sexta-feira, 29 de abril de 2016

Crianças indígenas (na visão dos colonizadores)

Colonização e catequese trouxeram mudanças significativas ao modo como viviam os povos indígenas da América. Estrutura familiar, práticas de sociabilidade e valores foram afetados, de modo que, em não poucos casos, fica difícil saber quais eram os costumes originais, até porque quase tudo o que conhecemos sobre os ameríndios, com os quais europeus travaram contato desde fins do Século XV e ao longo do Século XVI, vem de relatos dos próprios colonizadores, que expunham em seus escritos o modo como interpretavam o que viam, e não necessariamente aquilo que, de fato, acontecia.
A mais antiga referência conhecida a uma criança nativa do Brasil está na Carta do "Achamento", escrita por Pero Vaz de Caminha, que, como se sabe, integrava a expedição comandada por Pedro Álvares Cabral, expedição essa que, ao menos oficialmente, era destinada às Índias, onde se esperava que estabelecesse vínculos comerciais mais fortes que os alcançados pela esquadra de Vasco da Gama. Após pisar em terra e travar contato com indígenas, Caminha observou: "Também andava lá outra mulher, nova, com um menino ou menina atado com um pano aos peitos, de modo que não se lhe viam senão as perninhas. Mas nas pernas da mãe, e no resto, não havia pano algum."
Embora a imagem seja de quase cento e cinquenta anos após o Descobrimento, o que Caminha deve ter visto seria mais ou menos o que encontramos na Figura 1, que aparece em Historia naturalis Brasiliae, publicada na Holanda em 1648 (¹); uma imagem alternativa, na qual o bebê indígena é mostrado dentro de um cesto, pode ser encontrada em Gedenkweerdige Brasiliaense Zee- en Lant-Reise und Zee- en Lant-Reize door verscheide Gewesten van Oostindien, de Nieuhof, publicação também holandesa, datada de 1682 (²), conforme a Figura 2:


Como já disse, não podemos ter certeza absoluta de que tudo o que diziam os colonizadores e missionários estava correto, mas, se dermos crédito ao que escreveram ao longo do Século XVI, os meninos e meninas indígenas deviam ser muito mais felizes que as crianças europeias da mesma idade, submetidas, tradicionalmente, a uma educação severa, tanto por parte dos pais quanto dos professores. Segundo Gabriel Soares, os tupinambás eram bastante gentis no trato com seus filhos:
"Não dão os tupinambás a seus filhos nenhum castigo, nem os doutrinam, nem os repreendem por coisa que façam; aos machos ensinam-nos a atirar com arcos e flechas ao alvo, e depois aos pássaros, e trazem-nos sempre às costas até a idade de sete e oito anos, e o mesmo às fêmeas; e uns e outros mamam na mãe até que torna a parir outra vez, pelo que mamam muitas vezes seis e sete anos; às fêmeas ensinam as mães a enfeitar-se, como fazem as portuguesas, e a fiar algodão, e a fazer o mais serviço de suas casas conforme é seu costume." (³)
Sem ilusões, leitores: a educação, salvo raríssimas exceções, tende a reproduzir na geração mais jovem aquilo que a geração adulta considera certo ou errado. Qualquer coisa fora disso escaparia, com absoluta certeza, à regra que encontramos, sob inúmeras versões, por todo este planeta. Mas vamos adiante, com as impressões do missionário jesuíta Fernão Cardim, contemporâneo de Gabriel Soares:
"Os pais [indígenas] não têm coisa que mais amem que os filhos [...]; nenhum gênero de castigo têm para os filhos, nem há pai nem mãe que em toda a vida castigue nem toque em filho [...]; em pequenos são obedientíssimos a seus pais e mães, e todos muito amáveis e aprazíveis: têm muitos jogos a seu modo, que fazem com muito mais festa e alegria que os meninos portugueses; nestes jogos arremedam vários pássaros, cobras e outros animais, etc.; os jogos são mui graciosos e desenfadiços, nem há entre eles desavença, nem queixumes, pelejas, nem se ouvem pulhas ou nomes ruins e desonestos [...]." (⁴) Sim, leitores, caberiam aqui uns quantos pontos de exclamação!!!
Não há como saber se tudo era assim, ou se Soares e Cardim exageravam. Cabe muito bem a observação, todavia, de que, como jesuíta que era, Fernão Cardim estava habituado a viver entre os índios, e devia saber do que falava. Assumindo, portanto, em linhas gerais, a veracidade de seu relato, teríamos um bom motivo para concordar com os que diziam que na América estava o verdadeiro paraíso terrestre - não em todos os aspectos, claro, mas quanto ao comportamento das crianças.

(1) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648, p. 270.
(2) NIEUHOF, Johan. Gedenkweerdige Brasiliaense Zee- en Lant-Reise und Zee- en Lant-Reize door verscheide Gewesten van Oostindien. Amsterdam: de Weduwe van Jacob van Meurs, 1682, p. 224.
(3) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 314.
(4) CARDIM, Pe. Fernão, S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, pp. 40 e 41.


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quarta-feira, 27 de abril de 2016

Bartolomeu Lourenço queria voar

Gusmão achou, em pleno século XVIII, que poderia voar. Viu vantagens estratégicas nisso: a falta de informações, causa de muitas derrotas em campos de batalha, já não seria um problema, se um balão de ar quente fosse aos ares e voltasse com rapidez. Mas esbarrou na incredulidade de seu tempo quanto à invenção e, como é óbvio, na falta de condições tecnológicas para implementá-la. Não foi o único. Entre os Séculos XV e XVI, Da Vinci planejou máquinas voadoras que tiveram que aguardar até o século XX para saltar dos projetos à realidade.
Nascido em Santos em 1685, Bartolomeu Lourenço de Gusmão é celebrado pela invenção do aeróstato, mas esse não foi seu único invento, ainda que seja o mais famoso. A "passarola", em si, não passou de fantasia, já que vários de seus projetos "de verdade" estavam relacionados à construção de balões que, com a adaptação de algum método de aquecimento do ar, eram capazes de elevar-se do solo. 
 A maior parte de sua carreira de peripécias transcorreu em solo europeu, onde acabou morrendo quando não tinha ainda quarenta anos. Foi, mesmo em vida, reconhecido com um gênio, mas, justamente por isso, teve de enfrentar uma quota generosa de problemas, sendo quase desnecessário explicar que um indivíduo que pretendia "contrariar a natureza", inventando alguma coisa que chegasse a colocar humanos em voo, andava sempre sob a vigilância da Inquisição - que novidade!...
A Nobiliarchia Paulistana faz, de passagem, referência a Gusmão, nestes termos, ao tratar da genealogia de sua mãe, Dona Maria Alves: "[...] o afamado padre Dr. Bartolomeu Lourenço, por alcunha o voador..."
"Padre voador". Sem dúvida, caiu-lhe bem o apelido.


