quinta-feira, 31 de março de 2011

O surgimento de povoações no Brasil - As vilas litorâneas

Já que as primeiras povoações estabelecidas por portugueses no Brasil localizavam-se no litoral, era importante que fossem edificadas junto a bons portos naturais, além de ter, topograficamente, condições favoráveis à defesa, uma vez que os ataques de corsários eram frequentes e, com o tempo, o confronto com os indígenas (por razões óbvias), fez-se também habitual. Assim, considera-se que, formalmente, a primeira dessas povoações foi São Vicente, estabelecida por Martim Afonso de Sousa. É o próprio irmão desse explorador e navegador quem relata:
"A todos nos pareceu tão bem esta terra que o capitão determinou de a povoar, e deu a todos os homens terras para fazerem fazendas, e fez uma vila na Ilha de São Vicente e outra nove léguas dentro pelo sertão, à borda de um rio, que se chama Piratininga, e repartiu a gente nessas duas vilas e fez nelas oficiais; e pôs tudo em boa obra de justiça, de que a gente toda tomou muita consolação, com verem povoar vilas e ter leis e sacrifícios e celebrar matrimônios e viverem em comunicação das artes, e ser cada um senhor do seu e vestir as injúrias particulares e ter todos os outros bens da vida segura e conversável." (¹)
Dessas povoações junto ao litoral é que partiram, gradualmente, grupos de exploradores que buscavam investigar o interior do Brasil. E, segundo Saint-Hilaire, foi o mesmo Martim Afonso quem liderou um passo significativo nesse sentido:
"A Martim Afonso, em última palavra, deve-se o primeiro estabelecimento regular dos portugueses em o Novo Mundo. Esse ilustre homem não se contentou, porém, como tantos outros capitães portugueses, em explorar a costa; quis conhecer e desbravar o interior das terras. Através de mil perigos, escalou a cadeia marítima denominada pelos indígenas Paranapiacaba; do cume das altas montanhas que a constitui pôde fazer uma ideia exata da magnífica região cuja posse acabava Martim Afonso de assegurar para a monarquia lusa; e assim penetrou até a planície de Piratininga (1532), domínio de seu fiel aliado - o cacique Tibiriçá." (²)
Antigo canhão em Ubatuba, SP
Em diversos casos, as povoações litorâneas foram estabelecidas em locais de antigos aldeamentos indígenas. Considera-se que Ubatuba, no litoral de São Paulo, por exemplo, foi fundada, no século XVII,  no lugar a que os tamoios reuniam-se e denominavam Iperoig. Esse é um caso interessante, já que o povoamento veio também pelo interesse na defesa da terra como conquista portuguesa, uma vez que a área em que Ubatuba está localizada era frequentemente visitada por corsários franceses, que efetuavam comércio de pau-brasil com a população indígena e que,  por diversas vezes, tentaram estabelecer-se permanentemente no território. Entretanto, quase isolada no litoral norte de São Paulo, Ubatuba demorou a crescer. No início do século XIX, escrevia sobre ela o Padre Ayres de Casal:
"Ubatuba, vila pequena com uma igreja matriz e uma capela de N. Sra. da Conceição, situada junto à foz de uma ribeira, no princípio de uma planície fértil, e regada de várias torrentes: seus habitantes são pescadores e cultivadores de mandioca, arroz e café. Fica pouco menos de oito léguas ao nordeste de São Sebastião, e perto da raia da Província." (³)

Placa em monumento comemorativo à
"Paz de Iperoig" 
em Ubatuba - SP

(1) Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa pela costa do Brasil até o Rio Uruguai (de 1530 a 1532). Rio de Janeiro: Tipografia de D. L dos Santos, 1867, p. 66.
(2) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 142.
(3) AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica.


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terça-feira, 29 de março de 2011

O surgimento de povoações no Brasil - Introdução

Até onde sabemos, a diversificada população indígena que habitava o Brasil antes da chegada dos europeus não tinha o hábito de constituir povoações duradouras, às quais poderíamos dar o nome de cidades. Geralmente nômades, os chamados (erroneamente) índios estabeleciam suas aldeias em áreas promissoras para caça, pesca e coleta, embora a agricultura fosse conhecida e, quase sempre, praticada. Isso, entretanto, não exclui o fato de que algumas vilas e cidades tenham surgido em locais das antigas aldeias indígenas.
Já os portugueses, por um tempo considerável, limitaram-se a estabelecer suas vilas ao longo do litoral, olhando para o relevo e a vegetação como barreiras quase intransponíveis, que só mais tarde foram vencidas, principalmente em nome da busca por metais preciosos. É por isso que Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil, escreveu:
"Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve quem a andasse por negligência dos portugueses, que sendo grandes conquistadores de terras não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos."
Essa expressão, leitor, "andar arranhando ao longo do mar como caranguejos", ficou famosa, e é um retrato curioso e praticamente fiel do que aconteceu no primeiro século da colonização. Lembro que o manuscrito de Frei Vicente do Salvador foi concluído por volta de 1627, quando ele assinala que, em seus dias, era impossível descrever o interior do território brasileiro. A exploração de madeiras nobres foi, nesse período, a atividade econômica vista com mais interesse pelos comerciantes e povoadores lusos.
Acontece que o motivo que reteve os portugueses no litoral podia ser outro - pelo menos é o que diz Pero de Magalhães Gândavo no Tratado da Terra do Brasil, escrito ainda no século XVI:
"Não há pela terra dentro povoações de portugueses por causa dos índios que não o consentem, e também pelo socorro e tratos do Reino lhes é necessário estarem junto ao mar para terem comunicação de mercadorias. E por este respeito vivem todos junto da Costa."
Ainda assim, gradualmente, o interior foi sendo desvendado aos olhos europeus e, nos séculos subsequentes, povoações foram aparecendo ao longo do vasto território do Brasil, mais vasto ainda pela ocupação, por portugueses e seus descendentes, de terras que, pelo Tratado de Tordesilhas, deviam pertencer à Espanha.
Não é meu propósito esgotar o assunto do surgimento de núcleos urbanos no Brasil, mesmo porque os limites de um blog impossibilitariam a empreitada, mas trataremos, nas próximas postagens, de alguns padrões observáveis no surgimento de vilas e cidades. Dentro de um universo já bem conhecido, como são as povoações do litoral, dos antigos aldeamentos indígenas, das áreas de mineração, dos ranchos destinados ao pouso de tropeiros, das capelas e igrejas, dos postos militares de fronteira, das barreiras para cobrança de impostos e das estradas de ferro, elegeremos alguns aspectos para mais considerações.

