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quinta-feira, 6 de julho de 2023

Pequeno monçoeiro

Um pedaço de madeira, uma faca velha meio cega. O menininho luta para entalhar a forma de um barco, como aqueles que, de vez em quando, vê partir pelo Tietê, no rumo do sertão. 
Ainda é muito cedo e a neblina cobre o rio. Deixando de lado a ferramenta improvisada, corre até o barranco, e olha, e olha... 
Quem sabe? Parece ver movimento ao longe. Seriam os batelões que, há dois anos, haviam partido, levando-lhe o pai, entre tantos outros aventureiros?
A névoa não se dissipa, só um ligeiro ruído na água reacende a esperança. Por pouco tempo. Manejando o varejão, um desconhecido se aproxima, em pé sobre a canoa, e passa adiante, acenando aos olhinhos que o espreitam.
Com persistência grande para pequena idade, volta ao trabalho. Quer fazer o seu barquinho, colocá-lo na água e pensar no dia em que também partirá. Na imaginação de menino, talvez seja isso o significado de ser homem. Abrirá caminho nas florestas, achará ouro, será rico e respeitado. De que mais não será capaz?
Esse sonhar acordado logo acaba, já a mãe é quem grita:
- Anda, menino, vem me ajudar a tirar a palha do milho!...
Pés descalços, corre à casinha em que sós, moram agora a mãe e ele. Manejar o pilão requer uma força que seus braços ainda não têm. Mas, em um acesso de valentia, quer ser grande, quer proteger a mãe, e se esforça para fazer do milho a farinha de que tanto precisam para viver.


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quinta-feira, 7 de abril de 2022

Através de rios

Se as proezas nas navegações oceânicas ficaram famosas, a navegação fluvial não foi menos importante: quando e onde (ainda) não havia estradas, nem mesmo trilhas, os rios eram vias muito convenientes, tanto para exploradores de um território desconhecido como para viagens regulares. Tentem imaginar, leitores, os barqueiros que, na Antiguidade, subiam o Nilo ou desciam o Eufrates, procurando alcançar, com os olhos, tudo o que havia às margens. Iam, aos poucos, compreendendo melhor aquilo que os cercava e traziam informações que contribuíam para a construção de um conceito do mundo, tal qual era, ou tal qual supunham ser.
Tão decisivos eram os rios, e não só pela água, que, em não poucas mitologias, o caminho dos mortos para algum tipo de vida além-túmulo era imaginado como ocorrendo através de um rio (¹), uma ideia que, surpreendentemente, sobreviveu por longos séculos (²).
Os rios não foram, contudo, apenas rotas de paz, para descobridores e comerciantes. Grupos invasores frequentemente se deslocavam através deles. Foi assim, por exemplo, na Idade Média, quando saxões, deixando suas terras escassas e pouco produtivas na Europa Continental, invadiram a Grã-Bretanha, usando barcos longos e estreitos, capazes de levar três ou quatro dezenas de remadores dispostos aos pares. Suas embarcações eram perfeitas para rios, embora também tenham servido para a travessia do Mar do Norte, a despeito de todos os evidentes riscos.
No Brasil, desde o Século XVI, exploradores europeus perceberam que rios seriam, quase sempre, os melhores caminhos no rumo do interior. Havia trilhas indígenas, é fato, mas os rios pareciam mais seguros e permitiam um deslocamento mais rápido. A navegação, para esses exploradores, quase sempre se fazia contra a corrente, visto que a maioria dos rios deságua no oceano ou em algum outro rio que, por sua vez, corre para o mar. Há, contudo, um caso notável no Brasil, de um rio importante que corre para o interior: o Tietê. Por ele, e muitas vezes com o auxílio de indígenas, colonizadores e missionários avançaram, gradualmente, para o interior do Brasil. A descoberta de ouro em Mato Grosso no Século XVIII converteu o Tietê, temporariamente, em parte essencial da rota das monções cuiabanas. O ouro diminuiu, as viagens pelo Tietê, por conseguinte, também foram ficando mais raras. Restaram o conhecimento e ocupação do interior, o nascimento de núcleos de povoação nas margens e, com isso, uma contribuição para a formação do Brasil, enquanto país com um território definido. 

Rio Tietê nas proximidades de Pirapora do Bom Jesus - SP

(1) É o caso do Aqueronte na mitologia grega, um rio que de fato existe e pelo qual se supunha que os mortos viajavam para ir ao reino de Hades. 
(2) Na poética do protestantismo, por exemplo, expressões equivalentes à travessia de um rio foram, por muito tempo, um modo de se referir à morte de um cristão, e, com esse sentido, obras literárias e cânticos religiosos falavam em "atravessar o Jordão", por analogia à travessia do rio Jordão, na Antiguidade, pelos hebreus que vinham do Egito. Um exemplo notável pode ser encontrado em The Pilgim's Progress, de John Bunyan, um clássico da literatura inglesa do Século XVII.


