circulavam. Vão aqui dois exemplos, o primeiro deles publicado na revista paulistana A Vida Moderna (¹), no ano de 1907, e o segundo, que saiu na também paulistana A Cigarra (²), em agosto de 1915:



É certo que, sendo considerados indispensáveis no trajar masculino, os chapéus deviam receber alguns cuidados para sua perfeita conservação e limpeza, havendo, portanto, quem, para isso, oferecesse o produto ideal, ao menos segundo esta propaganda que apareceu na revista O Echo (³), no ano de 1916:


Ora, não eram apenas os homens que usavam chapéus quotidianamente. Meninos e senhoras respeitáveis também não saíam de casa sem eles, e os anúncios seguintes, impressos em A Cigarra (⁴), são uma lembrança dos costumes então vigentes:



Entretanto, em virtude das normas de etiqueta, aquela história de tirar o chapéu era, em geral, restrita a indivíduos do sexo masculino,  mesmo porque a mão de obra para remover, em público, verdadeiras edificações instaladas nas cabeças das senhoras seria excessiva...
Finalmente, para quem quiser ter uma ideia de quão indispensáveis eram os chapéus, vai aqui uma foto (⁵), datada de 1919, na qual se vê o público em uma partida de futebol. Como notarão os senhores leitores, estava toda a gente - eles e elas - com seus respectivos chapéus, completando a rebuscada indumentária, e isso em pleno verão paulistano. Tentem imaginar a mesma situação quase cem anos depois, em algum dos estádios durante a competição mundial de futebol recentemente encerrada. Sim, leitores, tirar o chapéu, só se for para esta postagem, não é mesmo? (⁶)



(1) Ano II, números 29 e 30, 25 de dezembro de 1907.
(2) 1º de agosto de 1915.
(3) Julho de 1916.
(4) Respectivamente, Ano II, nº 32 de 8 de dezembro de 1915 e Ano I, nº 4 de 6 de maio de 1914.
(5) A CIGARRA, Ano V, nº 106, 15 de fevereiro de 1919.
(6) Vê-se que, ao escrever esta postagem, a blogueira estava de bom humor.


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quarta-feira, 16 de julho de 2014

Galinhas e gado ao mar!

Na postagem anterior (¹) mostrei que, pelas alturas do Século XVIII, o mais comum alimento na navegação do Brasil para Portugal era o feijão. Agora, veremos que outros suprimentos eram também usuais.
À nau "Nossa Senhora da Ajuda", já em viagem no Atlântico Norte, deparou-se pavorosa tempestade, que bem poderia tê-la submergido para sempre. Ora, o autor da Relação ou Notícia Particular da Infeliz Viagem da Nau de Sua Majestade Fidelíssima, Nossa Senhora da Ajuda e São Pedro de Alcântara do Rio de Janeiro Para Lisboa, relatou alimentos que se perderam em meio à fúria da tormenta:
"A desordem que isto causava deu motivo a se lançarem ao mar as coisas soltas, e algumas de muito valor, que se achavam em movimento. As capoeiras das galinhas entraram neste número, e por isso se perderam todas as aves, que passavam de oitocentas cabeças. O gado não achando, nem se lhe podendo dar algum asilo, quebrava as mãos, pescoços e pernas, e assim mortas ou moídas se lançaram ao mar mais de vinte e cinco reses." (²)
Cabe aqui a explicação, a bem da clareza, que "capoeiras" eram gaiolas para aves. Bem, a lamentação do alferes Elias Alexandre e Silva não era, por certo, pela vida das galinhas - elas iriam morrer de qualquer jeito - era justamente por não terem ido para a panela. Vale exatamente o mesmo para as cabeças de gado (e não só para as cabeças, claro está).
A oficialidade que viajava precisava, no entanto, de um pouco mais que feijão e alguma quantidade de carne. Logo mais, no desenrolar da tempestade, isso também se perderia:
"Os barris de manteiga, azeite, vinagre, queijos , açúcar e todos os comestíveis menos grosseiros se viam perdidos ou espalhados pelo convés [...]." (³)
Finalmente, para completar o drama, até mesmo alguns tonéis de água se foram:
"Até cinco tonéis de água se abateram no porão, tais eram os nunca vistos balanços!" (⁴)
Afinal, meus leitores, havemos de considerar, a bem da História, que a desdita da gloriosa nau "Nossa Senhora da Ajuda" faz, hoje, a nossa boa sorte. Não fora a notável tempestade em que se meteu, e o alferes Elias Alexandre e Silva não teria assunto relevante para escrever. Teve, porém, e de sobra, pela experiência dramática da qual foi testemunha ocular, o que nos permite, hoje, bisbilhotar com facilidade sobre o que abastecia a cozinha de uma grande embarcação naqueles tempos.