domingo, 27 de março de 2011

Uma planta desobediente às regras da filosofia

Os primeiros europeus que chegaram à América, em fins do século XV e início do XVI, divulgaram dela descrições que estavam mais para um paraíso que para apenas mais um Continente. Árvores gigantescas, animais, flores e frutos exóticos, tudo era relatado até com um certo exagero, contribuindo para a formação de ideias um tanto fantasiosas e irreais, que mesclavam a apoteose da natureza ao horror dos espetáculos de canibalismo indígena.
Ainda que o exagero fizesse parte das narrativas que então se produziram, era inegável que um novo panorama de diversidade biológica se abria aos estudiosos que, no entanto, não estavam assim tão aptos a desvendar os segredos da América, prisioneiros que eram das velhas formas de pensar derivadas do escolasticismo de inspiração aristotélica.
Por suposto os primeiros autores que versaram sobre o Continente recém-descoberto eram todos europeus; mas, à medida que a colonização prosseguia, filhos de europeus nascidos na América passaram a constar entre os autores de obras que se destinavam claramente a maravilhar os leitores do Velho Mundo. Entre esses autores está Frei Vicente do Salvador que, até onde sabemos, foi o primeiro nascido no Brasil a lançar-se na empresa de escrever uma história da então colônia lusitana. Em seu livro, que por séculos permaneceu sem ser impresso, misturam-se descrições da terra que, em parte, ele conhecia bem (era natural da Bahia) à narrativa dos acontecimentos relacionados à ocupação e governo português, verdadeiras aventuras, muitas vezes, no exato sentido do termo. Seu estilo lembra um pouco o de Heródoto, fazendo-se antes um contador de histórias que um historiador com bases científicas, pelo menos quanto ao modo como hoje entendemos essa questão. Assim, leitor, para dar-lhe a oportunidade de saborear um pouquinho dessa História do Brasil, vai aqui um breve trecho descritivo de uma particularidade vegetal da América:
"Outras há de qualidades ocultas, entre as quais é admirável uma ervazinha, a que chamam erva viva, e lhe puderam chamar sensitiva, se o não contradissera a Filosofia, a qual ensina o sensitivo ser diferença genérica, que distingue o animal da planta, e assim define o animal, que é corpo vivente sensitivo.
Mas contra isso vemos, que se tocam a esta erva com a mão, ou com qualquer outra coisa, se encolhe logo e se murcha, como se sentira o toque, e depois que a largam, como já esquecida do agravo que lhe fizeram, se torna a estender e abrir as folhas; deve isto ser alguma qualidade oculta, qual a da pedra de cevar para atrair o ferro, e não lhe sabemos outra virtude."

Dormideira ou sensitiva (Mimosa pudica) com as folhas abertas

A mesma planta, após ser tocada, com as folhas fechadas
Sim, leitor, está permitido abrir um sorriso... Frei Vicente do Salvador era homem instruído, educado na Universidade de Coimbra, mas incorre aqui na ingenuidade de tentar encaixar todo o novo conhecimento nos velhos modelos herdados da filosofia medieval. Além disso, parece quase admitir a ideia de que pudesse haver alguma propriedade mágica, ainda desconhecida, na plantinha, que compara aos ímãs. Obviamente nada disso diminui o interesse por sua História do Brasil - para mim, só aumenta, na medida em que é um retrato fiel do pensamento da época - mesmo porque ele não era o único a ir por esse caminho, pelo qual passavam a maioria dos intelectuais do período (considera-se que o manuscrito foi concluído por volta de 1627).
Para encerrar a postagem, quero apenas assinalar que, como todo mundo sabe e, malgrado a oposição de Frei Vicente do Salvador, o nome popular dessa plantinha rasteira é mesmo sensitiva ou dormideira, ainda que a nomenclatura binomial a chame Mimosa pudica.


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quinta-feira, 24 de março de 2011

