terça-feira, 30 de março de 2010

Celebrando a Paixão e a Páscoa

Há alguns anos, ouvi alguém relatar as peripécias de Sexta-feira Santa ocorridas em sua pequena cidade natal. Dizia minha contadora de histórias que o antigo ritual de Sexta-Feira de Trevas era ótimo pretexto para os malefícios da rapaziada menos devota. Valendo-se da escuridão reinante na igreja, amarravam as franjas dos xales usados pelas senhoras, o que era garantia de confusão e desentendimentos ao final do serviço religioso.
Mas não era só. O ofício era acompanhado de marteladas que sinalizavam aos fiéis a agonia da crucifixão, o que resultava na oportunidade perfeita para que marteladas simultâneas cravassem no chão as longas saias das mulheres... Você, leitor, por certo já entendeu que estou mesmo falando de priscas eras: não faria o menor sentido alguém pensar em pregar saias hoje em dia. Não há pano suficiente para isso.
Folclore à parte (ou não!), parece que as celebrações da Páscoa têm sido cenário perfeito para as mais variadas formas de expressão artística, nas quais a solene festa da Ressurreição e a intensa espiritualidade da liturgia pascal contrastam, muitas vezes, com as piores paixões humanas. Quer ver?
Em Cavalleria Rusticana, de P. Mascagni (com libreto de G. Menasci e Targioni-Tozzetti), há evidente oposição, inclusive no plano musical, entre a suave liturgia do domingo de Páscoa e o drama de traição, adultério, intriga e assassinato que norteia a ópera em um só ato. É fácil perceber o propósito do compositor em levar ao máximo as emoções da plateia, mediante a oscilação recorrente entre esses dois extremos - à serenidade do belíssimo intermezzo orquestral segue-se a tempestade dos conflitos amorosos que culmina em tragédia, como, aliás, é frequente no universo operístico.
Da Literatura vem o exemplo do Fausto, de Goethe, em que a personagem central, à beira do suicídio, é arrancada de seu intento pelo som dos coros que anunciam a Páscoa, trazendo à memória do Doutor as celebrações felizes da Ressurreição e da primavera. A despeito disso, é justamente ao anoitecer do domingo de Páscoa que Fausto sela um acordo com Mefistófeles, o demônio que lhe promete dar, em pouco tempo, todo o prazer que a vida de intensos estudos não lhe havia proporcionado. Quer-me parecer, pois, que tanto no caso de Cavalleria Rusticana como em Fausto o que está em questão é essa intrigante possibilidade da natureza humana em oscilar pendularmente entre a santidade e a perversão, possibilidade que, se em graus extremos é pouco atingida, sucede, no plano da mediocridade, ser a tendência de nossa espécie...
Muito bem, chega de estripulias.
Já faz quase uma semana que não me sai da cabeça o "Kommt, ihr Töchter, helft mir klagen..." da abertura da Paixão Segundo São Mateus. De Bach, naturalmente. Coro e orquestra são tão absolutamente envolventes que, quando a gente mergulha na música, tem dificuldade em livrar-se dela. Ouça, para ter uma grande oportunidade de oscilar para o lado da santidade, meu leitor, ainda que este não seja exatamente seu gênero musical favorito. Nem é preciso ser religioso para isso. Eu lhe asseguro, compensa experimentar.
Kommt, ihr Töchter, helft mir klagen,
sehet den Bräutigam, seht ihn als wie ein Lamm...
Sehet, seht die Geduld... seht auf unsre Schuld...


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domingo, 21 de março de 2010

Os sinos dobram. Por quê?

