Lamento por decepcionar algum leitor neófito neste blog, mas não haverá aqui nenhuma receita culinária que seja útil para o Século XXI. O caso é outro, e deixo a explicação por conta de Lucas Rigaud, um cozinheiro famoso que esteve a serviço dos reis de Portugal. Encontramos em seu livro, publicado em 1780, cujo título é Cozinheiro Moderno ou Nova Arte da Cozinha (¹), a seguinte prescrição:
"Caldo em pastilhas, ou de conserva, para se transportar, ou por mar, ou por terra a países desertos em jornadas dilatadas; para comandantes de exércitos, governadores de praças sitiadas, cidades aflitas de peste e outros acidentes que podem sobrevir, e em que por nenhum dinheiro se pode encontrar nem galinha, nem carne." (²)
Portanto, meus leitores, nosso interesse, aqui, será apenas histórico, visto que não viajaremos por mar ou terra nos Séculos XVIII ou XIX, não comandaremos exércitos e não governaremos alguma cidade cercada por inimigos, tampouco estaremos em "cidades aflitas de peste" (assim esperamos) (³). Mas a receita, em si, é curiosa, porque nos dá uma boa ideia dos ingredientes manipulados por um chef da importância de Lucas Rigaud. Vejamos, então:
"Tome-se uma perna redonda de vaca, duas pernas de vitela [...], oito ditas de carneiro, quatro perus velhos, doze galinhas, seis galos e capões, duas dúzias de perdizes, quatro ou cinco arráteis de presunto limpo de ossos e gordura; todas estas aves limpas, vazadas e chamuscadas se deitem de molho, assim como também a carne das pernas de vaca e de vitela feita em postas grandes, sem gordura e sem ossos, e depois de tudo muito bem lavado e escaldado, deite-se em uma panela grande (⁴) ou caldeira cheia de água, e ponha-se ao lume a ferver um pouco [...]." (⁵)
Coragem, leitores! Vamos adiante. A seguir, recomendava-se que tudo fosse temperado com sal, pimenta, cravo-da-índia e gengibre, ficando a ferver por cerca de duas horas. Depois, era preciso adicionar, entre outros ingredientes, cenouras, alho-poró, cebolas, aipo e nabos, e estando tudo cozido, vinha o que poderíamos chamar de dupla filtragem e clarificação. Ia tudo novamente ao fogo para reduzir. Continuava Rigaud:
"Estando grosso [...], deite-se em cima de torteiras ou frigideiras de barro, mas que não fique de mais da grossura de um dedo, e deixe-se esfriar; depois de frio, corte-se em bocados iguais, e cada um do peso de uma onça (⁶), e ponham em tabuleiros ou em peneiras com folhas de papel por baixo, e metam-se a secar em uma estufa ou exponham-se por alguns dias ao vento norte; estando bem enxutos, embrulhem cada bocado em seu papel, e guardem-se em frascos de boca larga muito bem tapados." (⁷)
Vemos, portanto, quão trabalhoso era preparar esse "caldo de carne para emergências" em tempos anteriores à industrialização. Não imagino que alguém queira testar o processo, mas, para concluir, será interessante saber o que deveria ser feito por quem pretendesse utilizar o "produto":
"Quando suceder quererem fazer um caldo, desfaçam ou derretam em um quartilho de água fervendo uma onça ou onça e meia, se for necessário, desta composição, e segundo a pessoa que o quiser tomar o queira mais ou menos forte." (⁸)
Lembrem-se, meus leitores: Lucas Rigaud somente adicionou essa receita a seu livro porque devia ter a certeza de que poderia ser proveitosa; ele mesmo deve tê-la praticado uma e outra vez. Tudo isso pode soar como mera curiosidade, mas fornece, afinal, um parâmetro do que eram os procedimentos de cozinha em tempos agora distantes.
(1) Essa obra, publicada inicialmente em 1780, teve várias edições, de onde se pode medir o apreço com que foi acolhida.
(2) RIGAUD, Lucas. Cozinheiro Moderno ou Nova Arte da Cozinha 5ª ed. Lisboa: Typografia Lacerdina, 1826, p. 204.
(3) A blogueira é vegetariana; portanto, também não tem qualquer interesse em caldo de galinha ou carne para alimentação.
(4) Sábia recomendação!
(5) RIGAUD, Lucas. Op. cit., p. 204.
(6) Pouco mais ou menos de 30 g, dependendo do sistema empregado.
(7) RIGAUD, Lucas. Op. cit., p. 205.
(8) Ibid.
Veja também:
Devia ser uma dose de cavalo, Marta. Gostei da curiosidade apesar de não pretender ver-me numa dessas circunstâncias infelizes em que tal iguaria seria útil...
ResponderExcluirAbraço
Ruthia d'O Berço do Mundo
Também não faço a mínima questão de provar essa receita, mas é interessante ver o que é que gente de outros tempos fazia para sobreviver, não é?
ExcluirBem, Marta, pelo menos ficamos com a certeza que esses preparativos representavam uma enorme azáfama.
ResponderExcluirHmmm, quanto a isso, não há dúvida! rsrsrsssss
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