Surfando (literariamente) no rio Piracicaba

Muito do que se escreveu, em termos de Literatura propriamente dita, no Brasil do século XIX, ambienta-se na Corte, ou seja, no Rio de Janeiro, que era a Capital do país naquela época. Poucas são as obras que têm as capitais das Províncias (os atuais Estados) como cenário, e menos ainda as que retratam, de algum modo, a vida no interior do Brasil. Dentre essas últimas, encontra-se Til, de José de Alencar.
Til, obra publicada em 1871, desenrola-se no ambiente rural das fazendas de cana-de-açúcar nos arredores de Santa Bárbara e Piracicaba, no interior de São Paulo, em meados do século XIX. Fica evidente ao leitor atento que Alencar não conhecia pessoalmente a região - chega, para dar uma "ancoragem histórico-geográfica", a citar, em rodapé, a Corografia Brasílica do Padre Ayres de Casal (que fora publicada em 1817). A despeito disso, a obra, que procura transcrever com fidelidade o falar típico da área, intercalando trechos descritivos em meio ao correr da narração, não chega a ter grandes disparidades em relação à realidade, exceto por questões que qualquer um que conheça o lugar pode facilmente observar. Mas vamos em frente, que não é a análise literária o objetivo desta postagem, nem pretendo tirar ao leitor que queira percorrer o romance todo a diversão de descobri-lo por si mesmo.
Já na última parte da obra, encontramos um episódio que transcorre durante uma festa popular em Piracicaba. Deixemos que Alencar mesmo nos conte:
"A cidade da Constituição, outrora vila da Piracicaba, assenta nas rampas de uma colina que se eleva à margem do rio.
[...]
Era domingo: e havia na vila rebuliço de festa.
Pelas ruas, de ordinário soturnas e ermas, passavam ranchos de gente a pé e grupos de cavaleiros que acudiam à função. Às vezes era algum carro de bois, coberto com esteiras e atopetado de moças, crias e mucamas, que atroava os ares com o chio estridente.
Pouco mais de nove horas havia de ser.
Uma canoa acabava de abicar à ribeira junto à ponte, e dela saltavam Nhá Tudinha, Berta e Miguel, que também vinham atraídos pela festa.
O rancho subiu a ladeira que vai ter ao largo da matriz. Miguel, triste e abatido, investigava com um olhar de desânimo as janelas das casas. Berta a furto observava-o com uma expressão de terno ressentimento."
De onde vinham Nhá Tudinha, Berta e Miguel? O romance tem a resposta, dessa vez na  segunda parte, ao descrever sua morada:
"Na entrada do vale, onde assenta a freguesia de Santa Bárbara, via-se outrora à margem do Piracicaba, escontra o rio, um velho casebre.
Era uma antiga construção de taipa; e mostrava com pouca diferença o aspecto comum às habitações medianas que, naquela parte da Província de São Paulo, se encontram de espaço em espaço pela beira do caminho, e à distância dos arraiais e povoados."
Agora, leitor, raciocine comigo: Nhá Tudinha, Berta e Miguel moravam próximo a Santa Bárbara e, segundo Alencar, vieram à festa usando uma canoa, que desceu o rio Piracicaba. Chegam à cidade, sobem a ladeira (a atual rua Moraes Barros) e vão sair na Praça da Matriz (Praça José Bonifácio), onde hoje está a Catedral de Santo Antônio. Parece tudo correto, e talvez Alencar tenha até consultado algum mapa, eventualmente disponível, para entremear adequadamente narração e descrição. Mas há um problema - não se pode fazer o trajeto, como descrito, de canoa. Por quê? Ora, porque seguindo o rio entre Santa Bárbara e o ponto referido da antiga Vila da Constituição está o Salto do Piracicaba, conhecido como "véu da noiva", que é absolutamente intransponível de canoa, a menos que o tripulante seja doido de pedra! Portanto, não se pode imaginar uma senhora e dois jovens comportados tentando tamanha insanidade. Se tem alguma dúvida, olhe as fotografias e julgue por si mesmo...
Resta ainda mais uma observação. Como já mencionei, José de Alencar cita, em uma nota, o Pe. Ayres de Casal, isso no início de Til. Pois deveria ter ficado atento ao que esse mesmo autor refere na Corografia Brasílica:
"Com o seu termo, ao Poente, confina o da nova Freguesia de Percicaba [sic], cuja Matriz está em uma amena planura, em que termina uma colina sobre a margem meridional do rio que lhe dá o nome; e junto a uma vistosa cascata de muitos degraus, que ele ali forma, onde finda a navegação."
Note bem, onde finda a navegação. Na prática, o Piracicaba é navegável antes do salto e depois dele. A propósito, ao que sabemos, Aires de Casal também nunca esteve em Piracicaba, e baseou a maior parte de sua obra em relatos que ouviu, antigos manuscritos e mapas, nem sempre precisos, que consultou.

Casa do Povoador, margem esquerda do Rio Piracicaba, logo abaixo do "véu da noiva".


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terça-feira, 22 de março de 2011

No mundo da Lua

Na noite do dia 19 de março quase todo mundo andou com o nariz espetado no céu, por conta do maior diâmetro aparente da Lua em dezoito anos. Até gente que nunca se interessa por fenômenos astronômicos tentou observar a Lua, ainda que só por curiosidade ou para não aparentar desinformação. Eu, como muitos outros, tive sérios problemas com as nuvens... Com isso, o melhor momento, quando nosso brilhante satélite "nasce", tornou-se inviável. Mais tarde, foi possível, e embora a parte mais interessante estivesse perdida, ainda assim foi um belo espetáculo.
Não há quem desconheça o fato de que, desde tempos remotos, os humanos olham o céu com admiração. Os incontáveis pontinhos luminosos avistados à noite, nos séculos em que a iluminação das cidades era inexistente, levaram a imaginação a voar, agrupando as estrelas em constelações. Hoje os nomes desses agrupamentos (Ursa, Cisne, Cruzeiro, Cão, Escorpião, Boieiro, Órion e por aí vai) parecem um pouco estranhos ao nosso universo habitual de símbolos, mas eram seguramente nomes muito evidentes para as pessoas e culturas de outras épocas.
Entretanto, leitor, nem sempre olhar e investigar o céu foi coisa tida como normal, honrosa e bem reputada. Já houve ocasiões em que, no mínimo, meter-se com assuntos celestes era, aos olhos das "pessoas normais", sinal claro de falta de juízo (sem falar nos distraídos, que viviam "no mundo da lua"), quando não se condenavam as pesquisas por, aparentemente, introduzirem heresias que ameaçavam perturbar a paz da cristandade. Ora, o curioso disso tudo é que tolices da astrologia que eram, então, consideradas parte da astronomia, não era questionadas, antes eram tidas como autêntica ciência, enquanto que investigações sérias que apontavam, por exemplo, a existência de irregularidades na superfície lunar, eram vistas como perigosas por questionarem a crença na "perfeição" dos corpos celestes. Se considerarmos os obstáculos que cérebros pensantes do passado como Copérnico, Kepler, G. Bruno ou Galileu  e muitos outros enfrentaram na busca por conhecimento autenticamente científico (como hoje o entendemos), chega a ser quase inacreditável que a humanidade tenha, finalmente, superado essa fase de obscurantismo que se afirmava em nome de crenças há muito estabelecidas mas, nem por isso, verdadeiras. Hoje bisbilhotamos o céu como queremos e chegamos a desenvolver o hábito de considerar certas liberdades de que desfrutamos como óbvias, mas é certo que nem sempre foram tão óbvias assim e, não o são ainda em muitos lugares, leitor - aqui da Terra mesmo, infelizmente, e não em algum outro planeta.


