quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Os supersticiosos romanos e a crença em presságios

Os antigos romanos (como muitos outros povos, e não só do passado) tinham a mania de querer adivinhar o que é que o futuro lhes reservava. Para isso, contavam com áugures, arúspices e outras figuras sacerdotais que, pela observação das vísceras de animais sacrificados, do voo dos pássaros e de outras coisas mais, tinham a pretensão de fazer saber aos crédulos cidadãos da poderosa Roma quais eventos estavam à sua frente.
Pois bem, leitores, há um episódio engraçado, e é até difícil acreditar em sua autenticidade, mas que, verdade ou não, dá uma boa medida do que eram as crendices romanas em presságios. Lá vai, então.
Houve um comandante romano que, antes de ir a um combate, resolveu consultar os frangos sagrados (sim, havia mesmo frangos sagrados em Roma, e eram sustentados pelo Estado). Sucede que, diante do alimento que lhes foi oferecido, as aves não mostraram o menor apetite (pior para elas, como se verá). Ora, esse fato era considerado um presságio horrorosamente desagradável. Que fazer?
A saída encontrada pelo pragmático comandante foi bem pouco ortodoxa, em se tratando de respeito às tradições (coisa muito valorizada em Roma): mandou que as aves fossem lançadas ao mar, já que, se não tinham fome, talvez quisessem água...


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terça-feira, 26 de setembro de 2017

Produtos agrícolas cultivados por escravos para consumo próprio e para venda

Muitos proprietários de escravos tinham por costume ceder a seus cativos um pequeno lote, no qual podiam cultivar aquilo que quisessem. Essa prática era conveniente para os senhores, pois:
  • Suplementava a alimentação dos escravos sem que o proprietário tivesse qualquer despesa com isso;
  • Mantinha os escravos ocupados nas poucas horas vagas, nos domingos e nos feriados, evitando que se encontrassem para planejamento de alguma rebelião ou fuga;
  • Se os escravos eventualmente obtinham uma produção significativa, vendiam-na por preço módico para o próprio senhor.
Os cultivos usualmente praticados obedeciam às características regionais relacionadas a condições de clima e solo, mas alguns itens eram recorrentes, como milho, mandioca, abóbora, feijão e hortaliças. Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, o segundo Barão de Paty do Alferes, recomendou, em sua Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro (¹):
"O fazendeiro deve, o mais próximo que for possível da sede da fazenda, reservar uma porção de terra onde os escravos façam as suas roças, plantação de café, milho, feijões, bananas, batatas, carás, aipim, canas, etc. Não se deve, porém, consentir que a sua colheita seja vendida a outrem, e sim a seu senhor, que deve fielmente pagar-lhes por um preço razoável: isto para evitar extravios e frequências das tabernas." (²)
A despeito desse conselho dado aos senhores, havia escravos que vendiam seu pequeno excedente quando, onde e para quem queriam. O caso é que alguns senhores mantinham grande vigilância quanto a este assunto, enquanto outros não se importavam com a questão. Cabe também assinalar, em rápida explicação, que muitos fazendeiros votavam ódio mortal às tabernas existentes na beira das estradas que passavam perto de suas propriedades agrícolas porque, além de convidarem à embriaguez dos escravos, incapacitando-os temporariamente para o trabalho, era também nelas que, não raro, as fugas e rebeliões eram combinadas.
Resta considerar o que é que os escravos faziam com o dinheiro que recebiam pela venda de sua pequena produção agrícola. Responde Lacerda Werneck:
"Este dinheiro serve para os escravos haverem o tabaco e o fumo, de que são grandes consumidores, comprarem a comida de regalo, roupa fina, a de sua mulher se são casados, e de seus filhos." (³)
Escravo pronto para ir ao trabalho (⁴)
Fica a pergunta: Não seria demais esperar que escravos, submetidos a condições de vida aviltantes, se comportassem como operosos trabalhadores livres, poupando a pequena renda que obtinham e gastando apenas em artigos realmente úteis, para si mesmos e para suas famílias? Aliás, em relação à maior parte do tempo no qual prevaleceu o trabalho compulsório no Brasil, falar em famílias de escravos é um grande problema - não porque elas não existissem, mas porque o sistema em nada favorecia a estabilidade e a formação de vínculos duradouros entre cativos.
Uma questão sempre debatida vincula-se aos escravos que, economizando por muitos anos, acabavam por ter recursos suficientes para comprar a própria liberdade. Ora, isso não era impossível, e, às vezes, acontecia. Não era, porém, fato corriqueiro, uma vez que não era fácil, apenas plantando e vendendo modestos excedentes por baixo preço, chegar a ter tanto quanto o valor de mercado de um escravo. Se excetuarmos a fase final da escravidão (após 1870), quando estava claro que a abolição seria apenas uma questão de tempo, o trabalho mais favorável às manumissões não estava na agricultura, e sim na mineração, porque era aí que um escravo, tendo a sorte de achar grande quantidade de ouro ou diamantes valiosos, acabava sendo premiado com a liberdade. Há registro de cativos nessas condições que, uma vez libertos, acabaram, eles próprios, também mineradores e senhores de escravos.