(1) A postagem de hoje será melhor compreendida com a leitura da anterior, "Viagem atrasada por falta de feijão".

(2) SILVA, Elias Alexandre e. Relação ou Notícia Particular da Infeliz Viagem da Nau de Sua Majestade Fidelíssima, Nossa Senhora da Ajuda e São Pedro de Alcântara do Rio de Janeiro Para Lisboa. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1778, p. 40.
(3) Ibid., pp. 40 e 41.
(4) Ibid., p. 41.


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segunda-feira, 14 de julho de 2014

Viagem atrasada por falta de feijão

Já escrevi neste blog sobre a alimentação dos marinheiros que viajavam de Portugal para o Brasil durante o Período Colonial - quem tiver interesse no assunto, poderá ler "De que se alimentavam os marinheiros e soldados em uma armada portuguesa no Século XVII". Hoje, e também na próxima postagem, faremos a rota em sentido contrário, investigando quais eram os suprimentos providenciados para quem fazia a travessia do Atlântico partindo do Brasil com destino a Portugal.
Vale lembrar que naquela época (mesmo hoje não é muito diferente) havia alimentação para a marujada e passageiros de baixo estrato social, assim como havia coisas reservadas aos altos funcionários administrativos do governo lusitano, bem como a outros passageiros de elevada posição.
Mas vamos ao que interessa. Na segunda metade do Século XVIII uma nau portuguesa, a "Nossa Senhora da Ajuda", fez uma desastradíssima viagem entre o Rio de Janeiro e Lisboa. Sucede que nela viajava um militar, Elias Alexandre e Silva que, depois de sobreviver às maiores peripécias no oceano, uma vez a salvo publicou uma obrinha de título enorme: Relação ou Notícia Particular da Infeliz Viagem da Nau de Sua Majestade Fidelíssima, Nossa Senhora da Ajuda e São Pedro de Alcântara do Rio de Janeiro Para Lisboa. Quase dá pra cansar...
No dito opúsculo, nosso homem descreveu não apenas as desgraças da viagem, como (para nossa sorte), deixou muitas informações valiosas sobre as práticas relacionadas à navegação em seus dias. Entre outras coisas, explicou que, ao sair da Cidade da Bahia (Salvador), tendo vindo do Rio de Janeiro,  a nau "Nossa Senhora da Ajuda" teve sua partida atrasada em nada menos que quarenta e oito dias, já que faltava, na cidade, um suprimento adequado do mais importante artigo para alimentação da soldadesca e tripulantes: feijão. Escreveu Elias Alexandre e Silva:
"Ao som de caixas se mandou anunciar ao povo o breve dia da saída da nau. Este porém se demorou com causa justa e necessária, não estando da parte de pessoa humana remediar o que só Deus pode fazer. A antecedente frota, que daquele porto tinha saído, embarcou mantimentos bastantes para a longa viagem de três meses, e por consequência muitos feijões, que é o mantimento de menos preço e mais usual em viagens do Brasil; mas sendo tão necessário, e que em as naus régias se dá à tripulação e guarnição delas, era o que menos havia, e na demora de o mandar vir de longe e em outras diligências, se gastaram quarenta e oito dias." (*)
Entende-se, pois, que a quantidade de feijão necessária era grande; entende-se, igualmente, que a Cidade da Bahia e suas adjacências não tinham como fornecer tanto feijão para duas frotas consecutivas (junto com a "N. Sra. da Ajuda" iam outras sete embarcações menores); entende-se, por último, que o único remédio, nesse caso, era esperar que mais feijão viesse de terra adentro.
Senhores leitores, continuaremos o assunto na próxima postagem.