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domingo, 20 de março de 2011

Quem adivinha?

Tem ideia do que é e para que servia o objeto da foto abaixo, leitor?


Pois bem, trata-se de um tirador de amostras de café. Pertence ao acervo no Minimuseu do Café, no Vale do Ouro Verde, Serra Negra (SP). De acordo com o museu, esse objeto era utilizado quando, no momento da venda de uma safra de café, amostras do produto precisavam ser avaliadas.


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quinta-feira, 17 de março de 2011

Escravos que resistiam à escravidão - Parte 3

"Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate'.
Queste parole di colore oscuro
vid'io scritte al sommo d'una porta."
Dante Alighieri, La Divina Commedia


O Padre Andreoni (ou Antonil) não era, como já disse em outra postagem, contrário à escravidão. Nem por isso tinha os olhos fechados para as aberrações que se cometiam no tratamento dos cativos que trabalhavam nos engenhos de açúcar. Por essa razão, aconselhou aos senhores de engenho que porventura viessem a ter contato com sua obra (¹):
"E bem é, que saibam que isto lhes há de valer: porque de outra sorte, fugirão por uma vez para algum mocambo no mato; e se forem apanhados, poderá ser que se matem a si mesmos, antes que o senhor chegue a açoitá-los, ou que algum seu parente tome à sua conta a vingança, ou com feitiço, ou com veneno."
Valem aqui algumas observações:
1) O medo de uma vingança por parte dos escravos, em particular por envenenamento, era quase uma paranoia entre os membros da camada senhorial (sobre isso, veja minha postagem anterior, Escravos que Resistiam à Escravidão - Parte 2);
2) Antonil publicou seu livro em 1711. Mais tarde, já independente, o Império do Brasil incluiria o envenenamento em seu Código Criminal como agravante em um crime de assassinato ou tentativa de assassinato;
3) Para o africano escravizado, a possibilidade de retornar à África era praticamente nula, daí ser a fuga para o interior e a vida em algum quilombo talvez a única maneira de escapar à brutal exploração de sua força de trabalho;
4) Atentos ao risco que as fugas e a formação de quilombos representavam ao sistema, os senhores eram zelosos em empreender a captura e a punição exemplar dos fugitivos;
Escravos recebendo castigo público, segundo Rugendas (²)
5) Se capturado, um escravo fugitivo muitas vezes preferia morrer a enfrentar a tortura, o que, no final das contas, acabava sendo um dano ao "proprietário", já que o "investimento" feito na compra desse escravo perdia-se completamente - o escravo vingava-se, é verdade, mas ao custo da própria vida. Não creio, no entanto, que a maioria dos escravos que cometia suicídio o fizesse para, deliberadamente, vingar-se do "dono". Era a total desesperança que os levava por esse caminho. Não, leitor, Dante nunca conheceu um engenho de açúcar ou fazenda de café (viveu muito antes disso), mas penso que não teria dúvidas em identificar esses lugares!
As fugas persistiram durante toda a vigência do regime escravista e, em alguns lugares, chegaram a ser mais frequentes à medida que o sistema de trabalho compulsório ruía. O caso é que os suicídios de escravos também continuaram a ocorrer. Concluo mencionando este, ocorrido em Santa Catarina no ano de 1866:
"Em Santa Catarina um preto escravo suicidou-se singularmente. Encheu a boca de pólvora e fê-la incendiar-se. A explosão fez com que ficasse espalhada no pavimento toda a massa cerebral contida no crânio do infeliz." (³)

(1) ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas.
(2) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(3) Folhinha de Modinhas Para o Anno Bissexto de 1868. Rio de Janeiro: Antônio Gonçalves Guimarães e Comp., p 158.


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terça-feira, 15 de março de 2011