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quinta-feira, 25 de julho de 2019

Um quilombo junto ao rio Tietê

Quando se fala em quilombo, Palmares vem à mente da maioria das pessoas. Foi, de fato, o mais famoso, tanto pelas proporções alcançadas quanto pela resistência. Mas não foi o único. Muitíssimos outros existiram, nos mais diversos pontos do Brasil. Houve um, de acordo com Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff (¹), às margens do rio Tietê, em algum lugar, portanto, do território que hoje pertence ao Estado de São Paulo:
"[...] passamos pela embocadura do rio Quilombo e, pouco abaixo, pela ilha e cachoeira do mesmo nome. Ali se haviam antigamente refugiado muitos negros, pois quilombo é palavra que designa o asilo onde eles se reúnem nas matas. Foram descobertos por negociantes que voltavam de Cuiabá (²) e que, apenas chegados a Porto Feliz, armaram, por espírito de ganância, uma expedição com a qual atacaram aqueles infelizes, aprisionando mais de cento e vinte. Amontoados em canoas, voltaram os mal-aventurados aos pontos em que sofriam o cativeiro. Foi-nos o fato contado pelo guia." (³)
Florence foi didático em suas explicações. Registrava os acontecimentos para si mesmo, mas é possível que imaginasse que eventuais leitores de seus escritos talvez desconhecessem as circunstâncias do escravismo no Brasil. Quilombos não eram incomuns, tampouco o eram as expedições para destruí-los. Captores de escravos queriam, se possível, encontrar quilombolas vivos, para reconduzi-los à escravidão. Este quilombo das margens do Tietê foi apenas mais um, a abrigar - quem saberá por quanto tempo? -, os sonhos de liberdade de quem fugia do cativeiro.

(1) A Expedição Langsdorff saiu de Porto Feliz no dia 22 de junho de 1826.
(2) Monçoeiros, infere-se. 
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 38

terça-feira, 18 de abril de 2017

Anhumas

Uma ave, muitas superstições


Anhuma (Anhima cornuta)

As anhumas (Anhima cornuta) impressionaram os colonizadores. Tudo culpa do espinho córneo que têm na cabeça, que, para os supersticiosos de antigamente, lembrava um chifre e, por isso mesmo, sugeria vínculos sinistros. Bobagem, é claro, mas isso é o que pensamos nós, que vivemos no Século XXI. 
Diz-se que, no passado, o rio Tietê era chamado Iguatemi, cujo significado seria "o rio das aves anhumas". Ora, leitores, isso foi há séculos. Embora eu não diga que seja impossível achar anhumas nas proximidades do Tietê, devo atestar que jamais vi qualquer delas por lá. Alguém dos leitores já viu?
O Padre Anchieta fez referência às anhumas, em carta escrita em São Vicente no ano de 1560. Descrevendo uma delas, observou: "[...] Quando grita parece o zurrar de um asno. [...] Quando acossada pelos cães, não foge, ainda que a grandeza do corpo não a embarace de voar; antes os afugenta, ferindo-os gravemente [...]." (¹) Quanta coragem!
Já no Século XIX, Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff, registrou em seu diário de viagem, no dia 1º de agosto de 1826:
"De manhã matou-se junto a uma lagoa uma anhuma (²), pássaro raro e notável [...] pela excrescência córnea fina, e de três e meia polegadas de comprido, que lhe nasce na cabeça. Tem também no encontro das asas dois esporões que, como armas defensivas, podem causar ferimentos graves. A plumagem é branca e preta, sarapintada na cabeça. preta e parda ao redor dos olhos, escura no resto do corpo, com exceção da barriga, que é branca. O íris é alaranjado. [...]." (³)
Com essas características, não causa surpresa que as anhumas, entre o povo pouco instruído, fossem alvo de um sem-número de superstições. Foi o que constatou José Vieira Couto de Magalhães, ao percorrer, em 1863, parte da Província de Goiás. O caso é que, tendo abatido uma dessas aves, notou que a tripulação do barco com o qual percorria o rio Araguaia entrou em viva discussão. Motivo? Cada um queria um pedaço da anhuma, e não era para comer, já que os ossos eram o principal assunto da disputa:
"[...] Este requeria uma espécie de unicórnio que elas [as anhumas] trazem sobre a cabeça; aquele queria um esporão; um outro o osso da coxa esquerda, e, como eram muitos, cada um alegava seu direto, sem que nenhum tivesse razão." (⁴)
Disposto a averiguar a causa da porfia, Couto de Magalhães descobriu que a mais crassa superstição motivara o interesse por esquartejar a ave: 
"[...] Segundo eles, eram preservativos contra maus ares, maus olhos, mordedura de animais venenosos, e outras que tais coisas.
Um dos companheiros de viagem contou-me então que em Goiás, e sobretudo no norte da Província (⁵) esta crença é geralmente espalhada. Extraem ossos do animal, fazem-lhes furos, e atam-nos ao pescoço das crianças, como um talismã que lhes preserva de quase todos os males." (⁶)
Hoje achamos graça nessas crendices, e tendemos a interpretá-las como uma espécie de folclore. Mas, há menos de duzentos anos, havia, como se vê, quem de fato acreditasse nelas. No interior do Brasil a instrução pública era quase inexistente, valendo o mesmo quanto aos cuidados médicos, de modo que a população, carente de esclarecimento e desconhecendo tanto práticas de higiene quanto as verdadeiras causas de doenças, buscava, em um conjunto de superstições, a proteção para o mundo que a amedrontava e não conseguia explicar.

(1) ANCHIETA, Pe. Joseph de S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 125.
(2) Era comum que animais fossem mortos e empalhados, porque só assim é que poderiam ser expostos em museus pelo mundo afora.
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 43.
(4) MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Viagem ao Rio Araguaia. Goiás: Tipografia Provincial, 1864, p. 169.
(5) Atualmente, Estado de Tocantins.
(6) MAGALHÃES, José Vieira Couto de. Op. cit., p. 169.


