terça-feira, 31 de julho de 2018

Pero Corrêa - de escravizador de indígenas a missionário jesuíta

Um pequeno grupo de jesuítas foi mandado por Manuel da Nóbrega ao interior, com o propósito de iniciar a catequese de indígenas identificados por Anchieta como "ibirajaras". Estavam também incumbidos da tarefa de achar caminho pelo qual fosse possível chegar às terras de colonização espanhola no Paraguai. Iam, entre eles, Pero Corrêa e João de Sousa, missionários. 
Interessante a história desse Pero Corrêa. Português, viera ao Brasil como colonizador e, como muitos outros, queria prosperar. Não demorou muito e estava envolvido com o apresamento de indígenas para escravização. Em uma carta escrita em São Vicente em 15 de março de 1555, Anchieta observou: "Era um dos principais portugueses que estavam nesta terra e andava em uma nau, por toda a parte, matando índios ou aprisionando-os, parecendo-lhe que fazia um grande serviço a Nosso Senhor [...]." (¹) Que serviço, prestava ele!...
Mas, um dia, tudo mudou. O caçador de índios resolveu mudar de vida e se tornar jesuíta. Novamente de acordo com Anchieta, "logo que a trombeta de Cristo começou a soar pelos da Companhia, foi ele o primeiro que dobrou o colo ao jugo dela; e dizia muitas vezes, e de tal se persuadira, que se queria salvar-se, era mister que todo se desse ao serviço desses índios, até morrer pela alma deles, não achando nenhuma satisfação com que reparasse o mal que lhes havia feito." (²)
É difícil identificar o que poderia ter provocado tão notável emenda. Seria, talvez, sentimento de culpa, medo das penas eternas (conforme se ensinava na época), quem sabe arrependimento sincero? De qualquer modo, admitido como irmão na Companhia de Jesus, logo estava Pero Corrêa mergulhado na catequese de indígenas, ajudado pelo conhecimento que tinha da língua por eles falada. 
Seria até natural, todavia, que os índios, sabendo quem era o sujeito, tivessem medo dele. Não estaria preparando uma armadilha para capturá-los aos milhares? 
Pero Corrêa foi jesuíta durante cinco anos, até ser enviado por Nóbrega, com outros religiosos, na expedição para catequese dos "ibirajaras". Ao que parece, a insistência em que abandonassem a antropofagia soou demasiado irritante para os senhores da terra, que resolveram acabar com o incômodo. João de Sousa foi o primeiro a morrer, sob o efeito das flechadas recebidas. Em seguida, foi a vez de Pero Corrêa. Em outra carta, também de 1555, mas escrita em São Paulo, Anchieta relatou: "O irmão Pero Corrêa, vendo isto [a morte de João de Sousa], lhes começou a falar, e a resposta deles era flechadas [...], até que, não podendo mais sofrê-las, deixou o bordão que trazia e se pôs de joelhos, encomendando sua alma ao Senhor [...]." (³) Infere-se que a notícia da morte dos dois missionários tenha chegado a Nóbrega, Anchieta e aos demais jesuítas por boca dos outros integrantes da expedição, que conseguiram escapar.  

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 81.
(2) Ibid.