(1) A Memória do Barão de Paty do Alferes teve a primeira publicação no ano de 1847.
(2) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, p. 40.
(3) Ibid.
(4) RIBEYROLLES, Charles. Brazil Pittoresco. Paris: Lemercier, 1861. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 


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quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Quando a Corte viajava

Lembram-se de que nos contos de fadas os reis saíam a passear, de vez em quando, por seus domínios? Pois isso também acontecia na vida real. Os motivos variavam, desde uma simples excursão de lazer a uma fuga disfarçada, em situação de guerra. Foi assim, durante séculos, em quase todas as monarquias.
As leis portuguesas tinham instruções relevantes quando o assunto era alguma viagem do rei e seu séquito de nobres e funcionários. Lemos no Livro I das Ordenações do Reino (¹) que competia ao almotacé-mor providenciar que os caminhos por onde passaria o cortejo real estivessem em bom estado:
"Ao almotacé-mor pertence mandar limpar e refazer os caminhos, calçadas e pontes nos lugares onde estivermos [...]." (²)
Vejam, leitores, que a necessidade de fazer arranjos nas áreas em que o rei poria as vistas sinaliza que, muito provavelmente, as coisas não andavam, de ordinário, em perfeita ordem. Vale a mesma ponderação quanto ao regulamento sobre a limpeza dos lugares públicos, outra atribuição do almotacé-mor:
"Mandará apregoar, tanto que a algum lugar cheguemos (³), que tenham os vizinhos as praças e ruas limpas, e que ninguém lance sujidade alguma nos ditos lugares, sob a pena que lhe bem parecer, não passando de quinhentos réis, e mais serem obrigados a pagar o que custar limpar a dita sujidade." (⁴)
Cumpre reconhecer que, tendo em conta as condições de higiene vigentes nas vilas e cidades em séculos passados, a instrução não era descabida. Havia, porém, muito mais a ser feito, antes que os reais pés de sua real majestade chegassem a algum lugar. Afinal, a Corte não fazia fotossíntese, sendo, portanto, necessário prover, com antecedência, os alimentos que garantiriam a sobrevivência de tão indispensáveis figuras. Mais trabalho para o almotacé-mor:
"O almotacé-mor saberá de nós os lugares por onde e para onde havemos de ir, para mandar recado a cada um deles, que façam prestes mantimentos em tal maneira, que quando chegarmos, haja em abastança o que for necessário." (⁵)
Finalmente, em recordação de que nesses tempos o peso do transporte recaía (literalmente) sobre cavalos, mulas e outros seres de quatro patas, era preciso que houvesse, de prontidão, palha suficiente para os animais:
"Em cada lugar onde formos, [o almotacé-mor] haverá logo do escrivão da Câmara [...], e saberá parte de todos os palheiros, e por seus alvarás mandará dar palha aos da nossa Corte [...]." (⁶)
Abusos, porém, eram formalmente proibidos:
"No dar da palha haverá respeito à estada, que aí houvermos de estar, segundo a que na Comarca houver, dando a cada besta para vinte dias uma rede, e pagar-se-á ao dono da palha o que pelo almotacé-mor for taxado. E o azemel que tomar a palha sem alvará, ou sem a pagar, seja preso, e da cadeia pague quinhentos réis, a metade para quem o acusar, e a outra para o dono da palha." (⁷)
Ninguém faz leis para proibir o que jamais acontece, não é? Imaginem, então, quando a Corte atravessou o Atlântico para sua mais longa viagem...