A utilidade dos sinos das igrejas, da Idade Média aos nossos dias


Em suas origens, as primeiras comunidades cristãs reuniam-se, ao que tudo indica, em casas de famílias que aderiam à nova fé. Porém, à medida que o cristianismo ganhou espaço na sociedade romana, edifícios próprios para os serviços religiosos começaram a ser construídos. No século IV, Eusébio de Cesareia (em sua História Eclesiástica) relatou como, após o Edito de Milão (313 d.C.) as igrejas destruídas durante décadas de perseguição foram reconstruídas, ao mesmo tempo em que novos templos eram edificados e consagrados. Entretanto, apenas na Idade Média é que as igrejas iriam ganhar a importância e as proporções que as colocariam entre os maiores edifícios públicos. E passariam a ter sinos, também. Por quê?
Você, leitor, quando quer saber as horas, olha para um relógio. Há muitos deles, em todo lugar. Mas nos tempos medievais, quando alguém queria saber as horas, precisava ouvir os sinos das igrejas ou dos mosteiros. Eram os sinos que anunciavam a hora dos serviços religiosos e, quem desejasse comparecer (o que, naqueles dias, significava quase a totalidade da população) tinha nas badaladas um aviso para se preparar. Desse modo, as igrejas prestavam um serviço, criando algum tipo confiável de marcação do tempo, porém chegavam, também, a exercer um grande controle, pois os horários dos serviços religiosos ditavam o ritmo da vida quotidiana.
Somente no século XIX é que os relógios pessoais (de bolso) tornaram-se frequentes - mas até aí o hábito já estava solidificado por séculos de uso, e as igrejas continuaram e continuam a ter sinos para conclamar os fiéis à devoção.
Engana-se, porém, quem imagina que essa fosse a única finalidade dos sinos das igrejas. As badaladas continham códigos que nós, hoje, desconhecemos, mas cujo significado os antigos sabiam muito bem. Assim é que, além do toque habitual para as missas, havia, por exemplo, os chamados de alarme, indicando, talvez, a ocorrência de um incêndio. Nesse caso, esperava-se que todos os moradores das redondezas cooperassem para debelar o fogo, pois bombeiros especializados, como temos atualmente, não existiam. E vale também lembrar aqui um episódio curioso da História do Brasil, quando, já nos últimos dias do Primeiro Reinado, Sua Majestade, D. Pedro I, visitou Minas Gerais, em um momento no qual a maioria dos brasileiros mostrava-se descontente com sua política de aproximação com Portugal, que parecia pôr em risco a independência. Ora, quando o imperador adentrava Ouro Preto, foi efusivamente saudado pelo toque simultâneo dos sinos das (muitíssimas) igrejas, que dobravam a Finados... 
Vale ainda acrescentar que nem sempre os sinos foram alocados em torres, mas à medida que os conhecimentos técnicos permitiram, as igrejas passaram a ter pontos elevados, os campanários, nos quais um conjunto de sinos era instalado, permitindo maior riqueza  sonora, evidentemente, mas criando também um ponto de observação indispensável à segurança das cidades daqueles tempos. De qualquer maneira, como já disse, o hábito estabeleceu-se e, nos nossos dias, quando todos temos um ou mais relógios, quando bombeiros atendem com eficiência e profissionalismo a casos de incêndio e quando os meios de comunicação de massa trazem notícias em tempo real, continuamos a ver igrejas sendo construídas com altas torres, talvez porque, sempre que soam,  os sinos parecem estabelecer um elo entre os devotos de hoje e os do passado, vínculo este que tem sido parte constante do imaginário fundamental na perpetuação do cristianismo como o conhecemos.


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terça-feira, 16 de março de 2010

Pichadores não deixam em paz nem a locomotiva de Jaguariúna


Novamente, leitor, o assunto é a preservação da memória ferroviária.
Já visitou o Museu Ferroviário em Jaguariúna? É passeio para um fim de semana, pois a viagem completa da "Maria-Fumaça" leva cerca de três horas e meia. Mas, se não dispuser de tanto tempo, só a visita ao museu e à locomotiva e carro de passageiros estacionados defronte a ele já valem a pena. Estão muito bem restaurados e o atendimento no museu é ótimo. Tudo muito educativo para as crianças e interessante para os adultos.
Mas, oh! Que descubro eu? Ao fazer umas fotos do interior da mencionada locomotiva, percebo que nem mesmo aqui os engraçadinhos que amam aparecer tiveram respeito. Veja a foto pequena aí ao lado e conclua se tenho ou não razão.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Voltaremos a escrever em papiros?

