quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

A Convenção de Itu

Quem olha da rua para este prédio em Itu (¹), interior de São Paulo, não conhecendo seu significado, dificilmente lhe dará muita atenção. Aí, porém, aconteceu em 18 de abril de 1873 a Convenção de Itu, que impulsionou o movimento de luta pela implantação de um regime republicano no Brasil, mediante a óbvia supressão da monarquia que vigorava desde a Independência. .


Local da Convenção de Itu, atualmente Museu Republicano

Embora tenha atraído republicanos de várias localidades, quase todas da Província de São Paulo, o evento, em si, nada teve de estupendo, se comparado ao que acontece, atualmente, em convenções partidárias. Para a época e para as proporções do local em que ocorreu, contudo, a Convenção foi grandiosa. É difícil até de crer que lá coubesse, simultaneamente, toda a gente que compareceu. Como as condições para viagens fossem, nesse tempo, ainda difíceis, entende-se que muitos convencionais tenham vindo de cidades próximas, como Sorocaba, Porto Feliz, Indaiatuba, Piracicaba e Campinas, por exemplo. Nas palavras de Affonso de E. Taunay, "depois de uma reunião preparatória a 17 de janeiro de 1872, efetuou-se no ano seguinte, a 18 de abril e em Itu, a tão conhecida Assembleia a que se deu o nome de Convenção de Itu. A ela concorreram cento e trinta e três representantes de dezesseis municípios" (²). Esses representantes eram todos do sexo masculino - o senso comum da época ditava que mulheres não deviam dar palpite quando o assunto era política (o que não significa, porém, que eventualmente não o fizessem, e que não tivessem opiniões próprias).
Depois de anos de guerra contra o Paraguai, o Brasil estava em paz, ao menos no âmbito externo. No entanto, o conflito armado, a despeito da vitória brasileira, expôs fraquezas do Império e acendeu o debate em torno da questão do regime que deveria ser adotado no Brasil. Sim, já havia republicanos antes da guerra, mas agora o assunto ganhava outra proporção. Através da imprensa e nos clubes republicanos que foram surgindo, argumentava-se que o Brasil estava em descompasso com o restante da América, por ser Império em meio a Repúblicas. Pesava, também, o aspecto econômico, porque alguns setores da sociedade entendiam que as velhas estruturas imperiais já não eram capazes de enfrentar com sucesso os desafios impostos pela conjuntura internacional em relação aos produtos brasileiros de exportação, de natureza agrícola e/ou extrativista. Portanto, não é surpresa que, entre os que compareceram à Convenção, os cafeicultores fossem maioria. 
A partir da Convenção de Itu, com a fundação do Partido Republicano Paulista (PRP) e com o surgimento de partidos semelhantes em outras províncias, o movimento pelo fim do Império ganhou corpo, passou a frequentar conversas nas ruas e nas casas e, finalmente, resultou na proclamação da República em novembro de 1889, embora por um caminho algo diferente daquele era a  imaginação provável dos senhores convencionais de 1873. 

(1) Atualmente, Museu Republicano.
(2) TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 308.


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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Mentiras de guerra