(*) SILVA, Elias Alexandre e. Relação ou Notícia Particular da Infeliz Viagem da Nau de Sua Majestade Fidelíssima, Nossa Senhora da Ajuda e São Pedro de Alcântara do Rio de Janeiro Para Lisboa. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1778, p. 14.


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sexta-feira, 11 de julho de 2014

Onde e como foi acomodada a nobreza que veio com D. João ao Brasil

"Para alojar os nobres que acompanhavam o príncipe regente foi preciso, por ordem do intendente de polícia, que muitos moradores das boas casas as despejassem incontinenti."
Machado de Assis, A Pianista

Tornou-se proverbial no Brasil, como verdadeiro ícone do desmando de uma autoridade, o fato de que, tendo a Família Real portuguesa (e sua muito numerosa companhia) chegado ao Brasil, e mais especificamente ao Rio de Janeiro, em 1808, foram as famílias que dispunham de boas casas sumariamente retiradas de suas habitações para dar lugar à "Corte".
No entanto, tal fato de modo algum deveria surpreender, visto que, desde o começo do Século XVII, achava-se estabelecida, formalmente, a possibilidade de que ocorresse, segundo as Ordenações do Reino, legislação máxima lusitana (só o Rei, "lei animada", estava acima dela...), de acordo com o Livro Primeiro, Título VII, § 36, que mandava pagar indenização àqueles que declarassem que, ao ser-lhes devolvido o que haviam "emprestado" à Corte, haviam constatado algum dano:
"...O dito corregedor, quando nossa Corte se houver de mudar de qualquer cidade ou vila, mande apregoar por quinze dias antes, que qualquer pessoa, a que tiverem tomadas casas ou camas por aposentadoria, que algum dano tiver recebido dos que nelas pousaram, se vá ao escrivão diante dele, que lhe vá ver os danos das ditas casas ou camas, ao qual mandamos que tanto que lhe requerido for, vá a isso. E sendo-lhe mostrado o dano que lhe fizeram, e afirmando por juramento, que lhe será dado pelo escrivão, lhe faça avaliar por dois oficiais juramentados, para lhe ser pago por mandado do dito corregedor." (¹)
Ora, senhores leitores, cabem aqui algumas breves considerações. Não me perguntem se era ou não conveniente ir alguém queixar-se de danos sofridos - o meu palpite é que, diante dos costumes da época, mais valia manter a boca fechada. Outra coisa curiosa era o hábito de fazer jurar sobre os Evangelhos, já que a gente de outros tempos, sendo muito religiosa, tinha lá seus temores de mentir nessas circunstâncias. Também não se pode dizer muito da honestidade dos dois avaliadores de danos, já que estavam, sempre e de qualquer modo, a serviço do Rei. Resta, ainda, observar o quanto devia ser pobre a tal Corte - a regra, constante nas Ordenações, não era pensada para uma eventual mudança de Continente, mas dizia respeito às viagens corriqueiras do Rei pelo pequenino Reino de Portugal, no qual Sua Majestade precisava tomar emprestadas coisas como camas para acomodar os acompanhantes. Talvez devamos supor que, na concepção da época, esperava-se que o fato de hospedar o Rei ou alguém da Corte fosse visto como uma honra inexprimível em palavras, da qual ninguém deveria ter queixas...