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segunda-feira, 25 de abril de 2016

A catequese dos povos indígenas como pretexto para a conquista da América

A conquista da América foi efetuada sob o pretexto de que os ameríndios seriam doutrinados na fé cristã. Pois bem, é relato de Frei Bartolomé de Las Casas, dominicano que consagrou a vida a defender os índios, que um chefe indígena, percebendo os intentos dos conquistadores espanhóis, fugiu da ilha chamada La Espanhola para Cuba. O infeliz, depois de muitas peripécias, acabou caindo prisioneiro e, para puni-lo pelo atrevimento de ter fugido, condenaram-no a ser queimado vivo (¹). Deste ponto seguimos com a narrativa de Las Casas (²):
"Atado ao poste [em que seria queimado], lhe dizia um religioso de São Francisco, um homem santo que ali estava, algumas coisas de Deus e de nossa fé, as quais ele jamais ouvira, e que lhe poderiam bastar naquele pouquinho de tempo que os verdugos lhe davam: se queria crer naquilo que lhe dizia, que iria ao céu, onde havia glória e descanso eterno; e se não cria, haveria de ir ao inferno e padecer perpétuos tormentos e penas. Ele, pensando um pouco, perguntou ao religioso se os cristãos iam ao céu. O religioso respondeu que sim, mas que só iam os que eram bons. Disse logo o cacique sem mais pensar, que não queria ir para lá, mas preferia o inferno, para não estar onde estivessem e para não ver gente tão cruel. Esta é a fama e honra que Deus e nossa fé ganharam com os cristãos que têm ido às Índias (³)." (⁴)
A história é tão louca que chega a parecer alucinação. Os conquistadores vão à América, querem riqueza fácil, encontram-na; mas arrancá-la às civilizações que já estão no Continente parece requerer uma justificativa moralmente válida, daí o argumento de que a conquista tinha por grande objetivo a conversão dos povos ameríndios. Estes, por sua vez, resistem aos invasores, em defesa de suas terras, de suas famílias e de si mesmos. Os esfaimados por ouro têm aí o pretexto que buscavam. Em poucas décadas, civilizações notáveis são quase riscadas da existência. O ouro flui para a Europa, tem lugar uma inflação sem precedentes (a "Revolução dos Preços"), gente obscura faz fortuna da noite para o dia, os monarcas sorriem com o Tesouro abarrotado. Tudo isso, diz-se, é pela salvação da alma dos indígenas! Não era sem motivo que Las Casas, quando se referia aos conquistadores espanhóis, fazia questão de, por ironia, chamá-los "cristãos". Sim, que grande obra de catequese faziam eles!...

(1) Vê-se que, pelas alturas do Século XVI, essa prática abominável andava na moda em ambos dos lados do Atlântico; o próprio Las Casas parecia simpático à ideia de que os conquistadores assassinos fossem também queimados
(2) A Brevísima Relación de la Destrucción de las Índias foi publicada pela primeira vez na Espanha em 1552; a citação da obra de Bartolomé de Las Casas é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Por "Índias" deve-se entender o Continente Americano.
(4) LAS CASAS, Bartolomé de. Brevísima Relación de la Destrucción de las Índias. Philadelphia: Juan F. Hurtel, 1821, pp. 35 e 35.


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sexta-feira, 22 de abril de 2016

Novelos de algodão em lugar de moedas

Retratadas por Debret, algumas moedas
que circularam no Brasil, do Período Colonial
ao início do Império (¹)
A coisa pode até parecer contraditória, mas é fato que colonizadores que vinham ao Brasil pretendiam enriquecer na terra. Na terra, porém, quase não havia dinheiro circulando.
Uma das razões que faziam com que colonizadores da Capitania de São Vicente fossem fascinados pela nomeação para um cargo público é que o salário era pago em dinheiro, moeda viva e contada do Reino. A administração do cofre pertencente ao Juizado de Órfãos era, por razão semelhante, objeto da cobiça nas povoações coloniais.
O governo português não conseguia sanar o problema da escassez de dinheiro; medidas que alteravam o valor nominal das moedas existentes acirravam os ânimos dos colonos e fermentavam rebeliões. 
O próprio governo colonial tinha dificuldade em fazer pagamentos em dinheiro. Em 1576, ao autorizar a fundação de um Colégio Jesuíta em Olinda, El-Rei determinou que fosse paga, para sustento dos padres, a quantia anual de quatrocentos mil réis. Logo, porém, a dotação sofreu mudança:
"Faz El-Rei nosso senhor esmola ao colégio de Nossa Senhora da Graça, da Companhia de Jesus, da vila de Olinda, de oitocentas arrobas de açúcar branco e cem arrobas de açúcar de somenos, e não há de haver mais os quatrocentos mil réis conteúdos neste Regimento, como mais largamente é declarado na Carta de Doação [...]." (²)
O que se vê é que a própria administração colonial recebia em espécie os impostos pagos pelos proprietários de engenhos de açúcar, daí porque repassava a "esmola" de El-Rei aos jesuítas também em espécie, e não em dinheiro amoedado. Aos jesuítas competia, pois, negociar o açúcar recebido como mais conviesse, para assegurar a manutenção dos religiosos que administravam o Colégio de Olinda. 
Na rotina diária, o que acontecia entre a população é que, pela falta de moeda corrente, as trocas eram feitas em mercadorias, e, dentre elas, alguma acabava "eleita", temporariamente, como tosco equivalente universal, sendo o açúcar um dos exemplos mais comuns em todo o Brasil. Um caso bastante curioso parece ter ocorrido no Pará, segundo relatou o cônego Francisco Bernardino de Sousa em suas Lembranças e Curiosidades do Vale do Amazonas, afirmando que só em 1749 as moedas oficiais começaram a circular em Belém: "Até então o dinheiro que havia em circulação era novelos de algodão e outros gêneros, que tinham valores determinados." (³)

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Cf. MORAES, Alexandre José de Mello. Crônica Geral do Brasil vol. 1. Rio de Janeiro: Garnier, 1886, p. 100.
(3) SOUSA, Francisco Bernardino de. Lembranças e Curiosidades do Vale do Amazonas. Belém do Pará: Typ. do Futuro, 1873, p. 53.