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segunda-feira, 4 de abril de 2016

Viajando com os monçoeiros paulistas do Século XVIII

As árvores já fazem sombra nas águas do Tietê, e o céu, a oeste, dá sinais de mudar de cor. Na densa floresta, a cantoria vespertina da passarada está por começar.
Os remeiros dos batelões se entreolham, à espera de um sinal dos respectivos proeiros, que param de marcar o ritmo. Diminuem a marcha, enxugam o suor que escorre pelo rosto e procuram, junto à margem, um lugar seguro em que amarrar as embarcações. Ligar cada uma delas a um tronco resistente é mais fácil, porém arriscado. Não correm de boca em boca os casos de canoas que, em meio a uma tempestade, foram levadas, com árvore e terra, pela correnteza reforçada com a água da chuva? Os batelões serão, portanto, arrastados mata adentro, o que é inevitável sacrifício em uma hora na qual os viajantes, já cansados, ainda terão de enfrentar o preparo da comida para o jantar e para o dia seguinte.
Os homens saltam em terra primeiro, tratando logo de ajudar no desembarque das poucas mulheres que acompanham a expedição. Em pouco tempo, ouvem-se os sons secos dos machados derrubando árvores, para abrir algum espaço onde cozinhar. Cada grupo de parentes ou conhecidos se reúne para cuidar da própria subsistência. A solidariedade é importante nessas circunstâncias. Acende-se fogo, e, entre duas forquilhas, um galho forte sustenta o caldeirão onde o feijão é posto a ferver. Alguns saem à caça. Se tiverem sorte de apanhar uma anta, o jantar acabará virando um festim, mas qualquer coisa que trouxerem será bem-vinda. Na falta de comida extra, o feijão será acompanhado por farinha de milho. 
Enquanto isso, já começa a procura por um lugar entre as árvores em que armar as redes para dormir. Gente de mais recursos traz também uma proteção contra chuva e mosquitos. Os outros torcem por não haver desses minúsculos seres sanguinários, que bem poderiam fazer parte dos suplícios do inferno, se Dante tivesse sabido de sua existência. E há, ainda, monçoeiros que nem uma simples rede têm, e irão buscar abrigo como for possível, no chão, perto da fogueira.  Ali, pelo menos, as cobras não costumam chegar.
Algumas horas depois, não havendo mais sol, os caçadores retornam. Não foram muito felizes, só trazem caça pequena, mas já é alguma coisa... O feijão borbulha nos caldeirões. Para os monçoeiros famintos, o aroma parece bom.
Enquanto todos jantam, sentados no chão, ouve-se um trovejar distante. Um murmúrio de desaprovação percorre o grupo. Com a roupa molhada e a água a cair sobre o rosto, poucos são os que conseguem conciliar o sono. Os sortudos que têm uma rede com proteção são os únicos que pouco sofrem. Mas o susto é passageiro. As nuvens se dispersam e logo a lua é perfeitamente visível por entre as árvores. 
Ao redor da fogueira, alguns arriscam uma canção. Há monçoeiros veteranos que se dispõem a contar casos que, por sua vez, também foram contados por outros monçoeiros. A maioria, porém, desgastada pela viagem, só pensa agora em descansar, e logo, no acampamento, serão ouvidos somente o crepitar do fogo e os sons de aves noturnas. 
Monçoeiros de primeira viagem tremem a qualquer ruído. Os mais experientes sabem disso, e, às vezes, algum gaiato resmunga: Olha, é miado de onça...
Os mais afoitos tratam de ter certeza de que as armas estejam ao alcance da mão, se, por acaso, precisarem delas. Para piorar, ouvem-se os latidos dos cachorros que acompanham a monção. Presos para não tentarem alguma aventura na mata, levantam a cabeça, rosnam, farejam o ar, tornam a latir. Depois de algum tempo, de novo o silêncio, apenas quebrado pelos ruídos monótonos da floresta, ou pela interjeição mais do que irritada de alguém que já não suporta piuns e borrachudos.
Amanhece. Uma névoa fina repousa sobre o rio. Sonolentos, os monçoeiros vão deixando as redes. Os remeiros já estão junto à margem, e, apontando para o chão, tagarelam entre si, com entusiasmo pouco usual. Os outros vão chegando perto. Na terra barrenta e repisada, as evidentes pegadas de um felino de grande porte não deixam dúvidas quanto à visitante que passeou pelas redondezas enquanto todos dormiam.
Mas é hora de levantar acampamento e seguir viagem. À frente, os rios com suas cachoeiras, as florestas, com sua beleza, mistério e perigos sem conta; muito longe, a miragem do ouro do Cuiabá.


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sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Um banquete de Natal fora do comum