Aclamação de D. João VI em 6 de fevereiro de 1818 (²)
Diante do que foi dito, só se entende bem a revolta da população que, no Rio de Janeiro foi desalojada de suas habitações e espoliada de seus móveis, diante da mudança de atmosfera política que varria o mundo ocidental, malgrado a lentidão na chegada de informações. Na Europa, reis haviam, literalmente, perdido a cabeça, e a nobreza, perseguida pela "burguesia" que escalava o poder, teve de fugir para países estrangeiros, deixando para trás a vida de luxo e conforto de que até então desfrutara. Para encurtar o assunto, um acontecimento como a Revolução Francesa acabou fazendo com que, mesmo no mundo lusitano, o rei já não fosse tão amado como antes, e hospedá-lo, bem como a seus acompanhantes, podia ser um incômodo e não uma grandíssima honra.
A ocupação de casas e outros bens dos súditos estava na lei portuguesa. Se causou descontentamento é porque a própria condição da monarquia lusa já não era vista como inquestionável, como fora no passado.

(1) Ordenações do Reino, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Thierry Frères; o original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 9 de julho de 2014

O terremoto de Lisboa em 1755

Conta-nos o iluminista François Marie Arouet - a quem todo mundo conhece como Voltaire - em livro intitulado Candide ou l'Optimisme, que Cândido e seu mestre Pangloss chegaram a Lisboa em novembro de 1755, exatamente a tempo de sentir a terra trrrrrrrrrrrrrremer sob seus pés, enquanto o mar, em fúria sem precedentes, arremessava-se contra o porto, para destruir as embarcações ali ancoradas e arrastar tudo o que encontrava pelo caminho, inclusive pessoas.
Surpreendentemente, tanto Pangloss quanto Cândido sobreviveram sem grandes avarias, embora uma multidão estivesse, agora, sob os escombros. Enquanto Cândido lamenta-se por seus ferimentos, Pangloss tenta descobrir uma explicação racional para o horroroso fenômeno que, contra a vontade, acabam de presenciar. Lembra que, no ano anterior, outro terremoto, igualmente devastador, atingira Lima (¹) e, assim, idênticos acontecimentos deviam ter causa idêntica: uma corrente subterrânea de enxofre que unia Lima a Lisboa...

Auto de fé que ilustrava a primeira edição de
Candide ou l'Optimismepublicada em 1759 (²)