quinta-feira, 26 de julho de 2018

Cidades da Antiguidade eram muito escuras à noite

Um aspecto encantador das cidades de nosso tempo, à noite, é a profusão de luzes. São elas tão intensas, que chegam a lançar a lua e as estrelas no esquecimento. Grandes cidades nunca descansam. Há sempre gente indo e vindo, e as luzes dos automóveis em movimento fazem sua parte para dar a qualquer observador a sensação de que a contagem das horas é mesmo apenas mais uma convenção da vida em sociedade. Já não temos muita ligação com o tempo da natureza.
Tudo era diferente na maioria das cidades da Antiguidade. Assim que anoitecia, tornava-se muito perigoso estar nas ruas, mesmo em lugares de excelente reputação. Quem ousava permanecer fora de casa devia ouvir, apreensivo, qualquer ruído - quem seria? Roma, nesse aspecto, era exceção, porque, proibidos de circular pelas ruas durante as horas do dia, mercadores que faziam uso de carroças ou carruagens precisavam realizar entregas à noite (¹). Não obstante, era sempre um risco sair depois que escurecia, e aqueles que tinham escravos (²) levavam alguns deles consigo, para que carregassem tochas. Desenhava-se, portanto, o cenário perfeito para quem planejava algum malefício, dos larápios vulgares aos que perpetravam um golpe de Estado.
As cidades muradas tinham guardas que se revezavam à noite, caminhando sobre os muros (³), sempre à luz de archotes. Faziam isso por razões militares, para evitar que eventual inimigo, tirando vantagem da escuridão, tramasse um ataque de surpresa. As forças policiais da época usavam idêntico sistema de iluminação.
Contudo, havia, às vezes, noites cheias de luz: eram as ocasiões de festa, de procissões religiosas, de celebrações por grandes conquistas militares. Entre os gregos, por exemplo, Hefestos era homenageado com corridas noturnas, nas quais cavaleiros cumpriam uma prova de revezamento, transferindo tochas ao competidor seguinte. Devia ser um belo espetáculo.
Quando a festa acabava, as tochas se apagavam e, a não ser pela luz ocasional que bruxuleava de alguma candeia doméstica, tudo mergulhava em trevas. Forjavam-se, assim, lendas fantasmagóricas.

(1) Em Roma, o tráfego de pedestres e cavaleiros era muito complicado, em razão das ruas estreitas e, muitas vezes, sinuosas. Por isso, desde fins da República havia uma lei que restringia o trânsito de carros e carruagens de comerciantes às horas da noite.
(2) Era difícil encontrar em Roma algum homem livre que não tivesse escravos. Prisioneiros de guerra abasteciam continuamente o mercado de trabalhadores cativos.
(3) Em muitos casos, os muros eram tão largos, que não apenas permitiam que soldados caminhassem sobre eles sem dificuldades, como possibilitavam até o trânsito de carros de combate.

terça-feira, 24 de julho de 2018

Uma pequena igreja construída em taipa no Século XIX

O povoamento do Brasil Central ocorreu com maior intensidade a partir do Século XVIII, em resultado das expedições bandeirantes, da mineração e do estabelecimento de rotas de tropeiros. É nesse quadro que está inserida a origem de Planaltina - DF, com data incerta, mas ligada à presença na localidade de um artesão, o "mestre d'armas", que exercia o ofício de ferreiro. Os leitores certamente têm conhecimento de que, nesses tempos já distantes, um ferreiro era profissional bastante requisitado: quem mais iria dar forma às tão necessárias ferraduras dos cavalos? Seu trabalho, contudo, ia além. Devia saber trabalhar com armas, utensílios domésticos, e muitos outros objetos. Não surpreende, portanto, que ao redor da moradia de alguém com uma ocupação necessária e estratégica como essa, surgisse uma povoação.
No Século XIX, construiu-se ali, na localidade de Mestre d'Armas, uma pequena igreja de taipa, tendo São Sebastião por orago. Até onde se sabe, essa modesta, mas significativa edificação, é a mais antiga igreja dentro do Distrito Federal. As fotos abaixo darão uma ideia do que ela é.


















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quinta-feira, 19 de julho de 2018

Origem mitológica do nome de alguns lugares da Grécia Antiga

Os antigos gregos atribuíram nomes a muitos lugares com base em episódios de sua mitologia. Que tal, leitores, se considerarmos alguns exemplos?

Como surgiu a ilha de Delos

Leto, perseguida por Hera, a (justificadamente) ciumenta incorrigível, procurava, em desespero, um lugar onde trazer ao mundo os gêmeos Ártemis e Apolo (filhos de Zeus...). Poseidon, deus dos mares, veio ajudá-la, fazendo surgir uma ilha no mar Egeu: era a ilha de Delos.