Escravos que resistiam à escravidão - Parte 2

Para um observador de hoje, que mira o passado como num telescópio invertido, pode parecer que os senhores de escravos eram criaturas todo-poderosas, que viviam na plena segurança de sua virtualmente ilimitada autoridade sobre todos os que habitavam à sua volta. Tratavam os escravos como bem entendiam. Sobre isso, em data próxima à da independência do Brasil, Saint-Hilaire escreveu:
"A dona da fazenda do Retiro encheu-me de finezas até o último momento. No entanto, esta mulher, que para comigo parecia tão boa e tão meiga, mal entrara em casa já eu a ouvia berrar, a mais não poder, e exaltar-se, com violência, contra seus escravos. Estas normas que parecem contraditórias não o são, realmente, aos olhos dos brasileiros.
Ficam os escravos a infinita distância dos homens livres, são burros de carga a quem se despreza, acerca de quem se crê só podem ser levados pela ignorância e pelas ameaças. Assim um brasileiro poderá ser caridosíssimo com um homem de sua raça e ter muito pouca pena de seus negros, a quem não considera seus semelhantes." (¹)
Em outra passagem, Saint Hilaire relata o encontro com eleitores que iam a São Paulo votar (para a escolha de um procurador), registrando um fato curiosíssimo quanto ao comportamento desses senhores:
"Alguns estavam acompanhados, como em Minas se faz, de pajens, negrinhos levando ao pescoço grande copo de prata, preso a comprida corrente. Destina-se a apanhar água nos riachos, sem que o cavaleiro se veja obrigado a descavalgar." (²)
No entanto, esse domínio extremo, essa aparente segurança tinham muito de ilusão. Se, por um lado, é verdade que os senhores, em algumas épocas e lugares, chegavam a exercer poderes absolutos (ordenando, por exemplo, a execução de uma nora ou até de um filho, sem que ninguém ousasse contestar a decisão), por outro havia sempre o medo de que os escravos se revoltassem, individual ou coletivamente. Havia sempre a lembrar Palmares, ou o Haiti, ou, depois de 1835, os malês da Bahia, ou mesmo alguma pequena rebelião local, que sempre parecia gigantesca por estar mais perto... E como poderia ser diferente? A habitual brutalidade com que eram tratados os cativos vinha sempre acompanhada do pavor de uma revanche - que às vezes acontecia, ainda que em pequena escala.
Sobre isso, selecionei três notas que apareceram na Folhinha de Modinhas para o Anno Bissexto de 1868 (³), nas quais são relatados os assassinatos de dois senhores e de um feitor, supostamente por escravos. Vamos a elas:

22 de junho de 1866
"Na manhã deste dia, em Alambari, indo o Sr. João Rodrigues para sua roça a fim de tocar a criação para fora, foi vítima de um bárbaro assassinato, que encheu de horror a localidade. Cravaram-lhe uma faca no estômago e depois amarraram-lhe um lenço no pescoço e arrastaram-no para o brejo, onde o enterraram ainda com vida. Aí ficou a vítima enterrada até o dia 24, às onze horas da manhã, quando o encontraram. Descobriu-se então o assassino, que é um escravo da vítima de nome Silvério, e que está preso. Recaindo suspeitas de cumplicidade sobre Generoso, parceiro do assassino, foi ele também recolhido à prisão."

17 de setembro de 1866
"Na Vila do Prata (Minas) um escravo de Agostinho Fagundes do Nascimento matou a este com 18 facadas. Fagundes era fazendeiro no distrito de Monte Alegre, e a causa do assassinato foi uma repreensão que a vítima dirigiu ao assassino."

14 de outubro de 1866
"Foi assassinado o feitor Manoel Duarte Simões na fazenda do comendador Venâncio José Gomes da Costa, na Sacra Família do Tinguá. Atribui-se o fato a escravos da fazenda."

Não é necessário dizer que os escravos que ousavam levantar-se contra seus senhores eram punidos dentro do rigor da lei, nem cabe aqui discutir, ao menos por hora,  a natureza de seus atos, apenas coloco em questão a ausência de equidade quando o acusado era um cativo - como bem lembrou José Bonifácio, os escravos estavam submetidos à legislação penal do Império, mas não sob a proteção da legislação civil, não se esperando que para eles houvesse um julgamento com amplo direito à defesa, como ocorria com os homens livres acusados de algum crime. Na dúvida quanto a quem cometera um delito, um escravo seria, quase sempre, apontado como o mais provável culpado. Se, em relação aos livres, a legislação entendia não ser criminoso aquele que cometia um crime "por medo irresistível", é bem pouco provável que tal benefício fosse aplicado em relação a um escravo.
Escravo sendo submetido a açoitamento público
(segundo Debret) (⁴)
Durante o Império, a pena máxima era a de morte, sempre por enforcamento e, ao que se sabe, a última vez que se aplicou essa penalidade no Brasil foi em 1876, em Pilar das Alagoas, ocasião em que foi executado um escravo de nome Francisco. Sentenças de morte posteriores foram comutadas por outras penas pelo Imperador, D. Pedro II. Além da pena de morte, O Código Criminal do Império estipulava como maiores penas a condenação às galés e a trabalhos forçados. No caso dos escravos, entretanto, o mesmo Código, na Parte 1, Título 1, Cap. 1, Art. 60, estipulava:
"Art. 60. Se o réu for escravo, e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado a açoites e, depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz designar."
Entenda-se: um homem livre podia ser condenado à prisão simples ou com trabalhos forçados (era  privado da liberdade e, sendo obrigado a trabalhar, punido temporariamente com a condição servil). Um escravo, não. Era submetido a degradante açoitamento público e depois devolvido a seu senhor, pois não devia ficar sem dar lucro a quem detinha sobre ele o direito de propriedade.

(1) SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Brasília: Senado Federal, 2002, pp. 59 e 60.
(2) SAINT-HILAIRE, A. Op. Cit., p. 106.
(3) Folhinha de Modinhas Para o Anno Bissexto de 1868. Rio de Janeiro, Antônio Gonçalves Guimarães e Comp.
(4) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil, vol 2. O original pertence à Brasiliana - USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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domingo, 13 de março de 2011