Já imaginaram, leitores, se os políticos falassem sempre a verdade? Ou, quem sabe, se os comandantes militares, durante uma guerra, jamais ousassem proferir uma simples mentirinha? Suponham, agora, essa síndrome da verdade nas relações diplomáticas... 
Durante uma batalha na Guerra do Peloponeso (foi Tucídides quem contou), Demóstenes teve a ideia de mandar os aliados messênios para a vanguarda das forças por ele comandadas, não porque fossem julgados mais aptos ou mais valentes que os demais soldados, mas porque seu dialeto, sendo o mesmo dos dórios a quem enfrentavam, tornaria possível enganar as sentinelas inimigas (¹). Mais da Guerra do Peloponeso: para Brasidas, um comandante espartano, as astúcias mais notáveis em uma guerra seriam aquelas que, causando o maior dano possível aos adversários, resultassem em máximo benefício para os aliados (²). 
Uma mentira foi útil aos romanos quando quiseram conquistar a ilha de Creta. Aneu Floro, em Epitome rerum Romanarum, Livro III, afirmou: "A guerra de Creta, se admitirmos a verdade, nós [os romanos] a fizemos  apenas pela cobiça de vencer aquela nobre ilha" (³). Mas era necessário um pretexto! Alegou-se que Creta era suspeita de haver favorecido Mitridates, rei do Ponto, na guerra contra Roma. Não passava de conversa fiada, mas, com base nela, proclamou-se a vingança. No decorrer dos combates, muitos cretenses, percebendo a derrota como inevitável, ingeriram veneno, porque eram devidamente conhecidas as consequências para os que caíam prisioneiros dos romanos.
Consta ter acontecido no Século XVII, durante a resistência à ocupação de Pernambuco por holandeses: o general Matias de Albuquerque, sabendo que, se a soldadesca desconfiasse que a pólvora estava por acabar, desertaria de vez, resolveu adotar um pequeno expediente, que Duarte de Albuquerque Coelho registrou em suas Memórias Diárias, informando que o comandante "somente tinha consigo dezesseis libras de pólvora, ainda que tinha quatro barris de areia a que os soldados faziam guarda, como se fossem de pólvora. Toda sorte de manha era necessária por estar em campo aberto tendo à frente um inimigo poderoso" (⁴). Mais tarde, com a maré da guerra se movendo a favor dos luso-brasileiros, outro comandante adotou o seguinte disfarce, com a intenção de fazer crer aos inimigos que seus comandados eram portugueses treinados para a guerra, e não grupos de indígenas sem prática de combate segundo os preceitos usuais entre europeus: "[...] mandou intrometer entre os soldados brancos muitos índios com chapéus e carapuças, para que parecessem todos portugueses. O que visto pelos holandeses, e a resolução dos nossos, levantaram bandeira de paz e se entregaram com artilharia, mosquetes, escravos e mais fazendas [sic], que havia na fortaleza, que de todo foi arrasada" (⁵).
Vejam, meus leitores, que mentiras e outras trapaças sempre foram admitidas, e até elogiadas, se fosse para vencer uma guerra. Por quê? Ora, porque muitas vezes funcionavam. A ética da verdade, tão valorizada nos tempos de paz, conforme ensinada às crianças e que se esperava dos cidadãos de bem, era abandonada nos campos de batalha. Como contrapartida, o engano empregado para vencer o inimigo, defender ou conquistar território e capturar um rico botim era glorificado como virtude, até sob a alegação de que poupava vidas. Vocês acham que mudou alguma coisa em nosso século?

(1) Cf. TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, Livro III.
(2) Ibid., Livro V.
(3) FLORO, Aneu. Epitome rerum Romanarum, Livro III. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) COELHO, Duarte de Albuquerque. Memorias Diarias de la Guerra del Brasil. Madrid: Diego Diaz de la Carrera, Impressor del Reyno, 1654. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) MORAES, José de S.J. História da Companhia de Jesus na Extinta Província do Maranhão e Pará. Rio de Janeiro: Typographia do Commercio, 1860.

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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Por que escravas vendeiras não tinham permissão para trazer mercadorias perto das minas