Pedra de Roseta (¹), decisiva para a
decifração inicial dos hieróglifos
egípcios (²)
A humanidade já escreveu em papiros. Já escreveu em tabletes de argila. Já escreveu em pergaminhos. Já escreveu – e ainda escreve – em papel. Papiro, tablete de argila, pergaminho ou papel foram apenas o meio para a preservação do conhecimento, para a troca de ideias e informações, para a fofoca (por que não?). O meio mudou com o passar do tempo, mas o conhecimento, as ideias, as informações e a fofoca continuam a existir. A escrita, e não o meio, é que transcendeu as eras, seja no grau superlativo da arte literária, seja como expressão da individualidade, seja apenas como ferramenta quotidiana que permite armazenar informações para além dos limites de nossa falível memória.
Você, leitor, deve estar se perguntando aonde quero chegar. Pois bem, já vou dizer. É que tenho visto e até participado de discussões sobre o futuro do livro e do jornal impressos em nossa época, na qual a comunicação digital torna-se majoritária. Para mim, supor que livros e jornais desaparecerão e lamentar tal fato não passa de saudosismo antecipado, masoquismo de quem parece ter prazer em sentir-se velho antes da hora. E vai-se daí construindo uma torrente de lamentações sobre o que se perderá se não tivermos mais jornais para lermos tranquilamente ao sabor de um chocolate quente e se frios leitores digitais substituírem o charme dos livros em papel macio de primeira qualidade. A quem assim lamenta, devo dizer que o passado da humanidade nos ensina  que tudo será mais fácil se aceitarmos a ideia da mudança. Ninguém mais escreve habitualmente em papiro, argila ou pergaminho, e é bastante provável, para júbilo das árvores em geral, que o papel entre, em algum tempo, para a lista dos suportes arcaicos de escrita. Permanecerão, no entanto, o conhecimento, as ideias, as informações e a fofoca, porque somos humanos e essas coisas são, intrinsecamente, parte de nós.
Se você leitor, quer mais motivo para ruminar este assunto, deve ler o ensaio de Machado de Assis, O Jornal e o Livro, de 1859... 
Caracteres hieroglíficos (³)
Depois de ler Machado, creio que concordará em dizer como Salomão, o sábio rei dos hebreus, que não há nada de novo debaixo do sol. Ao termo de tudo percebemos que discussões antigas como esta ainda persistem porque há quem ache um charme ter cabeça dura, julgando que o que temos é suficientemente bom e não precisa mudar. Só posso concluir que, na realidade, não são as coisas em processo de transformação que nos inquietam, é a necessidade de mudança em nós mesmos que nos machuca e nos tortura, ainda quando admitimos ser essa uma experiência absolutamente necessária, incluída entre as poucas que nos permitem crescer de verdade, e sem a qual morremos interiormente, embora a vida pareça seguir como sempre - o que talvez explique o fato de haver tantos mortos-vivos circulando pelas ruas, que riem, choram, trabalham, procriam,  mas quase sem nenhuma consciência de quem são, constando apenas nas estatísticas dos que realizam seus sonhos de poder exercendo controle sobre eles.
Quanto a nós, leitor, tratemos de vivenciar com discernimento e paixão esse momento talvez único, em que somos envolvidos pelas ondas da informação digital, tendo acesso ao conhecimento como nenhuma outra geração que nos precedeu.

(1) CHESNEY, J. The Land of the Pyramids. London: Cassel & C., Limited, c. 1884, p. 54.
(2) A Pedra de Roseta apresenta o mesmo texto em três formas distintas de escrita: hieroglífica, demótica e grega.
(3) RAWLINSON, George. Ancient Egypt. London: T. Fisher Unwin Ltd., 1887, p. 55.


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segunda-feira, 8 de março de 2010

Bolo de milho, curau, peixe frito e a Casa do Povoador de Piracicaba

(Se você entrou nesta página para saber sobre a história ou origem do bolo de milho, vá para a postagem História(s) de Bolo(s) de Milho.)

Não tenho dúvidas de que, para as autoridades responsáveis pela preservação de locais de interesse histórico, impõe-se, às vezes, uma difícil decisão. Ou há de um lugar ser preservado a qualquer custo, ainda que com restrição ou até proibição total de visitas, ou há de ser aberto ao público, mesmo existindo risco de dano ao patrimônio. Vejamos as implicações de ambas as possibilidades.
No primeiro caso, entendendo-se que um dado local tem características únicas que precisam ser conservadas, permite-se o acesso, no máximo, a pesquisadores, mediante prévia autorização. Consequentemente, a população em geral nem sabe, muitas vezes, da importância histórica desse sítio e torna-se provável que até chegue a desconhecer sua existência. Assim, preserva-se, mas as funções educativas do patrimônio histórico ficam prejudicadas.
Já no segundo caso a visitação pública é não apenas permitida, mas até incentivada. As despesas com a manutenção do patrimônio histórico são, provavelmente, maiores, mas a população tem ampla possibilidade de conhecer, através dele, suas próprias origens, o que pode, finalmente, resultar em maior interesse na conservação.
Casa do Povoador de Piracicaba
A Casa do Povoador, em Piracicaba, ilustra bem o segundo caso. Edificação colonial provavelmente da primeira metade do século XIX, está aberta à visitação, contando com o atendimento simpático e atencioso do funcionário responsável. Nela, ou em suas imediações, realizam-se eventos folclóricos e há sempre exposições de obras de artistas locais, para enriquecer a visita de que se dirige até lá. Fica a ressalva de que seria pertinente evitar a colocação de avisos e faixas na própria casa, para que seu aspecto visual possa ser alvo de melhor apreciação.
Verifiquei que a visitação é intensa e proveniente dos mais diversos setores da comunidade (bastou observar o livro de visitas), o que me permitiu concluir que a função educativa está sendo convenientemente valorizada.
Sei que há situações-limite em que a visitação deve ser proibida. Mas nunca deveria ser a regra, e a Casa do Povoador, aliás devidamente tombada pelo Condephaat, é um ótimo exemplo disso. Se passar por Piracicaba, leitor, certamente apreciará visitá-la. E não se esqueça de provar a comida típica da região (bolo de milho, curau, peixe frito), que pode ser encontrada nas imediações, particularmente nos fins de semana - afinal, isso também é cultura!


