terça-feira, 5 de setembro de 2017

Uma figueira com a assinatura de Dom Pedro

Velhas árvores, cuja existência supera a de algumas gerações de humanos, costumam guardar registros interessantes. Não digo isso por causa dos anéis que, não contentes em revelar a idade da árvore a que pertencem, ainda acrescentam muitas outras informações, como é o caso das condições climáticas ao longo de sua existência. É que muita gente gosta de deixar marcas em troncos de árvores - quem é que nunca viu algo assim? Basta uma faca, canivete ou outro objeto cortante, e o pobre vegetal ganha uma cicatriz que já não pode ser apagada. Imaginem, então, leitores, se o rabisco for feito por alguma celebridade. Sorte ou azar, a árvore logo fica famosa. 
Pois foi exatamente sobre uma árvore dessas que escreveu Augusto-Emílio Zaluar em suas memórias de viagem pelo Vale do Paraíba no Século XIX. Tratava-se de uma respeitável figueira, testemunha silenciosa das idas e vindas de tropeiros e suas mulas, além de muitos outros viajantes, alguns deles, anônimos, e outros, conhecidos até demais:
"Este gigante de vegetação, que nasceu de uma estaca de tropeiros, é duplamente digno de veneração. A ramagem que lhe sombreia o tronco colossal pode abrigar uma porção de cavaleiros. A base do tronco tem umas poucas de braças. É um templo de verdura levantado às portas da cidade, apontando em sua imponente majestade um fato importante nas tradições nacionais." (¹)
Zaluar parece fazer suspense... E continua:
"Vê-se aí entalhada a firma de S. M. o Imperador o Sr. D. Pedro I pelo seu próprio punho.
Quando o fundador do Império foi ao Ipiranga proclamar a independência do Brasil (²), passou aqui na tarde de 11 de julho de 1822 [...], e foi por essa ocasião que entalhou a sua inicial no tronco da figueira. A árvore hoje tem crescido a ponto de que as letras P. I., que então ficavam na altura do braço de um cavaleiro, agora têm a elevação de mais de três homens." (³)
Não tenho nenhuma intenção, leitores,  de desfazer a alegria das tradições locais, mas, se era nessa altura que se encontrava o rabisco supostamente entalhado por D. Pedro, será forçoso admitir que, para gravá-lo, o jovem príncipe precisaria ter escalado a árvore, como o fariam os meninos travessos.
Por quê? Ora, leitores, porque, explicando de um modo bem simples, nas árvores o crescimento acontece na ponta do caule (gema apical) ou de seus vários ramos (dependendo da espécie); tudo o mais permanece exatamente à mesma altura. Então, se D. Pedro houvesse entalhado seu nome, digamos, em um ponto do caule da figueira que estivesse a dois metros do chão, durante toda a vida da árvore a marca estaria exatamente à dita altura, jamais alcançando "a elevação de mais de três homens", como afirmou Zaluar. 
Além disso, o autor em questão, parecendo um tanto crédulo, não deve ter atentado para outro fato: em julho de 1822 D. Pedro nunca teria assinado P. I., quer o "I" significasse "primeiro", quer "imperador", porque nessa ocasião ele não era nem uma coisa e nem outra. Era, sim, príncipe regente do Brasil e herdeiro do trono português. Não era pouca coisa, mas a independência, que faria de D. Pedro o primeiro imperador do Brasil, constituía-se, na época da suposta assinatura, em um evento ainda no futuro.

(1) ZALUAR, Augusto-Emílio. Peregrinação Pela Província de São Paulo 1860 - 1861. Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1862, pp. 120 e 121.
(2) O episódio que se considera como proclamação da Independência ocorreu quando D. Pedro vinha de Santos para São Paulo, no final da tarde de 7 de setembro de 1822; portanto, o caminho óbvio foi outro. Zaluar talvez quisesse dizer que D. Pedro passara pela famosa árvore quando vinha do Rio de Janeiro.
(3) ZALUAR, Augusto-Emílio. Op. cit., p. 121.


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2 comentários:

  1. - ZA, onde fica LUa?
    - No AR.
    Parece que, afinal, Zaluar era um cabeça no ar. :)

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    1. Kkkkkkkkkkkk, acho que nem tanto. Era apenas um pouco crédulo.

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