Era o ano de 1788, e o astrônomo Francisco José de Lacerda e Almeida, a serviço de Sua Majestade, o Rei de Portugal, andava a correr terras e águas do Brasil, com o propósito de demarcar fronteiras, traçar mapas e reconhecer territórios. 
A vida dos que compunham a sua expedição não tinha facilidades. Horas e horas dentro de canoas, noites sob chuva (de água, às vezes; de mosquitos, quase sempre). Sol escaldante durante as horas dos dias claros, trovoadas, cachoeiras perigosas, até mesmo falta de comida e de água potável. Doenças desconhecidas e letais, picadas de cobras e aranhas. Tinha-se o caldo de cultura perfeito para os mais terríveis pesadelos da vida real.
Chegou dezembro e, com ele, o Natal. A expedição percorria o rio Tietê, fazendo viagem inversa à dos monçoeiros que seguiam para Cuiabá. Em seu diário, no dia 26 de dezembro, Lacerda escreveu:
"Neste dia naveguei 4 1/2 léguas por me demorar 5 1/2 horas em matar e esperar que surgisse do fundo do rio uma anta, que no fim de 4 horas apareceu com grande alegria de todos, em que eu também tive parte, por ter com que fazer o meu banquete do post diem do Nascimento do Nosso Redentor [...]."
Passou, em seguida, a explicar em que consistiu o banquete do dia de Natal propriamente dito:
"[...] O de ontem consistiu no panem nostrum quotidianum, que é feijão capaz ainda de ter filhos e netos, e em bugio cozido, e em bugio com arroz, e em bugio moqueado (*), cujo papo comi por ser a parte mais saborosa."
Pobres bugios... A despeito dos obstáculos que vinha enfrentando, Lacerda preservava algum senso de humor. 
Como que mudando de assunto, mas retornando ao princípio, ainda observou:
"Todos os rios desde o Coxim inclusive, entrando também o Tietê, têm muita abundância de antas, chamadas ruças, que são da grandeza de uma mediana vaca, e no gosto muito melhores."
Creio que ninguém terá dificuldade em compreender as preferências gastronômicas do astrônomo Lacerda, à luz, afinal de contas, da escassez que reinava nas expedições do Século XVIII que iam ao interior do Brasil. Essas viagens eram tão perigosas que aqueles que delas saíam vivos bem podiam olhar para si mesmos como personagens de muita sorte. 

(*) Tipo de churrasco à moda indígena.


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segunda-feira, 14 de setembro de 2015

O trabalho do proeiro nas embarcações monçoeiras do Século XVIII

A existência de um rio que corria para o interior e não para a o litoral - o Tietê - foi um fator importante a favorecer a curiosidade dos primeiros exploradores da América do Sul, que, na ânsia por descobrir metais preciosos e outras riquezas, arriscavam a vida para ir até onde, ao que se sabe, europeus nunca haviam chegado. Quando, no Século XVIII, descobriu-se o "ouro do Cuiabá", expedições devidamente organizadas passaram a percorrer o Tietê e outros rios como única rota então praticável para quem sonhava com a riqueza supostamente rápida e fácil que o ouro talvez proporcionasse. Essas expedições que partiam de Araraitaguaba (Porto Feliz - SP) foram chamadas monções.
As embarcações que os monçoeiros usavam, fossem simples canoas ou os enormes batelões, deviam ser velozes e resistentes para enfrentar com sucesso os obstáculos impostos à navegação pelas numerosas corredeiras e saltos que havia no percurso. Era necessário, também, como questão de vida ou morte, que fossem tripuladas por remadores fortes, com capacidade de manter o ritmo monótono das remadas por horas e horas, sem fraquejar. Muitos desses remadores eram escravos.
A segurança na condução de homens, bagagem, suprimentos, e mesmo de animais em uma embarcação monçoeira dependia, porém, do comando, conhecimento e experiência de um indivíduo em particular: o proeiro. Esse sujeito precisava saber tudo a respeito dos rios pelos quais navegaria. Um lapso de sua parte, e as perdas, materiais e humanas, podiam ser irremediáveis.
O astrônomo Francisco José de Lacerda e Almeida, estando a serviço da Coroa portuguesa, veio de Vila Bela da Santíssima Trindade a São Paulo em 1888, fazendo, portanto, a navegação de retorno das monções, ocasião em que anotou, em seu diário, o seguinte relato de como trabalhava o proeiro da embarcação em que viajava:
"Este homem tem as chaves do caixão das carnes salgadas e das frasqueiras, comanda e governa a proa, e está na sua jurisdição e vontade o fazer mais ou menos compassadas as remadas, conforme bate mais ou menos apressadamente com o calcanhar na canoa, servindo cada pancada como de compasso para cada uma remada: todos remam em pé. Este homem merece na verdade toda contemplação, pois nas descidas das cachoeiras leva a vida em muito perigo e risco, porque como o rio corre nelas (para assim dizer), como a bala despedida da peça (*), é necessário desviar a proa e a canoa das pedras que lhe estão em frente, e não bastando o leme, que também é um remo, vai este proeiro em pé na proa da canoa com um grande e forte remo nas mãos para poder ajudar e aumentar o efeito do leme, e rapidamente desviar a canoa das pedras. Como estas são muito dispersas, lhe é necessário mudar o remo para um e outro lado da canoa, conforme a necessidade o pede, e com grande presteza. Se nestas rápidas mudanças sucede escorregar ou roçar a canoa em alguma pedra, ainda que seja levemente, vai ao rio e se faz em pedaços, ou ao menos morre afogado."
A competência e a responsabilidade do cargo que ocupava faziam de cada proeiro um elemento respeitado entre as tripulações monçoeiras. E, consciente disso, o próprio indivíduo acabava, segundo Lacerda e Almeida, por adotar uma conduta meio arrogante, conforme assinalou, na linguagem típica do Século XVIII:
"Todas estas considerações da importância da sua pessoa e a autoridade que tem, o fazem respeitado de seus companheiros, e tem toda a chibança de um vilão obsequiado e respeitado."
À vista disso e apesar dos riscos inerentes ao ofício, quase podemos dizer que o sonho de cada remador nas monções era, afinal, ser proeiro.

(*) Peça de artilharia, entenda-se.