Na obra de Voltaire, tanto Cândido quanto Pangloss tratam de ajudar na procura por sobreviventes; porém, denunciado à Inquisição por suas ideias pouco religiosas, Pangloss acaba enforcado em um auto de fé com o qual se pretendia aplacar a ira de Deus, que, supunha-se, causara tão grande estrago. E o sarcástico Voltaire conclui o episódio afirmando que, encerrada a sangrenta "cerimônia religiosa", a terra voltou a tremer com toda a violência. (³)
Agora, pondo de lado Cândido e Pangloss, (que são personagens ficcionais), vamos aos fatos.
O chamado grande terremoto de Lisboa aconteceu em 1º de novembro de 1755, que, como se sabe, era data da celebração de Todos os Santos, razão pela qual as igrejas estavam lotadas. Assim, o tremor (que hoje se reputa de magnitude 9,0) soterrou multidões que, devotamente, assistiam às missas. Como se não bastasse, uma onda gigantesca (tsunami) varreu Lisboa e quase todo o Algarve. Mais mortos, portanto. Quantos? Voltaire, um contemporâneo que não foi testemunha ocular, fala, em Candide, em uns trinta mil. Talvez seja exagero, talvez não, já que as estimativas mais conservadoras apontam pelo menos dez mil óbitos. A capital portuguesa foi arruinada. Pedro Taques de Almeida Paes Leme, paulista que, naquela ocasião estava em Lisboa, registrou em sua Nobiliarchia Paulistana:
"[...] Sucedeu no 1º de novembro o formidável terremoto, que destruiu aquela grande cidade no limitado espaço de três minutos, seguindo-se logo um incêndio, que ateou-se na maior parte das casas [...]."
É verdade que religiosos prontamente atribuíram a catástrofe à ira de Deus - mas como explicar que ocorresse justamente num feriado religioso, quando a quase totalidade da população comparecia às igrejas? Não faltou, no entanto, um padre que colocasse a culpa nos pecados, mas não simplesmente nos do povo, e sim nos dos governantes. Seu disparate foi devidamente punido com o desterro. (⁴) É claro que o primeiro-ministro, Marquês de Pombal, um dos chamados "déspotas esclarecidos", preferia lidar, iluministicamente, com a ideia de que tudo não passara de um fenômeno natural a que os portugueses, heroicamente, deviam enfrentar.
Nem é preciso dizer que o tremor foi sentido muito além de Lisboa - e não apenas por razões sismológicas. Era preciso reconstruir a mais importante cidade do Reino, de tal modo que os tremores da Europa acabaram por atingir... as terras da América banhadas pelo Atlântico Sul.
Numa situação dessas, o monarca português solicitava que seus súditos enviassem "contribuições" que, todavia, nada tinham de voluntárias, embora, nesse tempo, os brasileiros de origem europeia ainda se considerassem plenamente portugueses e, apesar de terem que arcar com novos impostos, tinham um certo orgulho em participar da reconstrução da capital do Reino. De acordo com Affonso de E. Taunay, a cidade de São Paulo teve de contribuir, a cada ano, com treze contos de réis, provenientes de taxas sobre alguns alimentos, bebidas e até sobre o trânsito de animais de carga. (⁵) O total da contribuição anual do Brasil orçava pela casa de quarenta contos de réis. Era o tempo da exploração do ouro nas Gerais, em Mato Grosso e em Goiás. As minas do Brasil participaram, pois, significativamente, da reconstrução de Lisboa.
Porém...
Porém, uma vez completada a reconstrução, o imposto persistiu e, de acordo com Varnhagen, ainda se cobrava em 1831, quando o Brasil já era, há vários anos, nação independente. (⁶) Enxertado no preço de uma porção de coisas, as pessoas pagavam sem nem saber direito que o faziam.
Como nas antigas fábulas, senhores leitores, vamos terminar com a "moral da história", embora, neste caso, não estejamos tratando de nenhuma fábula. São capazes de adivinhar qual é?
Aqui está ela: Instituir impostos pode não ser muito complicado; difícil, mesmo, é acabar com eles. Vê-se nisto um fato algo recorrente na história da humanidade e de seus respectivos governos, através dos tempos.

(1) O terremoto de Lima a que se refere Pangloss é, provavelmente, o de 28 de outubro de 1746, que, como o de Lisboa, também foi seguido de tsunami. Foi violentíssimo, estimando-se em 9,0 a sua magnitude. Vê-se, portanto, que Voltaire cometeu um erro quanto à data, que pode ser, talvez, explicado pelo tempo que uma notícia levava, então, para sair da costa do Pacífico, no Continente Americano, e finalmente alcançar a Europa.
(2) A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Quem estiver interessado em mais detalhes, pode ler Candide, ou l'Optimisme.
(4) Segundo Varnhagen, essa brilhante ideia saiu da cabeça do famoso Padre Gabriel Malagrida, jesuíta italiano, desterrado para Setúbal e, mas tarde, acusado diante da Inquisição, primeiro garroteado e depois queimado. Veja, sobre isso: VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 2, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 925.
Vale recordar que, pelas alturas do terremoto de Lisboa, já andavam os jesuítas às turras com a administração pombalina, de modo que, posteriormente, o Marquês acabaria por livrar-se deles, expulsando-os de todos os domínios do Reino (o que, por suposto, incluía o Brasil).
(5) TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 184.
(6) VARNHAGEN, Op. cit., ver nota de rodapé nº 2 na página 978; também na página 1065 menciona-se o mesmo imposto, dizendo o autor que esses tributos eram "abusivamente conservados, ainda depois da independência, durante o reinado do primeiro imperador!".