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quarta-feira, 20 de abril de 2016

Breves considerações sobre a sentença que condenou Tiradentes

Tiradentes foi condenado a morrer por enforcamento; a sentença foi executada em 21 de abril de 1792. Aquele era um tempo de grandes agitações político-ideológicas, em virtude da difusão das ideias do Iluminismo e de sua aplicação prática um tanto desastrosa (ao menos para monarcas e monarquistas) na França da Revolução. Horrorizados com as notícias que chegavam de Paris, governantes absolutos de outros países faziam aplicar com absoluta severidade a legislação pertinente aos chamados crimes de lesa-majestade. Isso explica, ao menos em parte, a repressão aparentemente exagerada à Inconfidência Mineira, um movimento (movimento?) de proporções reduzidas, mais teórico do que prático e que tinha pouca perspectiva de sucesso.
Na sentença que condenou Tiradentes há, para o leitor do Século XXI, alguns elementos que podem soar estranhos. Dizia ela: 
"[...] Condenam o réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, alferes que foi do Regimento pago da Capitania de Minas, a que, com baraço e pregão, seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca, e nela morra morte natural para sempre [...]."
Que história é essa de "morte natural para sempre"? Haveria alguma sentença de morte apenas temporária ou parcial? E como pode ser natural uma morte por enforcamento?
Para entender melhor o que dizia a sentença é preciso verificar o Livro Quinto das Ordenações do Reino, uma compilação das leis que regiam Portugal e, quando aplicáveis, também vigoravam no Brasil (¹). O Título CXXVI, § 7, informava: "[...] Se a condenação for de morte natural, sejam logo enforcados, ou degolados, segundo na sentença for conteúdo." Os leitores já sabem, então, o que é que se considerava "morte natural", para efeitos da execução de um condenado.
Outro ponto interessante na sentença do alferes Tiradentes era aquele que, sendo ele declarado infame, fazia a penalidade extensiva a seus descendentes até a terceira geração: "[...] declaram o réu infame, e seus filhos e netos, tendo-os [...]."
Para quem vive em uma democracia ocidental da atualidade, a ideia de sentenciar os descendentes pelo crime de um ancestral parece um grande absurdo. Mas não era assim que pensavam os legisladores de outros tempos. Voltando ao Livro Quinto das Ordenações, vamos encontrar uma justificativa para a sentença que incluía filhos e netos, ainda que eles não estivessem envolvidos na prática do crime de lesa-majestade:
"Lesa-majestade quer dizer traição cometida contra a pessoa do Rei ou seu Real Estado, que é tão grave e abominável crime, e que os antigos sabedores tanto estranhavam, que o comparavam à lepra; porque assim como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar, e empece ainda aos descendentes de quem a tem e aos que com ele conversam (²), pelo que é apartado da comunicação da gente, assim o erro de traição condena o que a comete, e empece e infama os que de sua linha descendem, posto que não tenham culpa." (³)
Não será o caso de perguntar se a explicação foi convincente; vamos apenas saber o que é que, na prática, significava ser infame a descendência: 
"[...] Os filhos são exclusos da herança do pai, se forem varões, ficarão infamados para sempre, de maneira que nunca possam haver honra de cavalaria, nem de outra dignidade, nem ofício (⁴), nem poderão herdar a parente, a estranho abintestado, nem por testamento, em que fiquem herdeiros, nem poderão haver coisa alguma que lhes seja dada ou deixada, assim entre vivos como em última vontade [...]. E esta pena haverão pela maldade que seu pai cometeu, e o mesmo será nos netos somente, cujo avô cometeu o dito crime." (⁵)
Vejam, portanto, leitores, que, malgrado ser Tiradentes, no Brasil, considerado um herói da Independência, a sentença que o condenou estava prevista nas leis que vigoravam em fins do Século XVIII. É fato, no entanto, que as leis também envelhecem e, uma vez ou outra, precisam de ajustes ou mesmo de uma reconstrução completa, mas ninguém deveria esperar tal coisa em 1792, quando os monarcas europeus (não era exclusividade de Portugal), percebiam que trono e coroa corriam perigo. Estranho, mesmo, é admitir que as penalidades estipuladas nas Ordenações do Reino eram até moderadas, se as compararmos com as que são ainda aplicadas em alguns compartimentos obscuros deste planeta, nos quais a luz do sol (em sentido figurado, claro), não entra há muito tempo.

(1) A primeira publicação das Ordenações traz a data de 1603, mas sendo elas uma compilação, já existiam, em sua maioria, muito antes disso. Para esta postagem foi consultada a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Os leitores devem entender essas declarações à luz do conhecimento médico disponível à época em que as Ordenações foram publicadas.
(3) Livro Quinto, Capítulo VI.
(4) Eram julgados indignos do exercício de qualquer emprego público.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Os sapatos de couro usados pelos colonizadores do Brasil

Sapatos, armas defensivas e móveis eram feitos com o couro de animais de caça e de criação