De onde vem o nome do mar Egeu

Egeu era rei em Atenas, ao tempo em que essa cidade, derrotada em batalha contra Creta, fora obrigada a aceitar o terrível castigo de, periodicamente, enviar a Cnossos sete rapazes e sete moças, cujo destino era servir de alimento ao Minotauro. Em uma dessas ocasiões, Teseu, filho do rei Egeu, se apresentou entre os jovens, combinando com o pai que, se vencesse o Minotauro, voltaria para casa com velas brancas na embarcação; se fosse morto, os marinheiros atenienses conservariam as velas negras. Em Creta, depois de obter a ajuda da filha de Minos, Teseu matou o Minotauro, mas, ao voltar à sua cidade, a alegria da vitória levou-o ao esquecimento de usar as velas brancas. Egeu, que observava, angustiado, dia após dia, à espera de notícias, vendo o navio e suas velas escuras, mergulhou no mar, que, em sua homenagem, foi chamado mar Egeu.

Dédalo e Ícaro, ou a origem do nome do mar Icário

Dédalo havia projetado o labirinto, residência-prisão do Minotauro. Ocorre que o próprio Dédalo, depois de desentender-se com Minos, acabou, juntamente com o filho Ícaro, aprisionado no labirinto que construíra. Genialidade em ação, Dédalo projeta asas, com as quais ele e o filho voam para a liberdade. Todavia, Ícaro, deslumbrado pela beleza da luz e do mar, voa em direção ao sol, cujo calor derrete a cera usada na confecção das asas. O jovem cai no mar e morre. Ao lugar em que os antigos gregos acreditavam que Ícaro caíra foi dado o nome de mar Icário.

Penso, meus leitores, que estamos prontos, agora, para algumas considerações. É preciso lembrar que a Grécia da Antiguidade tinha um território muito maior do que aquele que hoje corresponde à República Helênica: abarcava, também, a chamada Ásia Menor e colônias da Magna Grécia, algumas delas estabelecidas mesmo em território das atuais Itália e França. Assim, sempre que uma colônia era fundada, existia oportunidade para homenagear personagens da mitologia.
Havia, contudo, algo mais. Aquilo a que chamamos mitologia, para os antigos gregos era religião. É perfeitamente possível que, atrás de certas narrativas da mitologia, houvesse algum acontecimento real, porém interpretado e reinterpretado à luz das crenças populares vigentes. Nos camarins das realizações humanas estariam sempre os deuses do Olimpo, de contínuo ocupados em intrigas, quer favorecendo seus protegidos, quer prejudicando os desafetos. Em poucas palavras, o destino dos homens era manipulado pelos deuses. Tendo em vista tal cenário, os mitos ganham sentido. Dédalo, por exemplo, ainda que genial, vê o filho, enlouquecido pela liberdade do voo, desafiando o sol e caindo para morrer no mar. Para os gregos, o sol era Apolo. O preço por confrontar os deuses era alto demais. 


terça-feira, 17 de julho de 2018

Como marinheiros sabiam que estavam perto de terra

Embarcação chegando a terra; marinheiros nem
sempre sabiam exatamente onde estavam (¹)

