Há alguns anos, ouvi alguém relatar as peripécias de Sexta-feira Santa ocorridas em sua pequena cidade natal. Dizia minha contadora de histórias que o antigo ritual de Sexta-Feira de Trevas era ótimo pretexto para os malefícios da rapaziada menos devota. Valendo-se da escuridão reinante na igreja, amarravam as franjas dos xales usados pelas senhoras, o que era garantia de confusão e desentendimentos ao final do serviço religioso.
Mas não era só. O ofício era acompanhado de marteladas que sinalizavam aos fiéis a agonia da crucifixão, o que resultava na oportunidade perfeita para que marteladas simultâneas cravassem no chão as longas saias das mulheres... Você, leitor, por certo já entendeu que estou mesmo falando de priscas eras: não faria o menor sentido alguém pensar em pregar saias hoje em dia. Não há pano suficiente para isso.
Folclore à parte (ou não!), parece que as celebrações da Páscoa têm sido cenário perfeito para as mais variadas formas de expressão artística, nas quais a solene festa da Ressurreição e a intensa espiritualidade da liturgia pascal contrastam, muitas vezes, com as piores paixões humanas. Quer ver?
Em Cavalleria Rusticana, de P. Mascagni (com libreto de G. Menasci e Targioni-Tozzetti), há evidente oposição, inclusive no plano musical, entre a suave liturgia do domingo de Páscoa e o drama de traição, adultério, intriga e assassinato que norteia a ópera em um só ato. É fácil perceber o propósito do compositor em levar ao máximo as emoções da plateia, mediante a oscilação recorrente entre esses dois extremos - à serenidade do belíssimo intermezzo orquestral segue-se a tempestade dos conflitos amorosos que culmina em tragédia, como, aliás, é frequente no universo operístico.
Da Literatura vem o exemplo do Fausto, de Goethe, em que a personagem central, à beira do suicídio, é arrancada de seu intento pelo som dos coros que anunciam a Páscoa, trazendo à memória do Doutor as celebrações felizes da Ressurreição e da primavera. A despeito disso, é justamente ao anoitecer do domingo de Páscoa que Fausto sela um acordo com Mefistófeles, o demônio que lhe promete dar, em pouco tempo, todo o prazer que a vida de intensos estudos não lhe havia proporcionado. Quer-me parecer, pois, que tanto no caso de Cavalleria Rusticana como em Fausto o que está em questão é essa intrigante possibilidade da natureza humana em oscilar pendularmente entre a santidade e a perversão, possibilidade que, se em graus extremos é pouco atingida, sucede, no plano da mediocridade, ser a tendência de nossa espécie...
Muito bem, chega de estripulias.
Já faz quase uma semana que não me sai da cabeça o "Kommt, ihr Töchter, helft mir klagen..." da abertura da Paixão Segundo São Mateus. De Bach, naturalmente. Coro e orquestra são tão absolutamente envolventes que, quando a gente mergulha na música, tem dificuldade em livrar-se dela. Ouça, para ter uma grande oportunidade de oscilar para o lado da santidade, meu leitor, ainda que este não seja exatamente seu gênero musical favorito. Nem é preciso ser religioso para isso. Eu lhe asseguro, compensa experimentar.
Kommt, ihr Töchter, helft mir klagen,
sehet den Bräutigam, seht ihn als wie ein Lamm...
Sehet, seht die Geduld... seht auf unsre Schuld...
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