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quarta-feira, 18 de março de 2015

A tripulação usual de um batelão monçoeiro

"Batelão" era o nome dado a cada uma das enormes canoas que, ao tempo das monções cuiabanas, eram usadas nas viagens pelo Tietê, Paraná e outros rios. Partia-se de Porto Feliz - então chamada Araraitaguaba (*) - mas o retorno podia ser pelo próprio Tietê ou, em época de grandes chuvas, pelo rio Piracicaba.
Os batelões eram, com frequência, construídos a  partir do tronco de uma única árvore, o que era possível porque, naquela época, havia ainda matas em São Paulo com árvores enormes.
Habitualmente, a tripulação de um desses batelões era composta por oito homens com prática na navegação dos rios, incluindo um piloto (que viajava na popa), um proeiro e seis indivíduos de muita força para remar contra a corrente, habilitados, inclusive, para o uso de varejões em lugar de remos, quando era preciso atravessar as perigosas corredeiras. Entendam os leitores que o número de tripulantes podia variar, ainda que oito fosse o padrão.
Ora, cada uma dessas embarcações devia levar, também, os respectivos monçoeiros e sua bagagem. Em alguns casos, até animais eram transportados. Vê-se, pois, quão árdua era a tarefa dos remadores que, não raro, eram escravos. Assim carregado, um  batelão deslizava pelo leito dos rios, rumo ao interior do Brasil, ficando a borda apenas uns poucos centímetros acima do nível da água. 
Era preciso coragem, mas a esperança de enriquecimento com o ouro levou muita gente a correr todos os riscos, que não eram relacionados somente à navegação. Havia também as doenças, a fome, os ataques de indígenas (paiaguás e guaicurus, entre outros), as chuvas torrenciais e, pequenos mas insuportáveis, mosquitos que tornavam a viagem uma rota infernal. 
Foi assim que se explorou e povoou uma parte considerável do interior do Brasil. Quem ia, queria enriquecer. Voltar? Era apenas incerteza.

Parte que resta de um batelão monçoeiro (Parque das Monções, Porto Feliz - SP)

(*) Os leitores não terão muita dificuldade em compreender a razão para a mudança de nome dessa localidade...


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domingo, 11 de agosto de 2013

Brincando de adivinhar

Quem de meus leitores será capaz de dizer, corretamente, qual o assunto da foto abaixo?


Não, não, senhores. Não se trata do degelo de um dos polos. É coisa bem diferente, asseguro-lhes!
É simplesmente um "detalhe" da poluição química aerada que cobria o rio Tietê na tarde do dia 17 de julho de 2013. Um observador desavisado, que olhasse a foto ao lado, mostrando o Tietê (em primeiro plano) e parte da cidade de Salto - SP, poderia até pensar que os extremos do inverno teriam feito o rio congelar...
Como o poluição do Tietê já foi alvo de várias postagens neste blog, parece-me desnecessário tecer maiores considerações. Basta apenas lembrar o quão hipócrita pode ser a sociedade contemporânea: faz-se um enorme barulho (quase sempre acertadamente) por causa de uma única árvore que eventualmente é cortada, e aceita-se, já quase sem estranheza, uma aberração dessas em um rio que atravessa quase todo o Estado de São Paulo. Os leitores devem conhecer outros exemplos.


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quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Os saltos do Piracicaba e do Tietê, há quase um século e atualmente

Vai aqui, hoje, uma postagem diferente do habitual. Os leitores verão, a seguir, duas fotos com quase cem anos - a primeira, do salto do rio Piracicaba (na cidade de mesmo nome), tendo M. Ferraz como fotógrafo, publicada na revista A Cigarra em 15 de maio de 1919 (¹), e a segunda, do salto do rio Tietê, (na cidade de Salto - SP), também publicada em A Cigarra, desta vez na edição de 30 de abril de 1918 (²). Não há, neste segundo caso, menção do nome do fotógrafo.
Cada uma dessas fotos quase centenárias está acompanhada de uma outra, atual, dos mesmos lugares (ainda que não com o mesmo ângulo de visão). Para tornar a coisa mais interessante, são dois exemplares de fotografia infravermelha.

Salto do Piracicaba






Salto do Tietê





Divirtam-se, senhores leitores, e tenham um ótimo dia!
Observação muito importante: O aspecto um tanto leitoso do rio Tietê não é obra do acaso, nem uma peça que nos prega a fotografia infravermelha. Trataremos da explicação desse "fenômeno" na próxima postagem.

(1) Ano VI, nº 112.
(2) Ano V, nº 90.


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quarta-feira, 6 de março de 2013

Cidadania, civismo, civilidade - Parte 2

Sobre o lixo lançado no rio Tietê, ou um retrato da estupidez da espécie humana


Quem percorre a SP 312 (ou Estrada-Parque, ou ainda Estrada dos Romeiros) pode até se encantar com a paisagem, mas não precisa viajar muitos quilômetros (no sentido Itu - Santana de Parnaíba) para dar-se conta de que os maus hábitos da humanidade não estão, de modo algum, ausentes. Basta chegar até a barragem de Itu.  
 

Ora, alguém dirá, o que há de errado aí? É simples, vem com a água:


Pode até parecer divertido tentar contar quantos tipos diferentes de embalagens, e outros objetos (até partes de um carrinho de bebê!) podem ser encontrados, mas a verdade é que isso não tem graça nenhuma.
Primeiro, é preciso lembrar que essa quantidade de porcarias é, em parte, resultado do consumo desenfreado, que não leva em conta o fato de que, mais algum tempo, e a humanidade estará instalada entre montanhas de lixo, os "aterros sanitários", "lixões", etc., como, a propósito, já acontece em alguns lugares.
Em segundo lugar, a maior parte desses objetos que "navegam" pelo Tietê deveria ter sido encaminhada para reciclagem. Mas, como todo mundo sabe, isso não faz parte do quotidiano da maioria das cidades brasileiras.
Além de tudo isso, é preciso assinalar que jamais o lixo deveria ser jogado, quer no próprio rio, quer em vias públicas. Neste último caso, irá acabar entupindo as galerias de águas pluviais, o que contribui muito para inundações em épocas de chuvas fortes (embora isso não explique, isoladamente, todo o problema, mas serve para lembrar que, às vezes, haverá gente afetada por enchentes que fez sua parte para que elas ocorressem, ainda que muitos cidadãos conscientes, que não lançam o lixo em qualquer lugar, também sofram pelos erros alheios). Das galerias, acabará indo para os rios - isso sem falar no que é lançado diretamente nos próprios cursos d'água.
Então, que os senhores cidadãos, quer governados, quer governantes, estejam cientes de suas responsabilidades, tanto na aplicação de políticas educativas sobre o consumo responsável, quanto no desenvolvimento de um programa efetivo de reciclagem, o que não dispensa ninguém da obrigação de nunca, nunca mesmo, espalhar lixo em local indevido.


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domingo, 4 de março de 2012

Avanhandava

Quem, no século XVIII, se atrevia a empreender a rota monçoeira que ia, partindo de Araraitaguaba (Porto Feliz), até Cuiabá, tinha de enfrentar uma série de obstáculos. Além da longa viagem, dos ataques de mosquitos, carrapatos, onças e outras feras de diversos tamanhos, da fome como ameaça constante, dos possíveis confrontos com indígenas - o que já seria suficiente para demover a maioria das pessoas de uma rota assim - havia a transpor nada menos que cento e treze cachoeiras (¹), algumas maiores, outras menores, quase todas perigosas, não sendo fato raro encontrar, enroscado às raízes de árvores das margens dos rios, algum cadáver de monçoeiro que se afogara na perigosa travessia.

Salto do Avanhandava, de acordo com Hércules Florence (⁴)

Todavia, dentre todas essas cachoeiras, havia uma que, só de ser mencionada, provocava calafrios nos viajantes: era o Salto do Avanhandava, no rio Tietê. Para transpor esse espetacular obstáculo era preciso muito trabalho, tanto de livres quanto de escravos, já que todas as canoas precisavam ser descarregadas para transporte por terra, em meio ao mato que circundava as margens. Um método tão engenhoso quanto antigo era empregado para possibilitar a realização da penosa tarefa: canoas e batelões eram rolados sobre trilhos feitos de toras de madeira, que a espessa floresta que margeava o Tietê provia.
Duas descrições nos darão uma boa ideia do que era o Avanhandava, lugar no qual a natureza fazia uma associação espantosa entre beleza e perigo. O primeiro relato vem do sargento-mor Teotônio José Juzarte, que empreendeu a rota do Tietê em 1769:
"É este Salto de Avanhandava uma obra da natureza cuja altura excede a cinquenta braças que despenhando-se por ele copiosas águas ao ponto que faz uma agradável vista, e figura, causa pavor, e medo, porque fazendo várias figuras, em umas partes à imitação de degraus de sepulcro, em outras fazendo vários redemoinhos pendurados pelo ar, em outras formando grossas e dilatadas fontes à maneira de chafarizes que é tal a bulha que para se ouvirem os homens uns aos outros é necessário gritar, além disto se experimenta nesta paragem um granizo continuado à maneira de chuva, que levanta pela monstruosidade de águas que se despenham seu peso, e sua altura, que caindo em um dilatado espaço que faz embaixo deste salto em o qual são tão grandes as ondas que ninguém as pode penetrar." (²)
O segundo depoimento é de Hércules Florence, desenhista da Expedição Langsdorff que passou pelo local em 1826:
"O salto de Avanhandava é uma bela e majestosa catarata. Corta o rio segundo uma linha oblíqua, de modo que a víamos bem de frente. Sua largura pode ser de 300 braças, a altura de 40 pés, o que, com a inclinação do álveo, antes e depois da queda, dá os 60 pés entre o porto superior e o inferior. À direita veem-se as águas se precipitarem entre a margem umbrosa, uma ilhazinha coberta também de árvores e uns grandes penedos. Forma-se, pois, duas gargantas por onde atiram-se as massas líquidas em tal agitação e revolvimento de espumas, que densas nuvens de vapores se erguem com neblina cerrada. As águas que caem pelo lado do grande maciço de rocha não são tão revoltas: milhares de cascatinhas divididas por pontas de rochedos constituem um anfiteatro de pedra riscado por fios d'água, alva como neve.
O grande maciço não se prende à margem esquerda. De permeio a eles fica uma ilha, e no intervalo lançam-se, espumantes e furiosas, espadanas de água, que se desfazem em vapores." (³)

Salto do Avanhandava, em imagem de 1920 (⁵)

As diferenças de abordagem nos dois trechos acima devem-se, naturalmente, às distintas perspectivas de seus autores. O primeiro, Juzarte, enfrenta a fúria do salto com preocupação, diante da responsabilidade de ter de passar o Avanhandava com sua gente, que conduz em viagem repleta de contratempos pelo Tietê, para ir povoar uma difícil área de fronteira; já Hércules Florence lança à paisagem seu olhar de artista, buscando na imensa massa de água o equilíbrio estético, a perspectiva correta, que almeja refletir em seus desenhos. Os dois, cada um a seu modo, deixaram um testemunho precioso de um espetáculo que desapareceu. À semelhança de Sete Quedas, hoje sob as águas de Itaipu, o Salto do Avanhandava foi engolido pela represa da Usina Hidrelétrica de Nova Avanhandava. Restam apenas o nome e as imagens do passado, três das quais estão nesta postagem.