Quando modernos instrumentos náuticos não estavam ainda disponíveis e os mapas eram precários, marinheiros tinham alguns métodos, desenvolvidos com a experiência, para saber se estavam perto de alguma terra. Um deles era fazer sucessivas medições da profundidade do oceano, entendendo que, se as medidas iam se tornando cada vez menores, é porque logo alcançariam ilha ou continente. Vegetais boiando e mesmo a observação de aves que, sabidamente, formavam colônias, também eram vistos como indícios animadores. Foi Pero Vaz de Caminha quem escreveu: "Assim seguimos nosso caminho por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram vinte e um dias de abril, topamos alguns sinais de terra [...], os quais eram muita quantidade de umas ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E na quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos."
A marujada tinha razão. Em 22 de abril, topariam com terra, muita terra. Mas eles ainda não sabiam que era tanta assim, e Cabral, que comandava o grupo de navios portugueses, iria chamá-la Ilha de Vera Cruz. Atribuir topônimos, nesse tempo, era quase um ritual religioso, de onde se compreende o nome dado ao lugar. Mas não era só.
Olhem para o céu austral, leitores, e vocês verão, lá em cima, o Cruzeiro do Sul (²). Se quiserem saber a localização dos pontos cardeais, basta medir quatro vezes e meia o braço maior da constelação, a partir da Estrela de Magalhães (na base da cruz), e terão a localização aproximada do Sul. Fica fácil, a partir daí, determinar Norte, Leste e Oeste. Em noite limpa, o Cruzeiro do Sul evitava a navegação a esmo, ainda que uma bússola não estivesse disponível. Era, para os marinheiros, a contrapartida, no Hemisfério Sul, daquilo que a Estrela Polar representava no Hemisfério Norte. 
Entretanto, há no Hemisfério Sul outro grupo de estrelas em forma de cruz: é a Falsa Cruz. Um navegador inexperiente, crendo que se orientava pelo Cruzeiro do Sul, podia muito bem arranjar problemas, caso se guiasse pela Falsa Cruz. Agora, leitores vocês já entendem a razão do primeiro nome atribuído ao Brasil, a terra da verdadeira (ou "vera") cruz. Lembrem-se disso, quando virem no céu a famosa constelação.

(1) ARTHUS, M. Gotthart, OTTSEN, Heinrich et alii.  Warhafftige Beschreibung der unglückhafften Schiffarht eines Schiffs von Ambsterdam. Frankfurt am Main: Wolff Richtern, 1604. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Ou Crux.


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quinta-feira, 12 de julho de 2018

Atletas eram repórteres de guerra na Antiguidade

Soldado grego desconhecido (²)
Por favor, leitores, esqueçam, por um instante, as comunicações digitais. Vamos à Antiguidade, aos campos de batalha em que as armas mais comuns eram as espadas, os arcos, as flechas, as lanças, até mesmo as fundas, com que romanos e outros povos arremessavam bolas de chumbo. A comunicação à distância era feita, quase sempre, através de sinais de fumaça. O processo, porém, era trabalhoso, além de afetado por circunstâncias naturais. Sendo necessário enviar notícias exatas, verdadeiras reportagens de guerra, a mídia era outra, um soldado de esplêndida capacidade física, capaz de correr grandes distâncias, e, ao chegar, ter ainda fôlego para fazer o relatório que dele se esperava.
Foi durante as Guerras Médicas (¹) - na iminência de um ataque persa, comandantes gregos procuraram um mensageiro experiente, que, mandado a Esparta, solicitasse ajuda. O escolhido, de acordo com Heródoto (³), foi Fidípides: "Os comandantes enviaram Fidípides, o qual disse que durante a viagem lhe apareceu o deus Pan, e depois de dois dias chegou a Esparta [...]." (⁴)
À vista disso, e supondo que o relato de Heródoto seja verídico (⁵), Fidípides pode ser considerado um mensageiro-soldado-atleta-repórter notável. Plínio, o Velho (⁶), autor romano, entendia ter havido outros ainda mais destacados: "Correndo mil cento e quarenta estádios (⁷) entre Atenas e Esparta em dois dias, Fidípides foi o maior, até que Anistis, espartano, e Filonides, mensageiro de Alexandre Magno, correram mil trezentos e cinco estádios em um só dia [...]." (⁸)
Fidípides, Anistis, Filonides: destes sabemos o nome. Muitos outros foram simplesmente esquecidos. Em alguns casos, as notícias que levaram eram de tanta relevância que chegaram até nós, e, a elas, hoje, chamamos História.