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quarta-feira, 3 de março de 2010

Não se esqueçam da locomotiva!


Continuo minhas andanças pelos lugares de importantes entroncamentos ferroviários do passado e, recentemente, fui a Cosmópolis, mesmo já sabendo que a estação da Estrada de Ferro Funilense, que deixou de funcionar em 1960, havia sido demolida. Há, entretanto, na cidade, uma praça em homenagem aos ferroviários ("Praça dos Ferroviários") e uma locomotiva que pertenceu à Funilense que, segundo placa nela existente, foi doada pela Usina Ester para tornar-se monumento. Perfeito? Deveria ser, mas não é, ou melhor, não está.


Pela foto acima o leitor já pode notar as pichações. Mas não é só. Dentro dela, constatei todo tipo de lixo, permitindo facilmente supor o uso que dela fazem  nas horas da noite...
Tentando protegê-la, alguém colocou arames nas laterais, mas essa providência serve, como é óbvio, apenas para descaracterizar um monumento que deveria ser motivo de orgulho para a cidade. Enquanto eu fazia minhas fotos, chegaram dois jovens, da própria cidade, que também queriam fotografar a locomotiva (não sei se por trabalho escolar ou talvez para algum concurso). Ficaram decepcionadíssimos ao vê-la toda suja e pichada. Que triste!
Eu não conhecia Cosmópolis, mas algo nela me surpreendeu muito favoravelmente: o excelente estado de conservação das escolas municipais. Parabéns, por isso, aos seus administradores. Mas não se esqueçam da locomotiva!



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segunda-feira, 1 de março de 2010

Os índios pagaram a conta

No Século XVIII, uma provisão do capitão-general Caldeira Pimentel autorizou a escravização de indígenas 


Uma análise do modo pelo qual foi conduzida a escravização de indígenas no Brasil oferece excelente oportunidade para perceber como a(s) ideologia(s) pode(m) ser uma ferramenta perfeita na tentativa de mascarar os verdadeiros propósitos de quem governa.
Era o ano de 1727. Há muito tempo indígenas eram escravizados, a despeito dos protestos de religiosos que pretendiam ampará-los nas chamadas "reduções", aldeamentos liderados por membros do clero nos quais os indígenas catequizados viviam dentro de "valores cristãos", como família monogâmica, estrita disciplina de trabalho, prática frequente de atividades religiosas e muitas vezes sob um regime de horário inspirado no monasticismo. Entretanto, índios assim supostamente pacificados eram as vítimas favoritas de sertanistas que encetavam expedições de apresamento. Mas a questão é que, ao menos formalmente, escravizar índios era ilegal e apenas aceitável quando houvesse confronto armado com os colonizadores portugueses.
Todavia as coisas estavam mudando bem depressa. A exploração aurífera nas Gerais fizera a demanda por escravos disparar, de modo que o preço de um cativo africano tornara-se absolutamente proibitivo para os agricultores de São Paulo. Que fazer? Por meio de uma Provisão Sobre o se Cativar os Índios que Forem Apanhados em Guerra o capitão-general Antônio da Silva Caldeira Pimentel autorizou a captura e escravização de nativos, fazendo uso de uma ginástica argumentativa cujo estudo pode ser instrutivo para a compreensão dos conflitos ideológicos daqueles dias.
Vejamos:

