quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Solução de conflitos familiares (de acordo com o Código de Hamurabi)

Tenho um palpite de que Maquiavel ficaria feliz se pudesse conhecer Hamurabi - sim, leitores, eu sei que, separados por milênios, esse encontro jamais seria possível - mas a questão é que ambos adotaram em suas obras (¹) o mesmo princípio de tratar a sociedade tal qual ela era, com seus costumes, tradições, defeitos, etc., realisticamente, sem envolvimento em utopias improváveis. O pensamento de Maquiavel é amplamente conhecido; o de Hamurabi ficará mais claro com dois exemplos práticos. Vejamos, então!
A utopia familiar dita: os pais devem ter idêntico amor por todos os seus filhos. Retruca a realidade: Isso dificilmente acontece. Lá vem Hamurabi, e diz:
"Se um homem dá um presente a seu filho preferido, seja um campo, um horto ou uma casa, e confirma e doação por escrito e com seu selo, se o pai morrer, os filhos dividirão entre si a herança: aquele filho conservará o presente que recebeu e o restante dos bens será divido igualmente entre todos os irmãos."
Tinha força de lei: o queridinho do papai conservava o presente recebido e, além disso, era incluído na partilha geral. Observem, leitores, que o legislador não gastou tempo em repreender a ausência de equidade do pai (²), nem tentou introduzir alguma reforma social revolucionária na estrutura familiar; em lugar disso, limitou-se a determinar o que devia ser feito diante de um potencial conflito entre irmãos.
Mais um exemplo, desta vez relacionado aos desentendimentos de um casal:
"Se uma mulher contender com seu marido e disser: "Você não pode mais viver comigo", deverá apresentar seus motivos diante do conselho [do lugar em que vive]; se ela não for culpada e não houver cometido nenhum erro (³), mas o marido é que é negligente para com ela, então a mulher será considerada inocente, poderá receber de volta o seu dote e retornar à casa de seu pai. Mas, se ela não for inocente, se houver deixado seu marido [por outro homem] e arruinado sua casa, sendo descuidada com seu marido, ela deve ser jogada no rio."
Chocante? Talvez, mas vejam que em nenhum momento a legislação inclui algum discurso moral quanto à fidelidade no casamento. Hamurabi sabia, afinal, que casais podiam se desentender e que adultérios aconteciam. Seu Código apenas definia o que fazer quando os problemas conjugais chegavam a transtornar a paz da comunidade. Quanto à punição para a má esposa, está perfeitamente de acordo com o sistema penal do Código. Em outros casos, as prescrições incluíam cortar uma orelha, arrancar um olho e até queimar vivo um criminoso. 

(1) O Príncipe (no caso de Maquiavel) e o Código de Hamurabi, uma compilação de leis datada de 1750 a.C., aproximadamente.
(2) Esse fato parece sugerir que o fenômeno era comum na Mesopotâmia. Ninguém iria perder tempo em legislar sobre alguma coisa que jamais acontecia.
(3) O erro em questão seria, provavelmente, um adultério.


Veja também:

2 comentários:

  1. O olho por olho, dente por dente da Lei de Talião, aplicado na época por Hamurabi.
    O Direito a construir-se até chegar aos nossos dias.

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    1. Sim, certamente. Mas ao menos havia uma vantagem na lei de talião: o infrator era punido na mesma medida da ofensa, e não mais que isso. Era uma barreira à vingança sem limite.

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