Embarque de D. João para o Brasil, na visão de Giuseppe Gianni (⁸)

(1) Compilação de leis que regiam Portugal e seus domínios, publicada no começo do Século XVII. A maioria dessas leis vigorava há muito tempo. Neste blog é seguida a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(2) Ordenações do Reino, Livro I, Título XVIII, § 13.
(3) Percebam a insistência no uso do famoso "plural majestático".
(4) Ordenações, Livro I, Título XVIII, § 12.
(5) Ibid., § 3.
(6) Ibid., § 4.
(7) Ibid.
(8) O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 19 de setembro de 2017

Bandeiras de apresamento

Bandeiras de apresamento eram grupos de pessoas armadas (geralmente paulistas), que iam ao interior da América do Sul capturar indígenas para escravização. A princípio os ataques eram dirigidos contra aldeias cujos habitantes, sem consciência do perigo que corriam, ainda viviam segundo o estilo de vida tradicional entre populações ameríndias. Mais tarde, porém, bandos armados passaram a atacar também as missões, nas quais indígenas catequizados viviam em companhia de missionários, quase todos jesuítas
Haveria razões para essa mudança de estratégia?
Sim. Aqui estão, leitores, algumas delas:
  • As missões, reunindo catecúmenos provenientes de vários lugares, tinham, como regra, uma população consideravelmente maior que as aldeias indígenas comuns;
  • Tendo abandonado seu modo de vida tradicional, os indígenas das missões não costumavam andar armados (¹);
  • Indígenas das missões aprendiam, com os padres, técnicas agrícolas, além de vários ofícios (pedreiro, carpinteiro, alfaiate, etc.), e eram, portanto, considerados mais valiosos, quando escravizados.
O ataque maciço às missões do Guayrá começou em 1628, segundo depoimento do padre Antonio Ruiz de Montoya, célebre na defesa dos indígenas, tendo ido mesmo à Espanha protestar contra a injustiça que lhes era feita. Em suas palavras, foi assim que tudo aconteceu:
"Entrou esta gente [...] por nossas reduções, cativando, matando e despojando altares. Nós, três padres, fomos às suas cabanas e alojamentos, onde tinham já muita gente cativa, e lhes pedimos que nos dessem os que haviam aprisionado e que estavam, muitos deles, acorrentados. Gritaram como loucos frenéticos, dizendo: Prendam-nos, prendam-nos, que esses são traidores!, e juntamente dispararam alguns tiros de arcabuz, com que feriram oito ou nove índios que nos acompanhavam. Um deles caiu morto ali mesmo, de um tiro que lhe deram na coxa, e o padre Cristóbal de Mendoza saiu ferido de uma flechada. Prenderam o padre José Domenech, dizendo-nos [...] que não éramos sacerdotes, mas demônios, hereges, inimigos de Deus, e que pregávamos mentiras aos índios. Um deles apontou uma escopeta em direção ao meu peito, e eu abri a roupa para que, sem nenhuma resistência, o tiro entrasse." (²)