Os primeiros colonizadores que vieram ao Brasil precisaram ativar o senso de criatividade. Por quê? Ora, simplesmente por uma razão de sobrevivência. Era necessário encontrar nas terras da América diversos materiais que pudessem substituir coisas a cujo uso estavam acostumados. É verdade que, tanto quanto possível, traziam do Reino objetos que acreditavam imprescindíveis. Além disso, sempre que tinham bom relacionamento com indígenas, aprendiam com eles algumas técnicas que se provavam utilíssimas. Mas, em muitos casos, só a experiência, obtida no contato diário com a nova terra em que tinham de viver, é que permitiu descobrir modos de uso para aquilo que estava à mão. Afinal, para quem tivera a coragem de atravessar o Atlântico, fosse pela perspectiva de enriquecimento, pela sede de aventura ou por idealismo missionário (¹), não fazia o menor sentido ficar choramingando pela falta de confortos que haviam ficado para trás.
Assim foi, por exemplo, em relação aos sapatos. Quando os calçados trazidos do Reino se gastavam, era difícil conseguir outros semelhantes. Ao menos no princípio da colonização os navios procedentes de Portugal a cada ano eram poucos, e, mesmo mais tarde, quando o comércio de açúcar se intensificou, os calçados "do Reino" eram caros, já que não vinham em grandes quantidades - todo mundo sabe o que é que acontece quando há demanda maior que a oferta de uma dada mercadoria. A solução era, por tentativa e erro, experimentar o que havia na terra e que podia garantir a obtenção de couros apropriados para o trabalho dos sapateiros (²). Ainda no Século XVI, Gabriel Soares explicou que couros de veado eram excelentes para botas:
"Criam-se nos matos desta Bahia muitos veados, a que os índios chamam suaçu, que são ruivos e tamanhos como cabras, os quais não têm cornos nem sebo, como os de Espanha. Correm muito, as fêmeas parem só uma criança. Tomam-nos em armadilhas e com cães; cuja carne é sobre o duro, mas saborosa; as peles são muito boas para botas, as quais se curtem com casca de mangues, e fazem-se mais brandas que as dos veados de Espanha." (³) 
Mesmo citando o fato para ilustrar o pouco caso que o jesuíta Belchior de Pontes (1644 - 1719) fazia dos luxos geralmente apreciados em seu tempo, o também jesuíta Manuel da Fonseca escreveu, em relação aos sapatos usados por seu biografado:
"Os seus pés, ou nunca, ou raras vezes calçavam sapatos de cordovão, contentando-se com uns de veado tão mal alinhados, que os conservava com a mesma cor, com que tinham saído do curtume." (⁴)
De couro de anta os colonizadores aprenderam, com os indígenas, que era possível fazer armas defensivas, segundo explicou José de Anchieta, em carta escrita em São Vicente e datada de 31 de maio de 1560, cujo destinatário era o padre geral dos jesuítas, Diego Laynez:
"Do seu couro [de anta], endurecido apenas pelo sol, os índios fabricam broquéis completamente impenetráveis às flechas." (⁵)
O elemento perverso nessa ideia de usar couro de anta é que, não demorou muito, e os paulistas, que iam ao sertão com o objetivo de capturar índios para escravização, estavam fazendo uso dos ditos objetos contra as flechas que, numa tentativa desesperada de escape, os nativos na América atiravam contra eles. 
Finalmente, para não ficarmos restritos à questão do uso de couros de animais nativos da América, basta citar que Rocha Pita, em sua famosa (ainda que muito questionada), História da América Portuguesa, cuja primeira edição data de 1730, informou que na Capitania de São Vicente se criavam porcos, cujo couro era utilizado tanto para calçados como para mobiliário:
"[...] Se criam nela [na Capitania de São Vicente] porcos tão grandes, que se lhes esfolam as peles para botas e couros de cadeiras, em que provam melhor que o das vacas." (⁶)
Os leitores não terão dificuldade em perceber que, se no início, era preciso que um colono se acomodasse ao que havia na terra, aos poucos foi possível adaptar ao Brasil os usos e costumes do Reino, o que incluía, por suposto, tanto os cultivos agrícolas como a criação de animais, possibilitando, assim, um estilo de vida mais semelhante àquele que era usual na Europa (com as devidas adaptações), tendo em conta as condições climáticas vigentes na América.

(1) Com exceção, naturalmente, dos que vinham ao Brasil para cumprir uma sentença de degredo; esses, como regra, não o faziam de livre e espontânea vontade.
(2) Os experimentos foram um sucesso: nos relatórios de exportações do Século XVII, com destino à Europa, era frequente que os principais itens fossem açúcar, tabaco e couros. A criação de gado bovino para corte obteve sucesso no Nordeste, mas havia também a exportação de couros de animais nativos do Continente Americano.
(3) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 246.
(4) FONSECA, Manoel da, S.J. Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes, da Companhia de Jesus da Província do Brasil. Lisboa: Off. de Francisco da Silva, 1752, p. 38. Reedição da Cia. Melhoramentos de S. Paulo.
(5) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 119.
(6) PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa 2ª ed. Lisboa: Ed. Francisco Arthur da Silva, 1880, p. 65.


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sexta-feira, 15 de abril de 2016

Como eram as viagens terrestres antes da existência de ferrovias

Quem de vocês, leitores, gosta de viagens? Com elas, é possível conhecer pessoas, ampliar a visão de mundo, experimentar outras culturas. Entretanto, nem sempre as viagens foram vistas como uma opção interessante de lazer. Ao contrário, eram consideradas perigosas, e mesmo um risco à vida de quem tinha de fazê-las. É exatamente dessa época, anterior à implantação de ferrovias no Brasil, que veremos, agora, alguns fatos interessantes:
  • Havia viajantes ocasionais e viajantes profissionais. Entre os últimos estavam, certamente, os tropeiros, que conduziam mulas carregadas de mercadorias; entre os primeiros, iam, por exemplo, aqueles que precisavam tratar de algum negócio na Corte, estudantes que saíam do interior para frequentar instituições nas cidades maiores, políticos que iam exercer mandatos nas capitais das províncias ou no Rio de Janeiro, a capital do Império. Alguns iam a cavalo, mas as mulas, por sua resistência e preço geralmente baixo, tinham a preferência de muita gente como montaria para longos percursos.
  • Era mau negócio ser mula de tropeiro: além de terem de levar uma enorme carga às costas, as mulas corriam o risco de cair nos buracos que havia nas estradas. As infelizes que caíam, lá ficavam, e acabavam morrendo.
  • Poucas estradas tinham estalagens decentes em que os viajantes pudessem encontrar hospedagem: a maioria contava apenas com os ranchos de tropeiros, mas em alguns casos nem ranchos havia, só restando aos viajantes tentar abrigo em casa de alguma família. Se isso também falhasse, a única solução era acampar ou passar a noite ao relento, na expectativa de que não viesse tempestade.
  • As mulas eram usadas como cavalgadura por uma parte considerável dos viajantes do Século XIX. Nesse tempo, o costume de viajar em redes carregadas por dois escravos já não era tão frequente, a não ser no interior do Brasil. Entretanto, liteiras puxadas por cavalos ou mulas ainda tinham uso, principalmente para o transporte de pessoas doentes ou de senhoras que desconheciam a equitação.
  • Uma dificuldade grande surgia quando era preciso atravessar um rio que não tinha ponte. Nos lugares em que o movimento era intenso havia, às vezes, barqueiros com prática no transporte de passageiros; já os cavalos e outros animais eram, com a guia de gente experiente, conduzidos através da água. Acidentes não eram incomuns.
  • Vários autores do Século XIX mencionam o fato de que, ao contrário do que seria razoável supor, os piores pontos das estradas estavam perto das cidades e vilas. É que nesses lugares o movimento era maior, e, principalmente na estação das chuvas, havia lama e buracos monstruosos, de difícil transposição. Entretanto, pouca gente parecia se importar com o problema, e nem mesmo as autoridades administrativas cogitavam tomar providências para a instalação de algum tipo de calçamento apropriado.
  • Como o policiamento nas estradas do interior do Brasil era diminuto (quando chegava a existir), um dos maiores medos de quem viajava estava relacionado à possibilidade de encontrar um bando de salteadores, ou seja, ladrões "especializados" em roubar viajantes. Por esse motivo, sempre que possível, quem tinha a necessidade de fazer uma viagem procurava unir-se a alguma caravana. Ainda assim, uma vez ou outra, os furtos aconteciam, e o viajante lesado acabava descobrindo que o ladrão era algum acompanhante que parecia muito honesto.
  • Não havendo mapas confiáveis, os viajantes que desconheciam o caminho procuravam contratar guias. O problema é que muitos viajantes acabavam, tarde demais, descobrindo que seus guias não eram tão competentes quanto alardeavam, de modo que, às vezes, acabavam todos perdidos em meio às densas florestas que recobriam grande parte do Brasil. Essa era, leitores, uma situação de real perigo, principalmente se quem viajava não tivesse o cuidado de ter um suprimento de alimentos, roupas extras, alguns medicamentos e uma boa arma.
  • Comprar alimentos ao longo das estradas e rotas de tropeiros significava, quase sempre, pagar preços exorbitantes: quem tinha alguma coisa para vender sabia muito bem que os viajantes famintos acabariam pagando o que se pedia, mesmo porque não tinham alternativa. 
  • Não era bom negócio adoecer durante uma viagem. Se até nas cidades os cuidados médicos eram escassos, calcule-se então o que acontecia sertão adentro! Todo cuidado era pouco quando se tratava de evitar a picada de animais peçonhentos, que não eram nenhuma raridade nas estradas e trilhas no meio do mato.
Os leitores mais acomodados devem estar pensando que, se vivessem nesse tempo, provavelmente nunca sairiam de casa. De fato, a maioria das pessoas passava a vida toda na mesma localidade em que nascera, e os poucos que se atreviam a viajar eram vistos com admiração, em virtude das histórias que contavam. Podiam até exagerar um pouco, tão improvável era que aparecesse alguém para desmentir os tagarelas. A implantação de ferrovias iria, gradualmente, mudar esses hábitos tão forçosamente pacatos.