Outra imagem do Avanhandava, também de 1920 (⁶)

(1) Segundo o Padre Ayres de Casal, em Corografia Brasílica:
"...das cento e treze, que os navegantes encontram de Porto Feliz até Cuiabá."
(AYRES DE CASAL, Manuel. Corografia Brasílica  vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 271.)
(2) Citado em:
TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas 3ª ed., vol. 3. São Paulo: Melhoramentos, 1975, pp. 248 e 249.
(3) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 40.
(4) Ibid., p. 54. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) A CIGARRA, 15 de setembro de 1920.
(6) A CIGARRA, 1º de setembro de 1920.


terça-feira, 31 de janeiro de 2012

O lixo nas margens do rio Tietê e as sacolas plásticas de supermercado



A vista acima é bem bonita, não? Foi fotografada em janeiro deste ano, e mostra o rio Tietê como é visto por quem passa pela rodovia SP 312, também chamada Estrada-Parque (ou ainda Estrada dos Romeiros). A paisagem parece perfeita, com a serenidade do rio neste trecho emoldurada pela floresta. Entretanto, a realidade, observada, digamos, com lente de aumento, é muito diversa. Quem, na ocasião examinasse o lugar com cuidado, logo veria, agarrados às raízes das árvores, milhares e milhares de saquinhos plásticos, as famosas "sacolinhas de supermercado", cujo uso, desde o dia 25 de janeiro de 2012, se pretende oficialmente abolido no Estado de São Paulo.
Neste detalhe da primeira foto,
os pontos brancos 
junto à margem
são sacolas plásticas.
Ora, como é que esses sacos plásticos chegaram a uma área  escassamente habitada? Resposta simples: foram trazidos com as águas das chuvas abundantes nessa época do ano. Mãos absolutamente descuidadas e inconsequentes devem tê-los deixado em vias públicas, fazendo a enxurrada o restante do trabalho.
Discute-se ainda se a supressão dos saquinhos em supermercados resolverá o problema, já que eles ainda continuarão em uso em outros setores do comércio. Argumenta-se, também, que a decisão de não fornecer embalagens plásticas nos supermercados irá acarretar desemprego no setor de produção desses saquinhos. Por isso, não sabemos ainda se estamos ou não diante de uma solução para o problema, que, por outro lado, nem existiria, se um pouco de civilidade e educação ambiental convencesse os maus usuários a mudar de postura, minimizando o uso de saquinhos plásticos e, em nenhuma hipótese, deixando-os em qualquer lugar. De qualquer modo, houve prazo mais do que suficiente para uma adaptação, e só o tempo poderá mostrar os verdadeiros resultados.

*******

No ano passado, durante o feriado de Corpus Christi, passei por uma pequena cidade do interior de São Paulo, na qual a população estava dando os últimos retoques nos tapetes de rua para a procissão. Estacionei, desci e fui percorrer algumas quadras, para ver o trabalho que se fazia - é manifestação popular interessante, variando a qualidade do trabalho de acordo com a habilidade de quem executa a tarefa. Pois bem, em meio a uma longa extensão de tapetes de temática sempre religiosa e sem grandes novidades, encontrei este aqui, diferente, é verdade, mas não despropositado:


Achou que eu havia mudado de assunto? De jeito nenhum! O fato é que os artistas anônimos desse tapete deram seu recado: Afinal, que qualidade de vida queremos para este nosso mundo? Por mais que se diga que só temos este planeta para habitar, a degradação ambiental persiste, tanto por parte de indivíduos como por grandes conglomerados industriais e, embora isso não seja nenhuma novidade no Brasil (*), chega a ser surpreendente que se fale tanto no assunto e, ao mesmo tempo, se trate as implicações práticas a ele relacionadas com tanto descaso. A questão dos saquinhos plásticos é apenas uma parte, até bem pequena, do problema. Os resultados, no entanto, são catastróficos. Basta olhar para as margens do Tietê.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Animais na História do Brasil (Parte 6): A capivara

"O sol deitou-se, e de novo se levantou no céu. Os guerreiros chegaram aonde a serra quebrava para o sertão; já tinham passado aquela parte da montanha, que por ser despida de arvoredo e tosquiada como a capivara, a gente de Tupã chamava Ibiapina."
                                                                                                                          José de Alencar, Iracema

Hans Staden descreveu a capivara como sendo um animal que podia viver tanto na água como sobre a terra. Tinha, segundo ele, o tamanho superior ao dos cordeiros, a cabeça parecida com a de uma lebre e orelhas curtas, pernas altas proporcionalmente ao corpo, pelo escuro, três unhas em cada uma das patas e, ressaltava, a carne semelhante à de porco. É recorrente, em diversos autores, a visão dos animais meramente como caça, para alimentação, fato a que já me referi nas postagens anteriores.

Capivara pastando à margem de um lago

Compelido a viajar pela rota das monções em 1751, o Conde de Azambuja, D. Antônio Rolim, deixou anotada uma observação sobre a caça às margens do Tietê:
"De caça de pele neste rio só pacas e capivaras. As primeiras são do tamanho de um leitão, com os pés curtos, o pelo como de cão pardo-escuro. Das outras o feitio é de rato, principalmente o da cabeça; o pelo na aspereza é de porco, mas pardo; são do tamanho de um marrão, e o gosto não é bom; a paca sim é mui gostosa." (¹)
Os leitores podem recordar-se de que, em postagens anteriores desta série, outros viajantes relataram uma diversidade bem mais significativa de animais "caçáveis" às margens do mesmo Tietê. O que teria ocorrido em tão breve intervalo de tempo, fazendo com que os animais desaparecessem? Talvez seja possível aplicar também neste caso as palavras do Padre Ayres de Casal, ao referir-se à desaparição de aves chamadas guarás no Maranhão:
"As espingardas têm feito maior destruição nestes viventes em três séculos do que as taquaras dos indígenas em toda a antiguidade." (²)

(1) TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas tomo 3, 3ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 1975, pp. 201 e 202.
(2) Corografia Brasílica, vol. 2, 1817, p. 263.