Não seria ainda dessa vez, no entanto, que um jesuíta iria tombar pela mão de um bandeirante. 
Montoya tem contra si o fato de que, ao passar metade de seu livro Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus contando suas aventuras e façanhas como missionário, narrou muita coisa que qualquer pessoa séria, com muito boa vontade, pode apenas reconhecer como vinda de um espírito crédulo, quando não ingênuo. Por outro lado, mesmo assumindo que houvesse algum exagero da parte do religioso, é inegável que integrantes de bandeiras de apresamento, depois das estripulias entre indígenas que viviam livres nas florestas, julgaram mais fácil e mais conveniente atacar as reduções - se não fosse assim, como explicar a existência de numerosa escravatura de origem indígena, que paulistas orgulhosos - como o genealogista Pedro Taques, por exemplo, autor da Nobiliarchia Paulistana - faziam questão de referir? Amador Bueno (o "Aclamado") tinha centenas de índios escravizados, convertidos à força:
"Teve grande tratamento e opulência por dominar debaixo de sua administração muitos centos de índios, que de gentio bárbaro do sertão se tinham convertido à nossa santa fé [sic], pela indústria, valor e força das armas, com que os conquistou Amador Bueno em seus reinos e alojamentos." (³)
Pedro Taques mencionou, ainda, que Manuel Preto chegou a ter novecentos e noventa e nove (!!!) índios escravizados; esse número, ainda que exagerado em mais de um sentido, não devia ser incomum, já que, também na Nobiliarchia Paulistana, o mesmo autor, falando de paulistas do Século XVII (⁴), afirmou que "muitos havia que possuíam debaixo de sua administração quinhentos, seiscentos e setecentos índios, que se ocupavam no trabalho da agricultura em copiosas searas de trigo, plantas de milho, feijão, legumes e nos algodoais".
Para além de tudo isso, vale ressaltar que em São Paulo ninguém escondia o fato de que paulistas invadiam missões para aprisionar índios, fazendo não poucos estragos em tais ocasiões. Pedro Taques registrou, entre vários outros, o caso do bandeirante Manuel Bicudo de Campos, que teria atacado missões não menos que vinte e quatro vezes, sem poupar nem mesmo os jesuítas. Certo dia, notando que os indígenas estavam prontos a lutar pela liberdade, sem mais delongas cortou o fio da existência ao missionário que os liderava: "[...] Fez pé atrás e tomando a sua arma de fogo fez tiro ao tal mestre de campo jesuíta (⁵), que ainda estava montado; e quando o corpo caiu do cavalo em terra, já a alma o tinha deixado." (⁶) 
Foi assim, uns através da catequese, outros à procura de ouro ou de gente para escravizar, que se explorou o território ainda desconhecido da América do Sul. Conforme reconheceu Pedro Taques, "sem o interesse do serviço dos índios não teriam feito os paulistas tão dilatadas e pasmosas jornadas pelo sertão, que ocasionaram os descobrimentos que hoje estão povoados" (⁷).