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quarta-feira, 13 de abril de 2016

Oliveiras, azeite e azeitonas

Dificilmente será possível exagerar a importância do cultivo das oliveiras para a economia da região mediterrânica e adjacências na Idade Antiga (¹). Atenas, por exemplo, tinha na exportação de azeite um elemento decisivo para sua prosperidade.
Embora ninguém saiba quem foi o primeiro sujeito que teve a ideia de colocar azeitonas em salmoura para torná-las comestíveis, conjectura-se que,  talvez por curiosidade ou necessidade, alguém tenha mordido algumas que houvessem caído no mar e lá permanecido durante algum tempo. E, então... ter-se-ia descoberto que o sabor era agradável!
É certo que a salmoura não é o único método de curar azeitonas, mas é, de qualquer modo, muito empregado. Não será útil aos leitores mencionar aqui alguns dos outros, já que o consumo mundial per capita poderia declinar vertiginosamente... Assim, façamos um acordo: nada de perguntas a esse respeito.
Uma prática comum na Grécia Antiga era recolher as azeitonas em uma rede que deixasse passar água, mas não os pequenos frutos. A rede era, então, amarrada a uma árvore que estivesse perto do mar, de modo que o conteúdo pudesse ser mergulhado em água salgada. Por tentativa e erro é que se chegou ao tempo ideal para cura das principais variedades cultivadas.
O azeite era obtido quando os frutos eram esmagados em prensas de pedra. Da primeira extração vinha o azeite de alta qualidade e, portanto, de maior preço. Prensagens posteriores produziam azeite inferior, inclusive aquele que era usado para manter acesas, à noite, as candeias que iluminavam as casas.
O uso do azeite na Antiguidade estava também vinculado a propósitos medicinais, já que era empregado para hidratar a pele e como emoliente, quando era preciso tratar ferimentos.
Passemos, agora, à Roma Antiga. Os romanos amavam o azeite extraído de azeitonas verdes, de modo que Apício (²) um dos mais famosos chefs da Antiguidade, escreveu em De re coquinaria:
"Como conservar verdes as azeitonas, para que se possa espremer o azeite em qualquer tempo:
Colhidas as azeitonas, deve-se imergi-las em salmoura, e ficarão sempre como se acabassem de sair da árvore. Deste modo, será possível ter azeite verde quando se desejar." (³)
Agora, leitores, estejam certos de uma coisa: não testei a receita. Se, no entanto, alguém ousar experimentar, que fique à vontade para contar o resultado.

(1) É muito importante até hoje.
(2) Século I d.C.
(3) De re coquinaria XXVIII. Tradução de Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


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segunda-feira, 11 de abril de 2016