Escravos que resistiam à escravidão - Parte 1

Quer os governantes, os religiosos e os senhores de engenho quisessem ou não admitir, os escravos eram seres humanos. Como seres humanos, tinham sentimentos, tinham também um limite à capacidade de suportar maus-tratos, excesso de trabalho e humilhações. Como todos os seres humanos, havia também entre os escravos os mais corajosos, assim como os mais conformados. Por isso, a maneira como cada um reagia à escravidão era característica de sua individualidade, ainda que individualidade fosse algo a que os senhores, teimosamente, tivessem o indesejável costume de negar reconhecimento, quando se tratava de qualquer um que, de algum modo, estivesse subordinado a eles, o que valia não apenas para os trabalhadores compulsórios, mas estendia-se a trabalhadores assalariados, fornecedores de cana e membros da família.
Feitor castigando um escravo, segundo Debret (³)
A reação dos escravizados à sua condição era, por suposto, muito diversificada. Havia, por exemplo, escravas que procuravam abortar, se sabiam que haviam engravidado, para não trazer à existência novos escravos. Antonil (¹) escreveu, a esse respeito: "Pelo contrário, algumas escravas procuram de propósito aborto, só para que não cheguem os filhos de suas entranhas a padecer o que elas padecem."
É interessante notar que, na América Espanhola, há relatos de que o mesmo expediente era por vezes usado por mulheres indígenas reduzidas a alguma forma de trabalho compulsório, sendo também relativamente comum, entre elas, a abstinência sexual para evitar a procriação. Isso, leitor, pressupõe, em qualquer dos casos (Brasil ou América Espanhola), um alto grau de consciência entre os escravizados quando à injustiça de seu estado e um padrão de resistência difícil de compreender face à escala de degradação a que estavam submetidos. E, para que não fique dúvidas quanto ao que se passava no dia a dia de um engenho no Brasil, torno a citar Antonil, que, aliás, nem se posicionava exatamente contra a escravidão, mas que não hesitava em recriminar o tratamento brutal a que os escravos eram submetidos. Diz ele, ao referir-se aos limites que os senhores deveriam impor à ação dos feitores, até a bem de seu próprio "patrimônio":
"Aos feitores de nenhuma maneira se deve consentir o dar coices, principalmente nas barrigas das mulheres que andam pejadas (²), nem dar com pau nos escravos; porque na cólera não se medem os golpes e pode-se ferir mortalmente na cabeça a um escravo de muito préstimo, que vale muito dinheiro, e perdê-lo."
Não creio que Antonil fosse dar-se ao trabalho de condenar alguma coisa que nunca ocorresse. Ao contrário, é mais provável que isso fosse frequente nas áreas de cultura canavieira. Em outros lugares, as relações entre senhores e escravos podiam eventualmente ser diferentes, mas escravidão sempre é escravidão.
Paramos aqui, ao menos por hoje. Continuarei a tratar do assunto na próxima postagem.

(1) ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil Por Suas Drogas e Minas. Para saber mais sobre esse autor e obra, acesse: Antonil e a vida diária em um engenho de açúcar no Brasil Colonial.
(2) Isto é, grávidas.
(3) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique ao Brésil, vol 2. O original pertence à Brasiliana-USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 10 de março de 2011

Antonil e a vida diária em um engenho de açúcar no Brasil Colonial

Dentre as obras que nos oferecem uma visão do Brasil tal qual era nos primeiros séculos a partir da presença portuguesa destaca-se Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Curioso, pragmático, às vezes até divertido, esse livro, identificado em sua edição original de 1711 como sendo da autoria de André João Antonil, foi, muito provavelmente, obra do jesuíta italiano Giovanni Antonio Andreoni, que desde logo percebeu a conveniência de um pseudônimo. Dentre outras singularidades, a obra é dedicada ao projeto de beatificação do Padre José de Anchieta, coisa que somente viria a ser realidade no século XX, mais precisamente em 1980.
Ora, que problema poderia haver em uma obra que se propunha a descrever o Brasil do início do século XVIII? Sim, havia um grande problema, ao menos sob o ponto de vista da Coroa lusitana, já que Antonil (ou Andreoni) pinta um quadro sobremodo vívido do país, detalhando as práticas agrícolas e métodos de cultivo, além da riqueza da mineração, o que poderia chamar a atenção de outras potências cobiçosas da Colônia. O simples fato de que um jesuíta italiano andasse a proclamar tais coisas para quem quisesse ler já era encarado com suspeição. Por isso, a despeito de ter o Autor obtido inicialmente todas as permissões para impressão e circulação, tanto da parte do Santo Ofício quanto do Paço, o livro acabou não apenas proibido, como também procurou-se destruir dele tantos exemplares quanto fosse possível.
Pois bem, leitor, nenhuma censura é para sempre e, com a inevitável sobrevivência de alguns exemplares e posteriores reedições, aqui vamos nós saborear um trechinho da obra, que talvez dê a quem lê a parte o desejo de conhecer o todo. Estando Antonil/Andreoni a tecer considerações quanto aos cuidados que um senhor de engenho deveria ter na aquisição e conservação de suas terras, indica o zelo indispensável que deveria mostrar ao tratar da preservação dos documentos que atestassem a legitimidade da posse. Escreve:
"Nem deixe os papéis e as escrituras que tem na caixa da mulher, ou sobre uma mesa expostas ao pó, ao vento, à traça e ao cupim; para que depois não seja necessário mandar dizer muitas Missas a Santo Antônio para achar algum papel importante que desapareceu, quando houver mister exibi-lo."
Já temos aqui uma coleção de informações sobre os hábitos domésticos nas casas-grandes dos poderosos senhores de engenho do período colonial:
- Era costume guardar papéis na "caixa da mulher", por certo um baú onde os pertences de algum valor podiam ser conservados - se não fosse assim, Antonil/Andreoni não precisaria advertir a que não se procedesse por tal modo;
- Além disso, como parece óbvio, traças e cupins eram comuns o bastante para constituírem uma ameaça real à conservação de documentos (continuam a ser, infelizmente);
- Em terceiro lugar, somos informados de que, na hipótese do sumiço de alguma coisa, o "santo da vez" era Santo Antônio, já sobrecarregado, como se sabe, com suas obrigações casamenteiras.
Mas Antonil/Andreoni não interrompe nesse ponto suas instruções, antes segue explicando as razões para tantos cuidados com a papelada. Veja:
"Porque lhe acontecerá que a criada ou serva tire duas ou três folhas da caixa da senhora para embrulhar com elas o que mais lhe agradar; e o filho mais pequeno tirará também algumas da mesa para pintar caretas, ou para fazer barquinhos de papel em que naveguem moscas e grilos; ou finalmente o vento fará que voem fora da casa sem penas."
Bravo, Andreoni, que nos legou preciosas informações. Primeiro,a caixa da senhora não era lá um lugar tão seguro, se a criada tinha acesso a ela e podia tirar o que bem entendesse; depois, e mais interessante ainda, nos fornece um lampejo das ocupações infantis em tempos tão distantes, ou seja, "pintar caretas ou fazer barquinhos de papel". Sim, como a maioria dos meninos de hoje, mas com um delicioso particular, "barquinhos de papel em que naveguem moscas e grilos". É sempre válido recordar que, nesses tempos, papel era um artigo caro e não muito fácil de ser obtido por quem vivia na Colônia. No fim de tudo, esse "livro proibido" tem o encanto de nos levar para perto de um universo já longínquo cronologicamente além, é claro, de lembrar aos desorganizados de hoje que, como sempre, é necessário ter cuidado na conservação de documentos, para não se ter, depois, que recorrer a Santo Antônio...