(1) Entre gregos e persas (a quem os gregos, genericamente, chamavam medos - daí o nome atribuído às guerras).
(2)HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 1. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Século V a.C.
(4) HERÓDOTO, Histórias, Livro VI.
(5) Não parece haver incongruências no relato, que é consistente com as condições reinantes na época. Entre a obra de Heródoto e os acontecimentos relacionados às Guerras Médicas há um intervalo muito curto, e pode-se com razão entender que esse autor sabia do que falava, ou não teria nenhuma credibilidade entre os contemporâneos.
(6) 23 - 79 d.C.
(7) "Estádio" era uma medida antiga que variava de 158,5 a 185 metros.
(8) PLÍNIO. Naturalis Historia, Livro VII. Os trechos citados de Heródoto e Plínio foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.

terça-feira, 10 de julho de 2018

O padre Antônio Vieira e as confissões dos escravizadores de indígenas

Como alguém que, nascido no Reino, se criara na Bahia, o padre Antônio Vieira, ao ir por escolha própria ao Maranhão para a catequese de indígenas, pressentiu que logo teria de enfrentar a oposição dos colonizadores. A razão para atrito seria, como é fácil deduzir, o costume já arraigado de "descer índios" para obrigá-los à mais amarga escravidão.
Vieira era reputado grande pregador; ir às igrejas ouvir sermões era, em seus dias, parte da vida social nas cidades coloniais. Sem travas na língua, o jesuíta fazia uso do púlpito para atacar os desmandos correntes, enquanto o povo, zeloso em manter as aparências, ouvia em silêncio, ainda que, interiormente, moído de ódio. Vale uma pequena amostra, palavras introdutórias do Sermão de Santo Antônio, proferido em São Luís do Maranhão em 1654, em que vocês, leitores, poderão medir a audácia desse notável orador sacro:
"Vós, diz Cristo Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra, e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar." (¹)
Com um pouco de imaginação, quase podemos ouvir uma interjeição a custo abafada pelos devotos ouvintes!... Os sermões eram longos e a multidão reunida na igreja ouvia e ouvia. No confessionário, porém, a situação era outra.
Chega a ser surpreendente que o mesmo Vieira, que não temia desafiar os poderosos enquanto pregador, fosse partidário de muita prudência quando os figurões da São Luís colonial compareciam para confissão. Uma decisão nesse sentido fora tomada em conjunto com os mais jesuítas que o haviam acompanhado, após um debate sobre "casos de consciência", no melhor estilo da época. Disso sabemos porque, escrevendo ao Provincial do Brasil em 22 de maio de 1653, o próprio padre Antônio Vieira explicara:
"Resolveu-se que a quem se não confessasse deste pecado [de escravizar indígenas] não tínhamos obrigação de lhe falar nele, assim por não poder constar de certo de tal penitente em particular estar em má consciência, como por se presumir geralmente de todos, que o mover-lhe escrúpulo em semelhante matéria seria sem nenhum fruto (...)." (²)
Na mesma carta, Vieira passa, em seguida, a expor mais detalhadamente o procedimento que eles, inacianos, haviam combinado, ainda em relação ao espinhoso assunto da escravização de indígenas:
"Sobre esta resolução assentamos três coisas muito necessárias ao serviço de Deus, e à nossa conservação nestas partes (³). Primeira, que nas conversações com os seculares, nem por uma nem outra parte falássemos em matéria de índios. Segunda, que nem ainda na confissão se falasse em tal matéria, salvo quando a disposição do penitente fosse tal, que se julgasse seria com fruto, principalmente na morte [sic!]. Terceira, que se na confissão por escrúpulo, ou fora dela por conselho, algum nos perguntasse a obrigação que tinha, lha declarássemos com toda a sinceridade e liberdade." (⁴)
À primeira vista, alguém poderia julgar covarde a atitude dos padres, mas as últimas palavras citadas demonstram que não era nem de longe por fraqueza que se adotavam precauções. Os missionários sabiam os riscos que corriam, e que uma postura imprudente podia pôr a perder seus projetos de catequese. Talvez seja admissível, sim, levantar a questão quanto ao que teria ocorrido se a conduta assumida fosse diametralmente oposta, ou seja, se houvessem calado, enquanto pregadores, sobre a escravização de ameríndios, reservando ao confessionário mais veementes admoestações - haveria alguma diferença?
Nem toda a cautela deste mundo impediu que os moradores de São Luís e adjacências levantassem uma feroz oposição aos "padres da Companhia". Interesses econômicos pesavam mais que convicções religiosas na hora de explorar a força de trabalho dos indígenas. Vieira chegou a ir ao Reino para dar queixa ao monarca quanto à má conduta de administradores do Maranhão e do Pará, assim como do povo em geral. Tudo em vão: o apoio formal obtido na Corte não era obstáculo de robustez suficiente para deter a maré de destemperos coloniais.  