Lazer para livres e escravos no Brasil Colonial

Quem vinha colonizar o Brasil, ao menos nos primeiros tempos, precisava trabalhar muito. Afinal, para padrões europeus, tudo ainda estava por fazer. Se é fato que os colonizadores, por uma questão de sobrevivência, habituavam-se ao modo de vida dos indígenas, é também verdade que a maioria deles não tinha intenção de manter esse estilo de vida para sempre. O sonho dourado era enriquecer - bem depressa, se possível - e voltar para o Reino, a fim de desfrutar uma vida regalada. Nem todos conseguiam, mas os poucos que alcançavam a meta eram suficientes para insuflar esperanças em quem se atrevia a cruzar o Atlântico e vir para uma terra sobre a qual se afirmava não haver nela, curiosamente, assim como na língua geral indígena, nem f, nem l e nem r: nem fé, nem lei e nem rei...
Ora, leitores, como ninguém é de ferro, mesmo os colonizadores mais fanáticos por trabalho precisavam ter momentos de lazer. Gabriel Soares, em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, aponta a existência de uma diversão favorita na Cidade da Bahia de seu tempo: "Está no meio desta cidade uma honesta praça, em que se correm touros quando convém..." (¹)
jogo de bola chegou a ser proibido no Rio de Janeiro (!!!), e os missionários jesuítas costumavam desestimular os jogos de dados e de cartas, que também eram proibidos pelas Ordenações do Reino (²), embora os jogos de tabuleiro fossem permitidos:
"Defendemos (³) que pessoa alguma, de qualquer qualidade que seja, em nossos Reinos e Senhorios não jogue cartas, nem as tenha em sua casa e pousada, nem as traga consigo, nem as faça, nem traga de fora, nem as venda. [...].
 E os que jogarem dados sejam presos, e da cadeia paguem vinte cruzados, se forem peões, e sejam açoitados publicamente com baraço e pregão, e se forem de maior condição, sejam degradados um ano para África, e pagarão quarenta cruzados, salvo se jogarem os jogos que em tabuleiro se jogam [...], os quais lhes não vedamos, porque as pessoas tenham com que se desenfadem." (⁴)
Sim, vai uma distância enorme, às vezes, entre a proibição e a obediência (⁵), tão longa quanto a distância do Brasil ao Reino, mas de vez em quando algum governante muito estrito encasquetava em fazer cumprir as leis, o que até servia para tornar a transgressão mais divertida.
Em datas religiosas e em outras comemorações (como ano-novo, por exemplo), as competições que envolviam habilidades equestres eram muito apreciadas. Eram, quem sabe, os últimos suspiros de velhas tradições medievais, que vinham esmorecer em terras da América, mas, à parte disso, possibilitavam a reunião de muitos espectadores, e, entre eles, as mulheres, que viviam trancafiadas, e que nessas ocasiões saíam de casa em companhia dos homens da família, que iam presenciar os jogos e corridas. A Nobiliarchia Paulistana refere a existência de verdadeiros campeões em São Paulo nos tempos coloniais. Um deles foi Inácio Dias da Silva, que "na arte de andar a cavalo excedeu a todos os do seu tempo e ainda aos do passado, e sabia na última perfeição todo o manejo da cavalaria, e foi de tantas forças que com ela executava a cavalo algumas ações em as quais não achava quem o competisse. [...]." A Nobiliarchia diz, ainda, que por ocasião de grandes festas organizadas em honra da missa nova do padre Eusébio de Barros Leite, "levou Inácio Dias da Silva em todas as três tardes sempre os prêmios de louvor entre os muitos e destros cavaleiros daquela função, da qual foi ele o primeiro mantenedor e guia nas escaramuças." 
Autores do Período Colonial fazem muito poucas referências quanto a bailes, música e danças. É que a severidade, quando não a hipocrisia dos costumes, desencorajava qualquer aproximação pública entre homens e mulheres. Já para aqueles que viviam fora dos círculos constituídos pela elite colonial havia sempre a possibilidade de passar o tempo livre nas tabernas (tão malfaladas quanto mais frequentadas), onde, junto às bebidas de qualidade duvidosa, sempre aparecia alguém para tocar viola, enquanto as danças consideradas escandalosas acabavam acontecendo e, em algum cômodo escondido, rolava a tavolagem que as leis proibiam.
Novos hábitos, mais gentis, começaram a ser introduzidos em fins do Século XVIII, ainda que em caráter restrito, em recepções que aconteciam nas residências da pouco numerosa elite urbana favorecida pela mineração. É quase impossível saber quando é que um minueto terá sido tocado e/ou dançado pela primeira vez no Brasil, mas não será absurdo imaginar que estudantes que haviam passado alguns anos na Europa tenham de lá trazido novas ideias sobre sociabilidade, que podem, a princípio,  ter parecido extravagantes para os rústicos colonizadores. Mas, como se sabe, o tempo se encarrega das mudanças. 
A vinda da Corte ao Brasil em 1808 foi também responsável pela introdução de inovações no estilo de vida, primeiro entre a população urbana do Rio de Janeiro e, aos poucos, também em lugares mais distantes, o que deu ocupação  aos aferrados às velhas tradições, que desaprovavam as novidades só por serem novas, e não porque fossem boas ou más. Quem tinha instrução e certo padrão econômico, porém, passou a apreciar as idas ao teatro, as óperas (⁶), os bailes, e assim as valsas que ficaram famosas no Congresso de Viena não tardaram a soar também no Brasil. Já era época da independência política, e o País queria ostentar um verniz de civilidade. Era o que acontecia na superfície; já o cerne, era outra coisa.
Resta falar ainda do lazer entre os escravos, embora esse seja um ótimo assunto para outra postagem. É sabido que muitos senhores eram dados a vetar as danças e folguedos, porém os mais sensatos proprietários entendiam que não era prudente (e nem mesmo favorável aos seus interesses), que uma proibição absoluta fosse imposta aos cativos. Daí resultava que, aos domingos e feriados, a música e a dança dos escravos, se não era explicitamente permitida, era ao menos tolerada. Como não imaginar que mais de um senhor, dentre os que faziam vistas grossas à diversão dos escravos, tenha ficado surpreso consigo mesmo por se perceber tamborilando com os dedos, no ritmo vivaz que ecoava das senzalas? 

Escravos dançando, de acordo com M. Rugendas (⁷)

(1) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 118.
(2) As Ordenações do Reino, compilação de leis que regiam Portugal e seus domínios, foram publicadas originalmente no começo do Século XVII; a maior parte das leis já existia bem antes disso.
(3) O mesmo que "proibimos".
(4) Ordenações do Reino, Livro Quinto, Título LXXXII, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(5) Como ocorreu, por exemplo, nos anos em que vigorou a Lei Seca nos Estados Unidos.
(6) Acreditem leitores: cantoras líricas eram endeusadas pelos jovens do Rio de Janeiro no Século XIX.
(7) RUGENDAS, Moritz. Malerische Reise in Brasilien. Paris: Engelmann, 1835. 
O original pertence à Biblioteca Nacional; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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sexta-feira, 8 de abril de 2016

A hora da catequese

Missionários jesuítas adaptavam os horários de catequese à rotina seguida pelos povos indígenas