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segunda-feira, 7 de julho de 2014

Conselhos para quem vinha colonizar o Brasil

A gente que vinha ao Brasil, durante o processo a que chamamos colonização, vinha pelas mais diversas razões. Vinha quem queria enriquecer o mais rápido possível, pensando em retornar logo a Portugal; vinha quem devia cumprir funções administrativas em algum cargo para o qual recebera nomeação; vinham os jesuítas, com propósitos relacionados à catequese dos povos indígenas; vinham os condenados ao degredo no Brasil, em razão de crimes cometidos no Reino; vinham, finalmente, os que buscavam aventuras, cuja personalidade os movia a buscar o desconhecido e investigar o mundo.
Mas, fossem quem fossem esses colonizadores, a vida, no Brasil, não lhes seria nada fácil. Assim, Nuno Marques Pereira, autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América, obra que fez muito sucesso no Brasil do Século XVIII, tinha lá seus conselhos para os que vinham à colônia portuguesa na América do Sul. E, o primeiro deles, era que a jornada não deveria ser apenas com a meta de enriquecimento fácil - devia ser o que poderíamos chamar de "jornada espiritual". Quanto idealismo...
Escreveu ele:
"Porém há de ser com tenção de não mudar só de lugar, senão também de costumes, porque é certo que quem peregrina acompanhado de seus vícios, mais valera não haver saído, pois tornará mais perdido que aproveitado, porque as enfermidades da alma não se curam com a mudança do lugar." (¹)
No entanto, não parou aí o aconselhamento. Era preciso, também, vir com a disposição de adaptar-se à nova vida. Uma orientação sábia, certamente:
"O peregrino vai por onde há de achar cada dia novos costumes, e os deve seguir e aprovar, e não repreendê-los; pois é mais razão acomodar-se ao uso da terra que pretender e querer trazer os mais ao costume de sua pátria. Há de considerar que vai obedecer às leis que achar estabelecidas, e não a dar regra aos mais, e que vai aprender, e não ensinar." (²)
E conclui, a título de estímulo ao peregrino/colonizador neófito:
"E peregrinando assim, se qualificará em um perfeito herói." (³)

(1) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 6.
(2) Ibid., pp. 6 e 7.
(3) Ibid., p. 7.


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sexta-feira, 4 de julho de 2014