(1) Autoridades coloniais, quando precisavam de homens para lutar, podiam requisitar indígenas das missões; estes combatiam, porém, usando apenas as armas habituais entre ameríndios, e não com armas de fogo. Havia, inclusive, uma proibição quanto ao fornecimento de armas de fogo para indígenas, contra a qual lutavam os missionários, tendo em vista a necessidade de defesa contra os bandeirantes de São Paulo.
(2) MONTOYA, Antonio Ruiz de S.J. Conquista Espiritual Hecha por los Religiosos de la Compañia de Jesus. Madrid: Imprenta del Reyno, 1639. O texto citado é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Nobiliarchia Paulistana.
(4) Contemporâneos, por conseguinte, do padre Antonio Ruiz de Montoya.
(5) A fala de Pedro Taques sugere que ele próprio não tinha grande estima pelos jesuítas.
(6) LEME, Pedro Taques de Almeida Paes. Op. cit.
(7) Ibid.


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quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Caldo de carne para emergências

Lamento por decepcionar algum leitor neófito neste blog, mas não haverá aqui nenhuma receita culinária que seja útil para o Século XXI. O caso é outro, e deixo a explicação por conta de Lucas Rigaud, um cozinheiro famoso que esteve a serviço dos reis de Portugal. Encontramos em seu livro, publicado em 1780, cujo título é Cozinheiro Moderno ou Nova Arte da Cozinha (¹), a seguinte prescrição:
"Caldo em pastilhas, ou de conserva, para se transportar, ou por mar, ou por terra a países desertos em jornadas dilatadas; para comandantes de exércitos, governadores de praças sitiadas, cidades aflitas de peste e outros acidentes que podem sobrevir, e em que por nenhum dinheiro se pode encontrar nem galinha, nem carne." (²)
Portanto, meus leitores, nosso interesse, aqui, será apenas histórico, visto que não viajaremos por mar ou terra nos Séculos XVIII ou XIX, não comandaremos exércitos e não governaremos alguma cidade cercada por inimigos, tampouco estaremos em "cidades aflitas de peste" (assim esperamos) (³). Mas a receita, em si, é curiosa, porque nos dá uma boa ideia dos ingredientes manipulados por um chef da importância de Lucas Rigaud. Vejamos, então:
"Tome-se uma perna redonda de vaca, duas pernas de vitela [...], oito ditas de carneiro, quatro perus velhos, doze galinhas, seis galos e capões, duas dúzias de perdizes, quatro ou cinco arráteis de presunto limpo de ossos e gordura; todas estas aves limpas, vazadas e chamuscadas se deitem de molho, assim como também a carne das pernas de vaca e de vitela feita em postas grandes, sem gordura e sem ossos, e depois de tudo muito bem lavado e escaldado, deite-se em uma panela grande (⁴) ou caldeira cheia de água, e ponha-se ao lume a ferver um pouco [...]." (⁵)
Coragem, leitores! Vamos adiante. A seguir, recomendava-se que tudo fosse temperado com sal, pimenta, cravo-da-índia e gengibre, ficando a ferver por cerca de duas horas. Depois, era preciso adicionar, entre outros ingredientes, cenouras, alho-poró, cebolas, aipo e nabos, e estando tudo cozido, vinha o que poderíamos chamar de dupla filtragem e clarificação. Ia tudo novamente ao fogo para reduzir. Continuava Rigaud:
"Estando grosso [...], deite-se em cima de torteiras ou frigideiras de barro, mas que não fique de mais da grossura de um dedo, e deixe-se esfriar; depois de frio, corte-se em bocados iguais, e cada um do peso de uma onça (⁶), e ponham em tabuleiros ou em peneiras com folhas de papel por baixo, e metam-se a secar em uma estufa ou exponham-se por alguns dias ao vento norte; estando bem enxutos, embrulhem cada bocado em seu papel, e guardem-se em frascos de boca larga muito bem tapados." (⁷)
Vemos, portanto, quão trabalhoso era preparar esse "caldo de carne para emergências" em tempos anteriores à industrialização. Não imagino que alguém queira testar o processo, mas, para concluir, será interessante saber o que deveria ser feito por quem pretendesse utilizar o "produto":
"Quando suceder quererem fazer um caldo, desfaçam ou derretam em um quartilho de água fervendo uma onça ou onça e meia, se for necessário, desta composição, e segundo a pessoa que o quiser tomar o queira mais ou menos forte." (⁸)
Lembrem-se, meus leitores: Lucas Rigaud somente adicionou essa receita a seu livro porque devia ter a certeza de que poderia ser proveitosa; ele mesmo deve tê-la praticado uma e outra vez. Tudo isso pode soar como mera curiosidade, mas fornece, afinal, um parâmetro do que eram os procedimentos de cozinha em tempos agora distantes.

(1) Essa obra, publicada inicialmente em 1780, teve várias edições, de onde se pode medir o apreço com que foi acolhida.
(2) RIGAUD, Lucas. Cozinheiro Moderno ou Nova Arte da Cozinha 5ª ed. Lisboa: Typografia Lacerdina, 1826, p. 204.
(3) A blogueira é vegetariana; portanto, também não tem qualquer interesse em caldo de galinha ou carne para alimentação.
(4) Sábia recomendação!
(5) RIGAUD, Lucas. Op. cit., p. 204.
(6) Pouco mais ou menos de 30 g, dependendo do sistema empregado. 
(7) RIGAUD, Lucas. Op. cit., p. 205.
(8) Ibid.