Embora, pelas cartas de Anchieta, seja possível inferir que missionários jesuítas não perdiam ocasião de ensinar suas crenças aos indígenas, também sabemos que, sempre que conseguiam ser admitidos ao convívio em uma aldeia, logo tratavam de adotar um horário definido para a catequese. O aspecto interessante é que a escolha da hora estava relacionada à rotina que habitualmente era seguida, não pelos padres, mas pelos índios, ao menos para a catequese de adultos. 
Razão para isso? Muito simples: os homens indígenas adultos costumavam passar boa parte do dia em atividades como caça e pesca, e só no final da tarde é que retornavam à aldeia. O padre Simão de Vasconcelos, autor seiscentista da Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, explicou:
"Como [os índios] vivem de seu arco, em amanhecendo partem à caça das aves e feras por esses campos [...], voltam comumente à noite, de maneira que em todo o dia não há tratar com eles com sossego. Porém este inconveniente vencia o grande fervor de Aspilcueta (¹). Ia esperá-los sobre a tarde, a tempo que vinham carregados com suas caças, dava-lhes as boas-vindas e os parabéns do sucesso aos que tiveram boa dita. Dizia-lhes que descansassem e ceassem [...] com suas famílias; e quando já estavam descansados e satisfeitos, em começando a noite a desenrolar seu manto, começava ele a despregar a torrente de sua eloquência, levantando a voz, e pregando-lhes os mistérios da fé, andando em roda deles, batendo o pé, espalmando mãos, fazendo as mesmas pausas, quebros e espantos costumados entre seus pregadores, para mais os agradar e persuadir." (²)
Para a catequese das crianças a estratégia era diferente: estabeleciam-se escolas, que funcionavam durante o dia. O mesmo Simão de Vasconcelos, na biografia do padre José de Anchieta, escreveu: "Nestas escolas gastam duas horas de manhã, outras duas da tarde." (³)
Logo os missionários jesuítas perceberam que os meninos catecúmenos podiam ser muito úteis quando a questão era convencer os adultos. Assim que anoitecia, as crianças, cantando, percorriam as ruas, o que devia fazer boa impressão entre os nativos do Brasil, notórios amantes da música:
"Tangendo as Ave Marias da noite, tornam-se  a ajuntar [os meninos] à porta da igreja, e daí formam procissão com cruz levantada diante, e postos em ordem, vão cantando pelas ruas em alta voz prosas santas em sua língua [...]." (⁴)
Aos jesuítas parecia, a princípio, mais fácil catequizar crianças que adultos; o tempo veio provar, porém, que assim que chegavam à adolescência, quase todos os meninos optavam pelo atraente estilo de vida de seus pais, com sua liberdade, suas caçadas e suas guerras a cada nova safra de cajus, em lugar dos severos costumes que os padres tentavam ensinar. Justamente por isso é que Anchieta, um mestre no gênero epistolar, viria a escrever algumas de suas páginas mais amargas, exprobando à criançada indígena o abandono da fé que antes pareciam aceitar com tanta facilidade.

(1) Padre João Aspilcueta Navarro, o primeiro dentre os missionários jesuítas a ser capaz de ensinar na "língua geral" dos indígenas que viviam em áreas litorâneas.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 1 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 55.
(3) Idem. Vida do Venerável Padre José de Anchieta. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1672, p. 163.
(4) Ibid.


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quarta-feira, 6 de abril de 2016

Crianças escravizadas no Brasil

Refeição em casa de uma família proprietária de escravos, de acordo com Debret (¹)

Os filhos das escravas eram, legalmente, também escravos (²), a menos que fossem libertados pelo proprietário da mãe. Era costume que, a contar da data do parto, uma escrava ficasse três dias sem trabalhar. Depois, voltava às suas tarefas rotineiras.
A maioria dos senhores não tinha qualquer constrangimento em exigir trabalho dos pequenos escravos, tão logo fossem considerados capazes de fazer alguma coisa. Na prática, meninos e meninas de seis, sete anos de idade, eram já postos a trabalhar.
É verdade que tal desgraça não era duvidoso privilégio apenas de um país no qual vigorava o escravismo. Basta lembrar que na Inglaterra da Revolução Industrial era absolutamente comum que crianças trabalhassem na limpeza de chaminés (³), nos apertadíssimos túneis periféricos das minas de carvão, nas tecelagens e em muitos outros ramos de ocupação. Lá, ainda que as crianças fossem legalmente de condição livre, eram forçadas a trabalho penoso, fisicamente degradante e por longas jornadas (⁴), em decorrência da pobreza extrema em que viviam, como parte da população operária residente nos bairros miseráveis das grandes cidades industriais.
Mas retornemos, leitores, à questão das crianças escravizadas no Brasil. Dois exemplos serão úteis para quem desejar uma visualização do que ocorria. O segundo barão de Paty do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, que fazia experiências com o cultivo de chá em suas terras, disse: "Tenho adotado o método de trazerem as folhas misturadas e, neste serviço, emprego negros, rapazes, mulheres e até crianças de seis anos para cima, que entre os outros também fazem algum serviço." (⁵) Esse relato, é bom mencionar, foi publicado pela primeira vez na década de quarenta do Século XIX.
Retrocedendo no tempo, temos um testemunho pungente, obra de Saint-Hilaire, da ocasião em que esse naturalista francês fazia suas andanças pelo Rio Grande do Sul, pouco antes da Independência. A coisa acontecia na casa de um charqueador de certa importância: 
"Há sempre na sala um negrinho de dez a doze anos, que permanece de pé, pronto a ir chamar os outros escravos, a oferecer um copo de água e a ir prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz do que esta criança. Não se assenta, nunca sorri, jamais se diverte, passa a vida tristemente apoiado à parede e é, frequentemente, martirizado pelos filhos do patrão. Quando anoitece, o sono o domina, e quando não há ninguém na sala, põe-se de joelhos para poder dormir; não é esta casa a única onde há este desumano hábito de se ter sempre um negrinho perto de si para dele utilizar-se, quando necessário." (⁶)
Sim, leitores, é de causar espanto o entorpecimento moral que a escravidão produzia. Quem, no entanto, saberá dizer quantas misérias sociais são toleradas mesmo hoje, sem que uma só palavra de desaprovação seja dita?

Escrava vendedora de frutas carregando seu bebê (⁷)

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 2. Paris: Firmin Didot Frères, 1835. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Sobre a Lei do Ventre Livre e a libertação dos filhos de escravas, veja, também neste blog: "Quem Foi Libertado Pela Lei do Ventre Livre?"
(3) Eram consideradas perfeitas para a tarefa, justamente porque eram pequenas.
(4) Seis dias por semana, 12 horas por dia, e mesmo mais, em alguns casos.
(5) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, pp. 147 e 148.
(6) SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, pp. 119 e 120.
(7) __________ Brasilian Souvenir. Rio de Janeiro: Ludwig & Briggs, 1845. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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segunda-feira, 4 de abril de 2016