"Sendo o principal intento dos Sereníssimos Reis de Portugal a propagação e aumento da Religião Católica, e o haverem procurado tão vastas e dilatadas conquistas para reduzir ao grêmio da Igreja a inumerável multidão de bárbaros, seus habitantes, e procurando por estes respeitos reduzir ao verdadeiro conhecimento da fé católica aos índios habitantes da América, para o que empregaram há tantos anos o seu zeloso fim povoando os sertões de missionários e soldados, que com instruções católicas mais do que com as armas os reduzem ao verdadeiro conhecimento da salvação das suas almas; tem mostrado a experiência frustrar-se tão santo intento recusando a barbaridade dos mesmos índios não abraçar a luz do Evangelho, mas opondo-se às conquistas e descobrimentos tanto em prejuízo da sua real Coroa e fazenda como da de seus vassalos, por cujo respeito e em atenção da obstinada resistência dos ditos índios, perdas, e danos, e mortes que executam impedindo penetrarem-se os sertões e se fazerem os referidos descobrimentos: Hei por bem declarar segundo as ordens de S. Majestade que todos os moradores desta capitania poderão cativar a todo o gênero de gentio de corso e guerra que, por qualquer modo violento, não querendo reduzir-se à fé, lhes impeçam o livre passo, comércio e comunicação e descobrimento das terras pertencentes às conquistas de sua Real Coroa, ficando os ditos índios legitimamente cativos de justa guerra, podendo os que os cativarem possuí-los por escravos, e como tais ficarem sujeitos ao seu domínio e passarem em administração a seus herdeiros, com declaração de que havendo os ditos herdeiros ou descendentes se conservará neles a dita administração sem que se lhe possam tirar, sendo tão somente obrigados todos aqueles que cativarem os ditos índios a pagar deles o quinto a S. Majestade..." (¹)

De acordo com o Documento:
  • Todo o empenho da monarquia lusitana, ao empreender as viagens de conquista territorial que conhecemos como Grandes Navegações, era fruto do desejo de levar os povos indígenas ao conhecimento da fé católica, reunindo-os à Igreja;
  • Os povos indígenas mostravam-se irredutíveis na questão, a despeito da preocupação do governo português em povoar "os sertões de missionários e soldados" para promover a catequese;
  • Diante disso, ficavam os moradores da Capitania autorizados a escravizar indígenas, tanto para si como para seus herdeiros, apenas com a recomendação de que os quintos reais fossem estritamente pagos.
A que conclusões chegamos, leitor?
Mesmo os mais relapsos estudantes do ensino fundamental seriam capazes de reconhecer que a catequese de nativos pode ter sido, no máximo, um pretexto, nunca o objetivo maior do processo de colonização. Entretanto, o discurso de tom aparentemente conciliador degola-se a si mesmo quando reconhece que a catequese fora feita com missionários e soldados. Entende-se a função dos religiosos, por mais que seja discutível o direito de impor práticas religiosas a quem quer que seja, mas precisamos reconhecer que o documento, da primeira metade do século XVIII, foi escrito em uma época na qual o conceito de liberdade religiosa, como hoje o entendemos, era praticamente desconhecido. Porém é de estranhar-se, no mínimo, essa atribuição de funções catequizadoras aos militares, ainda que em sua fala o capitão-general pareça diminuir o papel das armas na evangelização. Não há nenhuma palavra sobre os frequentes ataques de bandeirantes às reduções, a que os governantes lusos faziam vistas grossas, mesmo porque não seria fato de menção conveniente para os propósitos da argumentação. E, finalmente, o capitão-general escancara a finalidade de sua Provisão: tornar livres os paulistas para escravizar os índios, contanto que paguem os quintos reais. Não assume, por suposto, seu verdadeiro motivo, ou seja, a falta de mão de obra na Capitania em virtude da expansão da atividade mineradora, que encarecia os escravos de origem africana e atraía, com enganosas promessas de enriquecimento rápido e fácil, a população livre masculina de origem europeia. Despovoava-se a capitania de S. Paulo, reduzindo a arrecadação de impostos, um gravíssimo problema para as pretensões de carreira desse governante português. Verifica-se, portanto, o que afirmei no início: a ideologia, nesse caso principalmente de caráter religioso, foi usada, escandalosamente, com o propósito de mascarar razões sabidamente menos nobres.
Na segunda metade do século XVIII a escravização de indígenas foi definitivamente proibida pelo governo português, deixando, porém, marcas acentuadas na sociedade paulista. Mas isso é assunto já bastante discutido por vários historiadores, havendo razoável bibliografia a respeito, com a qual, você, leitor, poderá divertir-se, se tiver interesse mais amplo no assunto.

Algumas etnias indígenas, de acordo com uma publicação do Século XIX (²)

(1) Publicação Official de Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo vol. XXVI Parte 1ª, 1727 - 1728. São Paulo: Archivo do Estado de S. Paulo / Typographia da Industrial de São Paulo, 1898, pp. 32 - 34. O documento foi transcrito  na ortografia atual.
(2) DENIS, Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1837.


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