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terça-feira, 8 de março de 2011

Carnaval popular: Os "Bonecões da Barra" da cidade de Salto

As simpáticas criaturas da foto abaixo são os "Bonecões da Barra", que desde a década de 1960 figuram no Carnaval de rua da cidade de Salto, interior do Estado de São Paulo.


De acordo com informações do Museu da Cidade de Salto (a cuja administração agradeço a gentileza da permissão para fotografias de seu ótimo acervo), a ideia original dos bonecos foi de Álvaro Ribeiro, morador da Vila da Barra, daí o nome atribuído aos bonecos.


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sábado, 5 de março de 2011

Novidades carnavalescas de outros carnavais

Dizem que, no Brasil, o ano só começa de verdade depois do Carnaval. Discordo. Quase todo mundo está trabalhando duro, como sempre, e há muita gente que nem gosta de Carnaval ou, ao menos, não se envolve muito com ele. Mas, para efeitos turísticos, procura-se vender a ideia de que vivemos num eterno Carnaval. Tolice, claro.
Vamos ao assunto de hoje, as novidades carnavalescas, mas novidades de outros Carnavais, ou melhor, do Carnaval de 1904.
Em janeiro de 1904 a revista Echo Phonographico trouxe o seguinte anúncio:


Eis os produtos anunciados:

"Bonés e Gorros Carnavalescos - Feitos de papel de diversas cores, abrem-se e fecham-se automaticamente, servindo para qualquer cabeça."

"Para amigos de bom humor CAIXA DE FÓSFOROS SURPRESA - São confetes! Para reuniões familiares, bailes etc. Com um pacote de confetes que acompanha cada caixa pode-se repetir muitas vezes a brincadeira."

"Narigões carnavalescos
1º Tipo: Nariz aperfeiçoado, grande, com óculos e bigodes e tendo uma grande mosca que se move por meio de um fio.
2º Tipo: Outro nariz pequeno, tendo a vantagem de crescer à vontade com o sopro. A parte que cresce é feita de papel de seda encerado, provocando o riso quando se usa."

Finalmente, leitor, o último artigo de Carnaval anunciado, ANEL SURPRESA ou Lança-Perfume. Não, não é, felizmente,  o que você pensou. Veja a descrição:

"Anel de metal oco, tendo um pequeno orifício por onde sai água ou perfume; na palma da mão está o depósito, feito de borracha; quando se fecha a mão a água sai, causando grande admiração."

E a propaganda do inocente brinquedinho conclui: "Atira a grande distância".


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quinta-feira, 3 de março de 2011