Viajando com os monçoeiros paulistas do Século XVIII

As árvores já fazem sombra nas águas do Tietê, e o céu, a oeste, dá sinais de mudar de cor. Na densa floresta, a cantoria vespertina da passarada está por começar.
Os remeiros dos batelões se entreolham, à espera de um sinal dos respectivos proeiros, que param de marcar o ritmo. Diminuem a marcha, enxugam o suor que escorre pelo rosto e procuram, junto à margem, um lugar seguro em que amarrar as embarcações. Ligar cada uma delas a um tronco resistente é mais fácil, porém arriscado. Não correm de boca em boca os casos de canoas que, em meio a uma tempestade, foram levadas, com árvore e terra, pela correnteza reforçada com a água da chuva? Os batelões serão, portanto, arrastados mata adentro, o que é inevitável sacrifício em uma hora na qual os viajantes, já cansados, ainda terão de enfrentar o preparo da comida para o jantar e para o dia seguinte.
Os homens saltam em terra primeiro, tratando logo de ajudar no desembarque das poucas mulheres que acompanham a expedição. Em pouco tempo, ouvem-se os sons secos dos machados derrubando árvores, para abrir algum espaço onde cozinhar. Cada grupo de parentes ou conhecidos se reúne para cuidar da própria subsistência. A solidariedade é importante nessas circunstâncias. Acende-se fogo, e, entre duas forquilhas, um galho forte sustenta o caldeirão onde o feijão é posto a ferver. Alguns saem à caça. Se tiverem sorte de apanhar uma anta, o jantar acabará virando um festim, mas qualquer coisa que trouxerem será bem-vinda. Na falta de comida extra, o feijão será acompanhado por farinha de milho. 
Enquanto isso, já começa a procura por um lugar entre as árvores em que armar as redes para dormir. Gente de mais recursos traz também uma proteção contra chuva e mosquitos. Os outros torcem por não haver desses minúsculos seres sanguinários, que bem poderiam fazer parte dos suplícios do inferno, se Dante tivesse sabido de sua existência. E há, ainda, monçoeiros que nem uma simples rede têm, e irão buscar abrigo como for possível, no chão, perto da fogueira.  Ali, pelo menos, as cobras não costumam chegar.
Algumas horas depois, não havendo mais sol, os caçadores retornam. Não foram muito felizes, só trazem caça pequena, mas já é alguma coisa... O feijão borbulha nos caldeirões. Para os monçoeiros famintos, o aroma parece bom.
Enquanto todos jantam, sentados no chão, ouve-se um trovejar distante. Um murmúrio de desaprovação percorre o grupo. Com a roupa molhada e a água a cair sobre o rosto, poucos são os que conseguem conciliar o sono. Os sortudos que têm uma rede com proteção são os únicos que pouco sofrem. Mas o susto é passageiro. As nuvens se dispersam e logo a lua é perfeitamente visível por entre as árvores. 
Ao redor da fogueira, alguns arriscam uma canção. Há monçoeiros veteranos que se dispõem a contar casos que, por sua vez, também foram contados por outros monçoeiros. A maioria, porém, desgastada pela viagem, só pensa agora em descansar, e logo, no acampamento, serão ouvidos somente o crepitar do fogo e os sons de aves noturnas. 
Monçoeiros de primeira viagem tremem a qualquer ruído. Os mais experientes sabem disso, e, às vezes, algum gaiato resmunga: Olha, é miado de onça...
Os mais afoitos tratam de ter certeza de que as armas estejam ao alcance da mão, se, por acaso, precisarem delas. Para piorar, ouvem-se os latidos dos cachorros que acompanham a monção. Presos para não tentarem alguma aventura na mata, levantam a cabeça, rosnam, farejam o ar, tornam a latir. Depois de algum tempo, de novo o silêncio, apenas quebrado pelos ruídos monótonos da floresta, ou pela interjeição mais do que irritada de alguém que já não suporta piuns e borrachudos.
Amanhece. Uma névoa fina repousa sobre o rio. Sonolentos, os monçoeiros vão deixando as redes. Os remeiros já estão junto à margem, e, apontando para o chão, tagarelam entre si, com entusiasmo pouco usual. Os outros vão chegando perto. Na terra barrenta e repisada, as evidentes pegadas de um felino de grande porte não deixam dúvidas quanto à visitante que passeou pelas redondezas enquanto todos dormiam.
Mas é hora de levantar acampamento e seguir viagem. À frente, os rios com suas cachoeiras, as florestas, com sua beleza, mistério e perigos sem conta; muito longe, a miragem do ouro do Cuiabá.


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sexta-feira, 1 de abril de 2016

Ano-novo em Babilônia

Você gosta dos festejos de ano-novo? Os antigos babilônios também gostavam. Entre eles, porém, a data que marcava o começo de um novo ano tinha um significado religioso especial.
Na época do Segundo Império Babilônico a mais importante divindade era Marduk (*), a quem, se usarmos uma linguagem de nossos dias, poderíamos chamar de "padroeiro de Babilônia". É claro que, dentro de uma cultura politeísta, havia também muitos outros deuses, que também eram alvo da devoção popular - uns mais, outros menos.
Pois bem, de acordo com a mitologia da Mesopotâmia, Marduk era pai do deus Nebu, uma divindade cuja ação estava associada à previsão do futuro, ao trabalho intelectual e às investigações que, na lógica de Babilônia, podiam ser consideradas científicas. Além de tudo isso, Nebu era visto como um mensageiro dos deuses, aquele a quem todo o panteão de divindades da Mesopotâmia encarregava de trazer mensagens reveladoras aos seres humanos. Não será difícil compreender, portanto, que os escribas tinham em Nebu o seu patrono, de tal modo que, em muitas representações daqueles tempos, esse deus aparecia com uma tabuinha de argila nas mãos, exatamente como as que eram usadas para grafar os textos em escrita cuneiforme.
Já houve quem tentasse associar Nebu às divindades gregas Hermes e Apolo, mas a ligação fica restrita ao terreno das especulações.  
Pois bem, se Babilônia era a orgulhosa protegida de Marduk, Nebu era particularmente cultuado em Borsipa. É justamente aqui que entra a questão das festanças de ano-novo: no princípio de cada ano a estátua que representava Nebu era levada, em solene procissão, desde Borsipa até o templo de Marduk em Babilônia. O evento era acompanhado de todos os ingredientes habituais que as festas costumavam (ou costumam) ter. Depois que tudo acabava, a estátua voltada para a tranquilidade de seu templo em Borsipa. Com a ajuda dos homens, naturalmente.

(*) Existe uma tendência de aportuguesar os nomes das divindades de Babilônia, de modo que o deus Marduk ou Maruduk também pode ser grafado "Marduque", enquanto que o deus Nebu também pode ser Nebo. Prefiro as formas Marduk e Nebu por considerá-las uma transliteração mais adequada.


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