Quitandeiras, fossem elas escravas ou livres, enfrentavam pesadas restrições ao trabalho no Distrito Diamantino. Isso acontecia porque se supunha que elas eram parte da engrenagem que permitia o extravio ou contrabando de diamantes, considerados monopólio da Coroa pela legislação do Século XVIII.
Sabe-se, contudo, que as quitandeiras, também chamadas vendeiras, não eram muito apreciadas pelas autoridades das minas, inclusive nas áreas em que se extraía ouro. Por quê?
Um bando passado em 22 de março de 1728 determinava:
"Para que os escravos não roubem a seus senhores, tentados pelas negras vendeiras, de tabuleiro à cabeça, ordeno que se lhes sequestre a mercadoria, a fim de que não apareçam de novo. Se alguém desses escravos se aproximar, como de um tendeiro, ou de um taverneiro, deverá ser preso por qualquer oficial da milícia e em seguida metido na cadeia." (*)
A partir disso podem ser feitas várias considerações. Querem ver, leitores?
1. As quitandeiras ou vendeiras nem sempre eram escravas, embora muitas fossem. Havia vendeiras livres, que trabalhavam para si mesmas, mas havia também as cativas, que vendiam nas ruas aquilo que lhes era fornecido pelo respectivo senhor ou senhora.
2. Um tabuleiro de quitandeira ou vendeira podia ter uma infinidade de coisas: frutas, verduras, pães, doces, salgados, biscoitos, até cachaça... Entende-se com facilidade por que motivo sua presença era uma tentação para os escravos, geralmente submetidos a condições ruins de alimentação.
3. Devido ao problema crônico da falta de víveres nas minas, as vendeiras, ainda que praticassem preços exorbitantes, não deviam ter muita dificuldade em encontrar compradores para suas mercadorias.
4. Às vezes um escravo podia dispor de algum recurso próprio, mas não era descabido imaginar que surrupiasse um pouco de ouro em pó do local em que trabalhava para comprar mercadorias oferecidas pelas vendeiras. Pode-se deduzir, portanto, que o bando de 22 de março de 1728 fosse passado, ao menos em parte, em consequência de reclamações de mineradores proprietários de escravos.
5. A presença de uma vendeira junto ao local de mineração já deveria, por si, provocar distração entre os trabalhadores, tirando-lhes a atenção da tarefa que se esperava que fizessem.
6. O próprio pagamento de mercadorias com ouro em pó era proibido. Todo o ouro encontrado deveria ser levado a uma casa de fundição, transformado em barras com o selo real e quintado. Só depois é que poderia circular.
7. Finalmente, se o ouro em pó, ainda que em pequena quantidade, fosse usado nesse tipo de comércio, os reais quintos a ele relativos dificilmente seriam arrecadados, constituindo-se, pois, em um problema adicional para as autoridades coloniais.
Então, se as vendeiras atrapalhavam a mineração e, por consequência, a arrecadação dos quintos, era mais fácil afugentá-las com ameaças aterradoras. Difícil é saber até que ponto funcionavam.

(*) Cf. ESCHWEGE, Wilhelm Ludwig von. Pluto Brasiliensis. Brasília: Senado Federal, 2011, p. 163.


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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Bebês espartanos

Mais que filhos de seus pais biológicos, os bebês que nasciam em Esparta eram considerados filhos da cidade-Estado. Essa premissa é fundamental para que se compreenda a história horripilante que virá a seguir. Pode também ser levada em conta para que se veja, sem margem a dúvidas, que ideias de eugenia ou "aperfeiçoamento da raça" não nasceram em cérebros do Século XIX, com aplicação em larga escala no Século XX - são muitíssimo mais antigas.
Quando um bebê nascia em Esparta, disse Plutarco (¹), "não se dava nem ao pai e nem à mãe autorização para criá-lo a seu gosto, sendo antes levado pelo pai ao lugar de reunião do Conselho, onde se assentavam os mais idosos [...]" (²). Lá acontecia uma inspeção rigorosa, cujo objetivo era verificar se a criaturinha recém-chegada ao mundo tinha, sob o ponto de vista das leis de Esparta, algum defeito que a incapacitasse para a carreira das armas. Ora, se o bebê era bonito e robusto, bem estava. Mas, se era considerado fraco e doentio, sua vidinha seria bem curta:
"Quando se lhes apresentava [ao Conselho de Anciãos] um bebê feio, franzino ou com alguma deformação dos membros, levavam-no imediatamente ao lugar [...] em que devia ser jogado, que se localizava junto ao monte Taigeto, que era alto e repleto de asperezas, como se fora um rochedo partido. Esse costume, que poderia parecer cruel, era praticado porque, se percebiam que desde o nascimento faltava [aos bebês] as características naturais que os fariam semelhantes aos seus concidadãos [...], não seriam úteis nem a si mesmos e nem à cidade. Para que não se tivesse trabalho em criar algum que depois causasse dano ou infortúnio à cidade, [os espartanos] achavam correto que, logo após o nascimento, fossem mortos os que tivessem defeitos, em lugar de consentir que crescessem e, com o passar do tempo, viessem a ser ainda maiores suas incapacidades." (³)
Será que estou ouvindo um silêncio lacônico? 
O menino que passava pela inspeção dos anciãos e era aprovado voltava para casa nos braços do pai, era banhado em vinho (um costume espartano) e criado pela família até que tivesse sete anos. Nesse ponto, a cidade-Estado assumia a sua educação, para fazer dele um guerreiro temido em toda a Grécia. 

(1) c. 45 - 125 d.C.
(2) PLUTARCO. Vitae parallelae. Os trechos dessa obra aqui citados foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Ibid.


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