Veja também:

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Araraitaguaba, o porto feliz das monções - Parte 2

Esta postagem, leitor, será antes fotográfica que palavrosa. A ideia aqui é dar uma visão do estado atual do antigo porto de Araraitaguaba (veja postagem anterior), como se observa no Parque das Monções, em Porto Feliz.
Nessas paragens o Tietê corre tranquilo, daí a escolha do lugar para ponto de partida das arriscadíssimas monções. Era, por assim dizer, um consolo para as tremendas dificuldades que, de qualquer maneira, seriam enfrentadas na viagem até Cuiabá, o que incluía as muitas cachoeiras, a falta de suprimentos ao longo do caminho, as doenças tropicais, o confronto com indígenas, só para mencionar alguns dos obstáculos que se opunham aos monçoeiros.


Curiosamente, hoje chama a atenção a quantidade de cachorros que perambulam pelo Parque das Monções. Registrei dois deles. O primeiro, a que denominei "guardião do Monumento às Monções", dormia serenamente em seu posto, logo abaixo do Monumento, como se vê na foto abaixo:


Um outro (vou chamá-lo "guardião do rio Tietê") resolveu dar-me a honra de sua companhia, escoltando-me voluntariamente em boa parte do tempo em que andei pelo Parque. Corajoso, vigia o rio e não receia beber de suas águas. Haja coragem, mesmo!


Vale dizer que chega a ser surpreendente a vitalidade do rio Tietê, a despeito das inumeráveis agressões de que é alvo. No leito do rio, repleto de lixo que a corrente arrasta, ainda se veem tartarugas e aves. Às margens, flores emprestam uma certa magia ao lugar.




Findo o passeio, o visitante, que  porventura haja descido a vasta escadaria do Parque com entusiasmo, acaba por dar-se conta de que terá de enfrentar cada degrau mais uma vez. Escada acima, claro, no ritmo das remadas dos canoeiros das monções...

terça-feira, 26 de julho de 2011

Araraitaguaba, o porto feliz das monções - Parte 1


Araraitaguaba era o nome do porto, no rio Tietê, de onde partiam as monções que, principalmente no século XVIII, iam em direção às minas de Cuiabá. O nome indígena "Araraitaguaba" ou "Araritaguaba" significa, segundo alguns, "lugar onde as araras afiam o bico", ou, segundo outros, "lugar onde as araras pousam", ou ainda "lugar onde as araras fazem ninhos". Seja lá, no entanto, qual for o significado, remete necessariamente ao paredão rochoso que acompanha aquele trecho do Tietê, no município de Porto Feliz, Estado de São Paulo.
Monumento em homenagem às monções
(Porto Feliz - SP)
É, sem dúvida, um belo lugar, onde está o Parque das Monções, com o monumento inaugurado em 1920, ocasião de um certo entusiasmo pela História do Brasil, em parte decorrente da proximidade das celebrações do primeiro centenário da independência do Brasil. Junto ao rio, canoas de construção recente oferecem ao visitante uma referência às expedições dos que arriscavam a vida em perseguir a miragem do enriquecimento rápido nas minas de ouro.
Duraram as monções um tempo relativamente breve, tanto em virtude dos perigos que a viagem implicava quanto pelo fato de que a abertura de um caminho terrestre, longo, é verdade, mas um pouco menos arriscado, acabou por encerrar o ciclo mais brilhante dessas navegações. Por volta de 1822 Saint-Hilaire assinalou que as monções estavam restritas ao âmbito militar (¹) e, uns poucos anos depois, Hércules Florence anotou em seu diário da Expedição Langsdorff que, após um breve renascimento, as monções comerciais estavam, outra vez, caindo em desuso (²).
Sim, as monções findaram, e até mesmo o Tietê já não é o mesmo. Mas isso será assunto das próximas postagens.

Embarcações à margem do rio Tietê no local do antigo porto de Araraitaguaba

(1)
"Araraitaguaba"
"Há muito tempo, aliás, que os paulistas aproveitavam o rio Tietê, iniciando a gigantesca e perigosa navegação que os conduzia a Cuiabá e, se por ocasião de minha viagem, o comércio havia abandonado a via fluvial [...], o governo ainda da mesma se servia, algumas vezes, para transportar até Mato Grosso tropas e munições de guerra."
SAINT-HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo
Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 194
(2) "A navegação por Camapuã vai sendo muito menos frequentada depois que se abriu o caminho por terra, porém as remessas do governo têm continuado a seguir pelos caudais, não só em vista da menor despesa, como por ser o único meio de transportar artilharia. Alguns negociantes, que em outras épocas tinham tirado lucro dessas viagens, recomeçaram a fazê-las em razão da carestia das tropas de animais."
FLORENCE, H. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829
Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 82
"Camapuã é uma fazenda pertencente a uma sociedade que tem sua sede em São Paulo. Em estado de decadência desde que a navegação dos rios vai sendo abandonada pelos negociantes, conta perto de 300 habitantes, dos quais é a terça parte escravatura dos sócios."
Ibid., p. 66