Muralhas

Não se pode dizer ao certo quem foi o primeiro indivíduo ou comunidade que teve a ideia de cercar uma povoação com algum tipo de muro. No entanto, pode-se supor, com algum grau de certeza, que, nesse sentido, as primeiras construções eram simples paliçadas, fáceis de levantar, é verdade, mas também pouco resistentes e não muito duráveis.
Os indígenas do Brasil tinham por hábito fazer cercas ao redor de suas aldeias, geralmente cercas duplas, que eram boas para proteção enquanto europeus, portando armas de fogo, não haviam aparecido no Continente Americano. Contra flechas, lanças e armas do mesmo gênero elas funcionavam muito bem. Incendiá-las era possível, ainda que não fosse fácil, de modo que uma técnica efetiva para vencê-las era pôr fogo não nas cercas, mas no teto de palha das casas (ocas), mediante flechas incendiárias que, com grande habilidade, eram atiradas de alguma distância. (¹)
Combate entre indígenas brasileiros,
vendo-se a cerca 
que protegia uma aldeia,
de acordo com Hans Staden (²)
Na Antiguidade o papel das cercas era mais ou menos parecido. Gradualmente as paliçadas deram lugar a muros, que eram tanto mais resistentes quanto melhor fosse o material de construção empregado. Grandes pedras davam muito trabalho aos edificadores, mas o resultado era excelente - podia durar séculos. Havia, no entanto, uma alternativa mais barata, empregada quando as pedras não estavam disponíveis ou a comunidade que queria ter uma muralha era demasiadamente pequena e/ou pobre parar arcar com os custos de uma construção dispendiosa: faziam-se dois muros (de algum tipo de tijolos) com um intervalo entre eles, que podia ser de alguns metros, e esse intervalo era preenchido com terra. Era mais econômico que pedras, mas tinha uma boa resistência. Ou seja, funcionava. Até que vieram os aríetes e outras máquinas de guerra. Os cercos tornaram-se mais longos e, até por isso, mais devastadores. Dentro das muralhas, populações inteiras literalmente morriam de fome e sede. A humanidade estava, pouco a pouco, ficando mais habilidosa na arte de atacar, pilhar e matar...
O mundo medieval serviu-se grandemente de muralhas e castelos para defesa. É bom ressaltar, para quem ainda tiver alguma ideia romântica sobre castelos (³), que eles podem até ser muito bonitos (alguns, é certo), mas sua finalidade era garantir a segurança das populações que viviam nos campos, em caso de um ataque de invasores "estrangeiros" ou de desafetos do senhor da localidade. Refugiando-se em um castelo, cada pessoa, em caso de guerra, via-se obrigada a participar ativamente da defesa, já que era questão de vida ou morte. Cavaleiros tinham de combater, é verdade, de espada em punho, mas até as cozinheiras não ficavam desocupadas: precisavam pôr a ferver enormes tachos de óleo ou gordura animal, que eram, depois, desde o alto da muralha, entornados sobre os atacantes! Isso fica dito para colocar um ponto final na noção de que as guerras eram resolvidas em combates singulares, em que um nobre herói, cheio de todas as virtudes, vencia em nome de seu rei e de sua religião. Dom Quixote (que não é medieval), inspirava-se nessa visão de mundo e, por isso mesmo, era Dom Quixote. Mais exatamente, um perfeito maluco.
Fato é que, na Europa, em virtude de preocupações com a defesa, por longo tempo as cidades deram grande importância à conservação de suas muralhas. Em Portugal, por exemplo, as Ordenações do Reino admitiam a possibilidade de que casas fossem construídas sobre o muro de uma vila:
"E toda pessoa que tiver campo ou pardieiro a par do muro da vila, pode-se acostar a ele e fazer casa sobre ele. Porém fica sempre obrigado, se vier guerra ou cerco, de a derribar e dar por ela corredoura e serventia. E se o muro sobre que assim tiver a casa, ou a que se acostar, cair, aquele que assim tiver a casa será obrigado a fazer o muro à sua custa." (⁴)
Salvador, a primeira capital do Brasil, também teve muros. Tomé de Sousa, o primeiro governador-geral, começou por rodear a povoação que estava construindo com uma cerca similar à que os índios faziam, aliás com a intenção de defender-se na hipótese de que os nativos resolvessem comparecer de forma pouco amistosa, ou de que sobreviesse um ataque de corsários.
Como a cerca de pau a pique fosse frágil, logo se fez outra, porém de taipa, segundo relato de Gabriel Soares:
"E como todos foram agasalhados, ordenou de cercar esta cidade de muros de taipa grossa, o que se fez com muita brevidade [...]." (⁵)
Vale notar, porém, que a tal cerca de taipa não devia ser grande coisa, já que o mesmo Gabriel Soares asseverava que, em seus dias, era incerta a localização da primitiva "muralha":
"[...] A qual cidade foi murada e torreada em tempo do governador Tomé de Sousa, que a edificou [...], cujos muros se vieram ao chão por serem de taipa e se não repararem nunca, em o que se descuidaram os governadores, pelo que eles sabem, ou por se a cidade ir estendendo muito por fora dos muros; e, seja pelo que for, agora não há memória aonde eles estiveram." (⁶)
Fato é que, em quase todos os lugares, as muralhas perderam seu uso militar por simples obsolescência, à medida que armas de fogo cada vez mais poderosas foram desenvolvidas. Que poderiam muros, por fortes que fossem, contra canhões, por exemplo, ou contra os ataques aéreos?
Assim, as construções para proteção em caso de guerra mudaram um pouco de rumo, e a humanidade, que pode, circunstancialmente, em tempos bem antigos, ter habitado cavernas e até buracos cavados na terra, viu-se na contingência de construir abrigos para se defender de ataques aéreos e/ou nucleares. Abrigos subterrâneos, por suposto.
 
