No Século XVIII, uma provisão do capitão-general Caldeira Pimentel autorizou a escravização de indígenas
Uma análise do modo pelo qual foi conduzida a escravização de indígenas no Brasil oferece excelente oportunidade para perceber como a(s) ideologia(s) pode(m) ser uma ferramenta perfeita na tentativa de mascarar os verdadeiros propósitos de quem governa.
Era o ano de 1727. Há muito tempo indígenas eram escravizados, a despeito dos protestos de religiosos que pretendiam ampará-los nas chamadas "reduções", aldeamentos liderados por membros do clero nos quais os indígenas catequizados viviam dentro de "valores cristãos", como família monogâmica, estrita disciplina de trabalho, prática frequente de atividades religiosas e muitas vezes sob um regime de horário inspirado no monasticismo. Entretanto, índios assim supostamente pacificados eram as vítimas favoritas de sertanistas que encetavam expedições de apresamento. Mas a questão é que, ao menos formalmente, escravizar índios era ilegal e apenas aceitável quando houvesse confronto armado com os colonizadores portugueses.
Todavia as coisas estavam mudando bem depressa. A exploração aurífera nas Gerais fizera a demanda por escravos disparar, de modo que o preço de um cativo africano tornara-se absolutamente proibitivo para os agricultores de São Paulo. Que fazer? Por meio de uma Provisão Sobre o se Cativar os Índios que Forem Apanhados em Guerra o capitão-general Antônio da Silva Caldeira Pimentel autorizou a captura e escravização de nativos, fazendo uso de uma ginástica argumentativa cujo estudo pode ser instrutivo para a compreensão dos conflitos ideológicos daqueles dias.
Vejamos:
"Sendo o principal intento dos Sereníssimos Reis de Portugal a propagação e aumento da Religião Católica, e o haverem procurado tão vastas e dilatadas conquistas para reduzir ao grêmio da Igreja a inumerável multidão de bárbaros, seus habitantes, e procurando por estes respeitos reduzir ao verdadeiro conhecimento da fé católica aos índios habitantes da América, para o que empregaram há tantos anos o seu zeloso fim povoando os sertões de missionários e soldados, que com instruções católicas mais do que com as armas os reduzem ao verdadeiro conhecimento da salvação das suas almas; tem mostrado a experiência frustrar-se tão santo intento recusando a barbaridade dos mesmos índios não abraçar a luz do Evangelho, mas opondo-se às conquistas e descobrimentos tanto em prejuízo da sua real Coroa e fazenda como da de seus vassalos, por cujo respeito e em atenção da obstinada resistência dos ditos índios, perdas, e danos, e mortes que executam impedindo penetrarem-se os sertões e se fazerem os referidos descobrimentos: Hei por bem declarar segundo as ordens de S. Majestade que todos os moradores desta capitania poderão cativar a todo o gênero de gentio de corso e guerra que, por qualquer modo violento, não querendo reduzir-se à fé, lhes impeçam o livre passo, comércio e comunicação e descobrimento das terras pertencentes às conquistas de sua Real Coroa, ficando os ditos índios legitimamente cativos de justa guerra, podendo os que os cativarem possuí-los por escravos, e como tais ficarem sujeitos ao seu domínio e passarem em administração a seus herdeiros, com declaração de que havendo os ditos herdeiros ou descendentes se conservará neles a dita administração sem que se lhe possam tirar, sendo tão somente obrigados todos aqueles que cativarem os ditos índios a pagar deles o quinto a S. Majestade..." (¹)
De acordo com o Documento:
- Todo o empenho da monarquia lusitana, ao empreender as viagens de conquista territorial que conhecemos como Grandes Navegações, era fruto do desejo de levar os povos indígenas ao conhecimento da fé católica, reunindo-os à Igreja;
- Os povos indígenas mostravam-se irredutíveis na questão, a despeito da preocupação do governo português em povoar "os sertões de missionários e soldados" para promover a catequese;
- Diante disso, ficavam os moradores da Capitania autorizados a escravizar indígenas, tanto para si como para seus herdeiros, apenas com a recomendação de que os quintos reais fossem estritamente pagos.
Mesmo os mais relapsos estudantes do ensino fundamental seriam capazes de reconhecer que a catequese de nativos pode ter sido, no máximo, um pretexto, nunca o objetivo maior do processo de colonização. Entretanto, o discurso de tom aparentemente conciliador degola-se a si mesmo quando reconhece que a catequese fora feita com missionários e soldados. Entende-se a função dos religiosos, por mais que seja discutível o direito de impor práticas religiosas a quem quer que seja, mas precisamos reconhecer que o documento, da primeira metade do século XVIII, foi escrito em uma época na qual o conceito de liberdade religiosa, como hoje o entendemos, era praticamente desconhecido. Porém é de estranhar-se, no mínimo, essa atribuição de funções catequizadoras aos militares, ainda que em sua fala o capitão-general pareça diminuir o papel das armas na evangelização. Não há nenhuma palavra sobre os frequentes ataques de bandeirantes às reduções, a que os governantes lusos faziam vistas grossas, mesmo porque não seria fato de menção conveniente para os propósitos da argumentação. E, finalmente, o capitão-general escancara a finalidade de sua Provisão: tornar livres os paulistas para escravizar os índios, contanto que paguem os quintos reais. Não assume, por suposto, seu verdadeiro motivo, ou seja, a falta de mão de obra na Capitania em virtude da expansão da atividade mineradora, que encarecia os escravos de origem africana e atraía, com enganosas promessas de enriquecimento rápido e fácil, a população livre masculina de origem europeia. Despovoava-se a capitania de S. Paulo, reduzindo a arrecadação de impostos, um gravíssimo problema para as pretensões de carreira desse governante português. Verifica-se, portanto, o que afirmei no início: a ideologia, nesse caso principalmente de caráter religioso, foi usada, escandalosamente, com o propósito de mascarar razões sabidamente menos nobres.
Na segunda metade do século XVIII a escravização de indígenas foi definitivamente proibida pelo governo português, deixando, porém, marcas acentuadas na sociedade paulista. Mas isso é assunto já bastante discutido por vários historiadores, havendo razoável bibliografia a respeito, com a qual, você, leitor, poderá divertir-se, se tiver interesse mais amplo no assunto.
(1) Publicação Official de Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo vol. XXVI Parte 1ª, 1727 - 1728. São Paulo: Archivo do Estado de S. Paulo / Typographia da Industrial de São Paulo, 1898, pp. 32 - 34. O documento foi transcrito na ortografia atual.
Veja também:
Algumas etnias indígenas, de acordo com uma publicação do Século XIX (²) |
(1) Publicação Official de Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo vol. XXVI Parte 1ª, 1727 - 1728. São Paulo: Archivo do Estado de S. Paulo / Typographia da Industrial de São Paulo, 1898, pp. 32 - 34. O documento foi transcrito na ortografia atual.
(2) DENIS, Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1837.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Democraticamente, comentários e debates construtivos serão bem-recebidos. Participe!
Devido à natureza dos assuntos tratados neste blog, todos os comentários passarão, necessariamente, por moderação, antes que sejam publicados. Comentários de caráter preconceituoso, racista, sexista, etc. não serão aceitos. Entretanto, a discussão inteligente de ideias será sempre estimulada.