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terça-feira, 12 de setembro de 2017

Fila indiana

Não se surpreendam, leitores: quando iam à guerra, indígenas andavam mesmo em fila indiana. 
Gabriel Soares, que foi senhor de engenho na Bahia e um ousado explorador do território do Brasil no Século XVI, assim explicou o modo como guerreiros nativos se punham em marcha para lutar contra uma aldeia inimiga:
"Antes que se abalem, faz o principal capitão a dianteira, que eles têm por grande honra, o qual vai mostrando o caminho e lugar onde hão de dormir cada noite. E a ordenança com que se põem a caminho é um diante do outro, porque não sabem andar de outra maneira [...]." (¹)
Seguiam, portanto, sempre em fila indiana. Já perto do local do combate, aguardavam, escondidos na floresta, até que a ocasião fosse considerada favorável, o que geralmente ocorria de madrugada. Em meio às trevas e com enorme alarido, iam ao ataque, fazendo da surpresa um uso nada desprezível.

Índios puris caminhando em fila indiana (²)

(1) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 330.
(2) D'ORBIGNY, Alcide. Voyage Pittoresque dans les Deux Amériques. Paris: Furne et Cie., 1841. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Solução de conflitos familiares (de acordo com o Código de Hamurabi)

Tenho um palpite de que Maquiavel ficaria feliz se pudesse conhecer Hamurabi - sim, leitores, eu sei que, separados por milênios, esse encontro jamais seria possível - mas a questão é que ambos adotaram em suas obras (¹) o mesmo princípio de tratar a sociedade tal qual ela era, com seus costumes, tradições, defeitos, etc., realisticamente, sem envolvimento em utopias improváveis. O pensamento de Maquiavel é amplamente conhecido; o de Hamurabi ficará mais claro com dois exemplos práticos. Vejamos, então!
A utopia familiar dita: os pais devem ter idêntico amor por todos os seus filhos. Retruca a realidade: Isso dificilmente acontece. Lá vem Hamurabi, e diz:
"Se um homem dá um presente a seu filho preferido, seja um campo, um horto ou uma casa, e confirma e doação por escrito e com seu selo, se o pai morrer, os filhos dividirão entre si a herança: aquele filho conservará o presente que recebeu e o restante dos bens será divido igualmente entre todos os irmãos."
Tinha força de lei: o queridinho do papai conservava o presente recebido e, além disso, era incluído na partilha geral. Observem, leitores, que o legislador não gastou tempo em repreender a ausência de equidade do pai (²), nem tentou introduzir alguma reforma social revolucionária na estrutura familiar; em lugar disso, limitou-se a determinar o que devia ser feito diante de um potencial conflito entre irmãos.
Mais um exemplo, desta vez relacionado aos desentendimentos de um casal:
"Se uma mulher contender com seu marido e disser: "Você não pode mais viver comigo", deverá apresentar seus motivos diante do conselho [do lugar em que vive]; se ela não for culpada e não houver cometido nenhum erro (³), mas o marido é que é negligente para com ela, então a mulher será considerada inocente, poderá receber de volta o seu dote e retornar à casa de seu pai. Mas, se ela não for inocente, se houver deixado seu marido [por outro homem] e arruinado sua casa, sendo descuidada com seu marido, ela deve ser jogada no rio."
Chocante? Talvez, mas vejam que em nenhum momento a legislação inclui algum discurso moral quanto à fidelidade no casamento. Hamurabi sabia, afinal, que casais podiam se desentender e que adultérios aconteciam. Seu Código apenas definia o que fazer quando os problemas conjugais chegavam a transtornar a paz da comunidade. Quanto à punição para a má esposa, está perfeitamente de acordo com o sistema penal do Código. Em outros casos, as prescrições incluíam cortar uma orelha, arrancar um olho e até queimar vivo um criminoso. 

(1) O Príncipe (no caso de Maquiavel) e o Código de Hamurabi, uma compilação de leis datada de 1750 a.C., aproximadamente.
(2) Esse fato parece sugerir que o fenômeno era comum na Mesopotâmia. Ninguém iria perder tempo em legislar sobre alguma coisa que jamais acontecia.
(3) O erro em questão seria, provavelmente, um adultério.