(1) VIEIRA, Antônio S. J. Sermões vol. 2. Lisboa: Oficina de Miguel Deslandes, 1682, p. 309.
(2) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860, p. 324.
(3) Percebe-se que o padre Antônio Vieira tinha consciência de quão arriscada era a proposta dos missionários em defesa dos indígenas, diante da oposição dos colonizadores.

quinta-feira, 5 de julho de 2018

A música era usada nas reduções indígenas como estímulo à aceitação da catequese

Assim como acontecia nas missões estabelecidas na América Portuguesa, a catequese de indígenas em áreas de presença espanhola foi bastante facilitada mediante o emprego da música. Havendo nas reduções algum religioso hábil no ensino da arte do canto, não tardava a haver um coro de meninos, capaz de participar dos ofícios religiosos. Em alguns casos, pela presença de um padre com conhecimentos de luteria, foi possível ensinar aos indígenas a construção de instrumentos musicais, cuja sonoridade enriquecia as festas destinadas a quebrar a rotina usualmente imposta aos ameríndios que concordavam em viver sob a tutela da Companhia de Jesus em uma redução
Além disso, o emprego de música na catequese oferecia a vantagem de funcionar como propaganda para atrair indígenas que hesitavam em abandonar seu estilo de vida tradicional - foi o que disse o padre Antonio Ruiz de Montoya (¹) no Século XVII:
"[Os índios] são muito aficionados à música, que os padres ensinam aos filhos dos caciques, assim como a ler e escrever; oficiam as missas com aparato de música de dois ou três coros; esmeram-se em tocar instrumentos [...], que são uma grande ajuda em fazer brotar nos gentios o desejo de admitir-nos em suas terras, para que seus filhos também sejam ensinados." (²)

(1) Nascido em Lima, filho de um espanhol, foi admitido na Companhia de Jesus em 1606. Dedicou a vida à catequese e defesa dos ameríndios contra a escravização imposta pelos chamados "conquistadores" da América.
(2) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 3 de julho de 2018

Embaúbas

Embaúbas (¹) podem ser encontradas em quase todo o Brasil e em outros pontos do Continente Americano. Por seu aspecto curioso, atraíram a atenção de viajantes estrangeiros que passaram pelo Brasil em diversos momentos do Século XIX. Thomas Ender, por exemplo, um pintor vienense que esteve no Brasil durante o governo joanino, esboçou-as assim:

Embaúbas, de acordo com Thomas Ender (²)

J. M. Rugendas, que esteve no Brasil durante a terceira década do Século XIX, incluiu uma embaúba nesta gravura, cujo título em Malerische Reise in Brasilien é "Encontro de índios com viajantes europeus". Observem, leitores, na parte superior à direita:

"Encontro de índios com viajantes europeus", de acordo com Rugendas (²)

Um pouco mais tarde, o príncipe Adalberto da Prússia, que chegou ao Rio de Janeiro em 1842, anotou em suas recordações de viagem:
"Tinha um aspecto peculiar um grupo de embaúbas cujos troncos brancos, lisos e finos, enraizados numa colina ao lado do caminho, erguiam-se altos saindo do mato, e cuja pequena coroa era formada por grandes folhas recortadas pitorescamente, encostadas umas nas outras ou sobrepondo-se." (³)

Embaúba jovem, obra de Thomas Ender (²)

O tronco das embaúbas é oco. Alheias a todo o interesse de viajantes estrangeiros pelas espécies nativas da América, formigas fizeram e fazem residência confortável dentro dessas árvores. 

(1) Cecropia.
(2) Os originais pertencem à BNDigital. As imagens foram editadas para facilitar a visualização neste blog. 
(3) ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazonas - Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 115.


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