A escola pública primária dentro do ideal republicano - Parte 2

No Estado de São Paulo a Revista Escolar foi instrumento de divulgação do ideal republicano de educação. O trecho abaixo que apareceu no nº 24, de dezembro de 1926, sendo tradução do original francês de autoria de Isidore Poiry, nos fornece uma noção clara do pensamento que norteava a publicação:
"Urge preparar a mocidade para a ação democrática, para a colaboração inteligente de cada cidadão e, por isso, dar à escola a imagem REPUBLICANA, que é a mais ampla expressão das liberdades públicas que tanto têm custado a realizar-se através dos séculos. A criança, na escola, é o cidadão duma república escolar onde ele goza de seus direitos e cumpre seus deveres com iniciativa e consciência.
A escola deve preparar o aluno numa atmosfera de liberdade, como membro útil, ativo e eficaz da sociedade em que ele vive.
A criança deve agir e habituar-se a ter personalidade própria. A democracia só é bela quando representa uma cooperação de vontades esclarecidas e livres, e a solidariedade só é boa e efetiva quando traduz a colaboração das inteligências e das energias individuais para fins desejados em comum e dignos dos esforços de todos.
É, portanto, indispensável que a escola constitua por si mesma uma reprodução em miniatura do mundo social. [...]." (¹)
Bem antes, no entanto, que essa edição da Revista Escolar fosse entregue aos leitores, já se procurava incutir na cabeça dos alunos que frequentavam as escolas públicas o ideário considerado desejável para o exercício da cidadania. Uma prova disso é o regimento dos grupos escolares que vigorava nos primeiros anos do século XX e era distribuído aos alunos no início de cada ano letivo. Veja, leitor, como isso era ensinado através de doze regras que deveriam conduzir a vida escolar:
"1. A ESCOLA é uma grande família. Aí deve existir, para o bem estar de todos, a cordialidade e o respeito mútuo, que ligam os membros de uma mesma família.
2. OS ALUNOS maiores prestarão auxílio aos menores, tratando-os e guiando-os com o carinho de irmãos mais velhos. Devem ser o espelho da classe. Deles partirá o exemplo da amabilidade no trato, no respeito afetuoso para com os professores, das atenções para com todos, da assiduidade, da pontualidade no cumprimento do DEVER, da DECÊNCIA na linguagem e no trajar.
3. TODOS devem estar contentes na escola. É preciso que os recém-vindos não permaneçam isolados no meio de seus novos amigos e colegas. Os mais antigos na sala devem recebê-los bondosamente, pondo todo o seu cuidado em os familiarizar com os hábitos da escola.
4. A ESCOLA não tem somente por fim desenvolver a inteligência dos alunos, mas também lhes formar o caráter e educar a consciência. Uma lealdade absoluta deve regular o trabalho e a convivência dos alunos.
5. Os alunos podem gozar de grande liberdade dentro e fora da classe. Isto será bem fácil se cada um souber, no momento preciso, respeitar o silêncio e a tranquilidade que a boa marcha do trabalho pede e a própria CORTESIA ordena, quando os mestres estão a explicar ou a classe é visitada.
6. PENAS, ainda mesmo simples ADMOESTAÇÕES, devem e podem ser evitadas. Para isto é apenas preciso que OBEDECER cada um saiba, cumprindo imediata e fielmente as ORDENS recebidas.
7. MODEREM os alunos sua vivacidade nos brinquedos, para evitarem os perigos e ACIDENTES.
8. A RUA é o lugar onde mostramos melhor a educação que recebemos. Se em nossa casa particular somos corteses e COMEDIDOS nas maneiras, não danificando os objetos que a guarnecem, nem riscando suas paredes, mais o devemos ser na rua que é a casa de todos e onde tudo - pessoas e coisas - devem merecer nosso maior respeito.
9. "FAÇA O FAVOR" e 'MUITO AGRADECIDO" são expressões que se empregam a cada passo. Nada custa menos que a delicadeza.
10. UM BOM CORAÇÃO é um jardim, onde as raízes são os bons PENSAMENTOS; as flores, as boas PALAVRAS; os frutos, as boas AÇÕES.
11. É DO INTERESSE DE TODOS que o mobiliário e material escolar se conservem no melhor estado possível. Se um aluno manchar ou estragar um objeto qualquer, deve ele próprio comunicar imediatamente o fato ao professor.
12. A MAIS BELA DAS CORAGENS é aquela com que se diz a VERDADE. Sem a coragem não pode existir a VERDADE; sem a verdade, nenhuma outra VIRTUDE." (²)
Nesse caso específico, o regulamento foi entregue no Grupo Escolar de São Pedro. O Diretor do estabelecimento de ensino assinou e datou: 10 de janeiro de 1911.
Já lá se vão cem anos...

(1) REVISTA ESCOLAR - Órgão da Diretoria Geral da Instrução Pública, Ano II, nº 24, p. 3.
(2) Meus agradecimentos à administração do Museu Gustavo Teixeira, de São Pedro (SP), por permitir fotografias.

 
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terça-feira, 1 de março de 2011

A escola pública primária dentro do ideal republicano - Parte 1

Dentro do conjunto de ideias do que poderíamos chamar "ideal republicano" que, no Brasil, passou a ser visão política oficial a partir de novembro de 1889, encontra-se o pensamento de que a escola não poderia estar restrita à atribuição de apenas transmitir alguns conhecimentos (como leitura, escrita e noções de aritmética), mas deveria ser o instrumento para a propagação dos valores cívicos, ou seja, deveria ser um centro de formação de seres humanos para o pleno exercício da cidadania, dentro do novo regime que se instaurara.
Nesse sentido, as primeiras décadas da República viram propagar-se os "Grupos Escolares", ao menos nas regiões mais desenvolvidas economicamente, nos quais, ainda que em tese, a vida diária deveria marchar de modo a reproduzir a vivência em sociedade em sua forma mais ampla. Procurava-se, através de músicas apropriadas, incutir valores como patriotismo e laboriosidade (a prática ganharia forte impulso durante a Era Vargas), além de dar importância à realização de trabalhos manuais como instrumento de formação do caráter, tornando claro ao educando que trabalhar era indispensável à dignidade humana e não alguma coisa que deveria ser evitada a todo custo.
A proposta - malgrado um certo direcionamento ideológico, até excessivo, às vezes - parecia interessante em um país que há pouco saíra da escravidão (daí a importância da valorização do trabalho manual), que precisava preocupar-se em alfabetizar a imensa maioria da população para então torná-la cidadã e que, além disso, tinha de enfrentar a questão de como amalgamar a multidão de imigrantes que não parava de chegar, de modo a formar um todo coeso a que se pudesse chamar de sociedade brasileira.
Belíssimo ideal, que continua ou, ao menos, deveria continuar, mutatis mutandis,  a ser perseguido ainda hoje. Se é verdade que estamos já longe, cronologicamente, da escravidão, também o é que necessitamos mais do que nunca mostrar às jovens gerações a importância da excelência profissional; se o analfabetismo reduziu-se consideravelmente e o acesso ao ensino básico tornou-se universal, ainda é preciso avançar em compelir os pais a manterem seus filhos na escola, sejam quais forem as circunstâncias e, finalmente, embora o movimento migratório não tenha cessado (mudou somente a origem e a intensidade), a busca de uma sociedade efetivamente coesa no que se refere aos interesses nacionais continua a ser um desafio.