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terça-feira, 5 de setembro de 2017

Uma figueira com a assinatura de Dom Pedro

Velhas árvores, cuja existência supera a de algumas gerações de humanos, costumam guardar registros interessantes. Não digo isso por causa dos anéis que, não contentes em revelar a idade da árvore a que pertencem, ainda acrescentam muitas outras informações, como é o caso das condições climáticas ao longo de sua existência. É que muita gente gosta de deixar marcas em troncos de árvores - quem é que nunca viu algo assim? Basta uma faca, canivete ou outro objeto cortante, e o pobre vegetal ganha uma cicatriz que já não pode ser apagada. Imaginem, então, leitores, se o rabisco for feito por alguma celebridade. Sorte ou azar, a árvore logo fica famosa. 
Pois foi exatamente sobre uma árvore dessas que escreveu Augusto-Emílio Zaluar em suas memórias de viagem pelo Vale do Paraíba no Século XIX. Tratava-se de uma respeitável figueira, testemunha silenciosa das idas e vindas de tropeiros e suas mulas, além de muitos outros viajantes, alguns deles, anônimos, e outros, conhecidos até demais:
"Este gigante de vegetação, que nasceu de uma estaca de tropeiros, é duplamente digno de veneração. A ramagem que lhe sombreia o tronco colossal pode abrigar uma porção de cavaleiros. A base do tronco tem umas poucas de braças. É um templo de verdura levantado às portas da cidade, apontando em sua imponente majestade um fato importante nas tradições nacionais." (¹)
Zaluar parece fazer suspense... E continua:
"Vê-se aí entalhada a firma de S. M. o Imperador o Sr. D. Pedro I pelo seu próprio punho.
Quando o fundador do Império foi ao Ipiranga proclamar a independência do Brasil (²), passou aqui na tarde de 11 de julho de 1822 [...], e foi por essa ocasião que entalhou a sua inicial no tronco da figueira. A árvore hoje tem crescido a ponto de que as letras P. I., que então ficavam na altura do braço de um cavaleiro, agora têm a elevação de mais de três homens." (³)
Não tenho nenhuma intenção, leitores,  de desfazer a alegria das tradições locais, mas, se era nessa altura que se encontrava o rabisco supostamente entalhado por D. Pedro, será forçoso admitir que, para gravá-lo, o jovem príncipe precisaria ter escalado a árvore, como o fariam os meninos travessos.
Por quê? Ora, leitores, porque, explicando de um modo bem simples, nas árvores o crescimento acontece na ponta do caule (gema apical) ou de seus vários ramos (dependendo da espécie); tudo o mais permanece exatamente à mesma altura. Então, se D. Pedro houvesse entalhado seu nome, digamos, em um ponto do caule da figueira que estivesse a dois metros do chão, durante toda a vida da árvore a marca estaria exatamente à dita altura, jamais alcançando "a elevação de mais de três homens", como afirmou Zaluar. 
Além disso, o autor em questão, parecendo um tanto crédulo, não deve ter atentado para outro fato: em julho de 1822 D. Pedro nunca teria assinado P. I., quer o "I" significasse "primeiro", quer "imperador", porque nessa ocasião ele não era nem uma coisa e nem outra. Era, sim, príncipe regente do Brasil e herdeiro do trono português. Não era pouca coisa, mas a independência, que faria de D. Pedro o primeiro imperador do Brasil, constituía-se, na época da suposta assinatura, em um evento ainda no futuro.

(1) ZALUAR, Augusto-Emílio. Peregrinação Pela Província de São Paulo 1860 - 1861. Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1862, pp. 120 e 121.
(2) O episódio que se considera como proclamação da Independência ocorreu quando D. Pedro vinha de Santos para São Paulo, no final da tarde de 7 de setembro de 1822; portanto, o caminho óbvio foi outro. Zaluar talvez quisesse dizer que D. Pedro passara pela famosa árvore quando vinha do Rio de Janeiro.
(3) ZALUAR, Augusto-Emílio. Op. cit., p. 121.


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