(1) Setas incendiárias foram amplamente usadas na Antiguidade e na Idade Média - os indígenas do Brasil não foram, portanto, os únicos que delas se serviram.
(2) STADEN, Hans. Zwei Reisen nach Brasilien. Marburg: 1557. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Schloss Neuschwanstein não é medieval. Foi construído a mando do rei da Baviera, Ludwig II, no Século XIX.
(4) Livro Primeiro, Título LXVIII, § 41, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(5) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 114.
(6) Ibid., p. 118.


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quarta-feira, 2 de julho de 2014

Quanto se pagava a um capelão de engenho no Brasil Colonial

Os engenhos de açúcar do Período Colonial eram localizados em áreas que deviam estar perto o suficiente dos portos para que o embarque do açúcar, com destino à Europa, fosse viável. Mas deviam estar, também, em áreas nas quais tanto o solo quanto o clima fossem favoráveis ao cultivo da cana em larga escala. Além disso, precisavam ter matas nas proximidades, já que o consumo de lenha seria alto. E, não menos importante, no caso dos engenhos d'água (ou "engenhos reais"), precisavam dispor de água corrente com força capaz de girar as chamadas rodas d'água.
Vê-se, portanto, que, da escolha acertada da localização dependia, em medida considerável, o sucesso de um novo empreendimento açucareiro. Por isso, a maioria dos engenhos acabava por constituir-se em unidades econômicas tão autônomas quanto possível, já que nem sempre a localização favorável estava perto de uma vila ou cidade importante.
Ora, nos tempos coloniais, as pessoas eram, em geral, muito religiosas, mesmo aquelas que não poderiam ser reputadas como modelos de virtudes. Assim, entre as instalações de um engenho estava sempre uma capela e, para manter a regularidade dos ofícios religiosos, entre os trabalhadores livres os senhores de engenho faziam constar um padre, que era assalariado, conforme conta o Padre Fernão Cardim, em carta datada dos anos oitenta do Século XVI:
"O Padre Quirício Caxa e eu pregamos algumas vezes nas ermidas que quase todos os senhores de engenhos têm em suas fazendas, e alguns sustentam capelão à sua custa, dando-lhe quarenta ou cinquenta mil réis cada ano, e de comer à sua mesa." (*)
Qual era o poder aquisitivo do salário anual que recebia um capelão de engenho? Apenas para efeito de comparação, vale lembrar que, no Século XVI, em São Paulo, onde a quantidade de escravos indígenas era muito grande, o preço de um nativo escravizado, de acordo com a idade e capacidade para o trabalho, além da tribo de origem, variava, mais ou menos, entre 5 e 15 mil réis. Ou seja, se não era regiamente pago, um capelão, por outro lado, não sendo alguém de grandes ambições, podia levar uma vida razoável, para os padrões da época e condições proporcionadas pela Colônia.
O hábito de ter um padre capelão foi mantido, com o passar do tempo, mesmo porque era símbolo de status, para um senhor de engenho, ter quem celebrasse missas, batizasse as crianças e fizesse casamentos em sua capela. Mais de cem anos depois do Padre Cardim, Antonil, em sua famosa obra Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas, mencionaria os capelães entre os funcionários livres assalariados que os engenhos precisavam ter.

(*) CARDIM, Pe. Fernão, S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. 
Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, p. 52.


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