quarta-feira, 29 de junho de 2016

Uniformes escolares de antigamente

"O Ateneu era invejado. Vítimas do uniforme, os discípulos de Aristarco passeavam entre os grupos dos colégios rivais, sofrendo dichotes, com uma paciência recomendada pela boa educação."
Raul Pompeia, O Ateneu

Há tempos, alguns adolescentes me contaram, com muito desgosto, que o uniforme adotado para aquele ano no colégio em que estudavam fazia com que eles, alunos, parecessem um bando de "gaviões calçudos" (¹). Ora, leitores, como desconheço que aparência tem um gavião calçudo, fiquei sem saber se a reclamação era ou não procedente. 
Seja por certo espírito de contestação próprio da idade ou por outro motivo qualquer, é fato que estudantes tendem a detestar uniformes escolares. Até parece contraditório, mas alguns que não hesitam em andar devidamente paramentados com a camisa do time de futebol favorito são os primeiros a ruminar protestos contra as exigências das escolas que, quase sempre, são impostas por razões de organização, conforto, higiene e segurança dos próprios alunos. 
Por outro lado, entre as coisas que têm passado por sucessivas revoluções nos últimos duzentos anos encontram-se os uniformes escolares, juntamente com o vestuário em geral. Já tiveram a aparência de trajes militares (em tempos em que a disciplina exigida rezava pela mesma cartilha), em outros casos faziam lembrar a indumentária típica das ordens religiosas e, no extremo oposto, houve e há muitas instituições que simplesmente dispensaram/dispensam qualquer tipo de uniforme. Diferentes ideologias marcaram presença também nessa questão. 
Não vem ao caso discutir, agora, as vantagens e desvantagens desses extremos (já sei que muitos leitores irão dizer que a sensatez reside no meio-termo). A diversão será outra: reuni algumas fotos - já seculares, ou quase - de estudantes com seus uniformes. Estão em ordem cronológica, e com exceção do estabelecimento de ensino citado na quarta fotografia, todos os demais eram localizados na cidade de São Paulo. Sim, senhores, quanta mudança!

1. Alunos da Escola Profissional Masculina durante uma aula de marcenaria. (²)


2. Alunas da Escola Normal (para formação de professoras), acompanhadas por alunos da Escola Modelo Anexa. (³)


3. Demonstração de ginástica por alunos do Ginásio Anglo-Brasileiro. (⁴)


4. Alunos do Ginásio Diocesano de Campinas desembarcando na Estação Ferroviária de Limeira para uma excursão. (⁵)


5. Alunas da Escola Profissional Feminina de São Paulo. (⁶)


6. Alunas do Colégio Sttaford, turma de 1923. (⁷)


(1) Nada a ver com o maxixe de mesmo nome.
(2) A CIGARRA, Ano I, nº 15, 31 de dezembro de 1914.
(3) A CIGARRA, Ano II, nº 20, 21 de abril de 1915.
(4) A CIGARRA, Ano III, nº 54, 9 de novembro de 1916.
(5) A CIGARRA, Ano IV, nº 78, 31 de outubro de 1917.
(6) A CIGARRA, Ano X, nº 197, 1º de dezembro de 1922.
(7) A CIGARRA, Ano XII, nº 223, 1º de janeiro de 1924.


Veja também:

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Terra arrasada, pilhagem e intimidação dos inimigos

Chama-se "tática de terra arrasada" a um procedimento às vezes adotado em guerra, quando, diante do avanço de um exército inimigo, resolve-se destruir, antecipadamente, tudo o que poderia facilitar sua sobrevivência. A manobra é arriscada, porque talvez signifique miséria e morte para os habitantes do próprio país, impossibilitando uma defesa eficiente. Embora essa prática tenha encontrado adeptos em tempos recentes, era conhecida, e até muito comum, desde a Antiguidade, quando os monarcas costumavam ordenar que até mesmo as fontes e poços fossem obstruídos, para que o mais básico dos suprimentos, a água, não estivesse ao alcance dos exércitos invasores. 
Por outro lado, nas guerras antigas também não era raro que um exército invasor, para aterrorizar os oponentes, destruísse tudo o que achava pelo caminho, a não ser, é claro, aquilo que poderia ser pilhado. Os assírios, por exemplo, não tinham dúvidas em devastar áreas de cultivo (colhendo, antes, para si mesmos, o que estivesse disponível), entulhar nascentes e espalhar pedras por áreas agricultáveis. Não surpreende, pois, afinal, eram os assírios!...
Mas os romanos também não pestanejavam em arruinar o território de seus inimigos. Sabemos, por relato de Políbio de Megalópolis, que durante o cerco a Siracusa (que durou cerca de dois anos), os cônsules Ápio e Marcelo, diante da dificuldade em derrotar essa aliada de Cartago, resolveram que o único modo de vencer seria impedindo que recebesse suprimentos. Como conseguir isso? Fazendo um bloqueio marítimo, para que os siracusanos não tivessem ajuda externa, e destroçando os campos adjacentes à cidade. Os romanos venceram. 
Outro partidário da pilhagem em guerra era ninguém menos que Júlio César. Registrou, ele mesmo, em De Bello Gallico:
"Indo em marcha para atacar os inimigos, César enviou por todo lugar a gente das cidades vizinhas, para queimar todas as casas e mais construções, e para saquear o que se achasse. As colheitas eram destruídas [...] de tal modo que, mesmo os que escapavam e iam juntar-se ao exército, acabariam morrendo em consequência de absoluta miséria." (¹)
Muitas vezes o plano de arrasar o território inimigo e saquear seus recursos funcionava. Mas o risco era óbvio: se o exército invasor fosse forçado a uma retirada, de que sobreviveriam os soldados?
Para concluir, menciono aqui um episódio de destruição e pilhagem em território brasileiro. Sim, no Brasil, meus leitores. Aconteceu em 1586, quando Martim Leitão comandava uma guerra contra indígenas da Paraíba. De acordo com Capistrano de Abreu, "sua ação sempre fecunda e prestigiosa pode resumir-se em poucas palavras: queimou navios, queimou pau-brasil já cortado, queimou aldeia, arrancou plantações, inutilizou mantimentos na baía da Traição, na serra da Capaoba, no Tijucopapo." (²) Não sei se Martim Leitão sabia alguma coisa das guerras da Antiguidade, mas não podemos negar que, em termos práticos, agiu no melhor estilo de Júlio César.

(1) Tradução de Marta Iansen para uso exclusivo no blog História & Outras Histórias. 
(2) ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de História Colonial: 1500 - 1800. Brasília, Ed. Senado Federal, 1998, p. 69.


Veja também:

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Técnicas de pesca usadas por povos indígenas do Brasil

Tão diversas quanto eram as culturas ameríndias, assim também variavam as técnicas de pesca por elas utilizadas. Em comum havia, porém, o fato de que quase todos os povos indígenas tinham nos peixes um elemento muito importante da alimentação. O que veremos aqui é uma pequena lista de técnicas de pesca empregadas por indígenas do Brasil, que está longe de ser completa, mas que certamente possibilitará a você, leitor, uma percepção de como esses povos conseguiam, em sua inserção no ambiente, obter o sustento de um modo inteligente e compatível com os recursos de que dispunham. (¹)

1. Pesca com timbó

Em uma carta que escreveu ao Geral dos Jesuítas em 31 de maio de 1560, o padre José de Anchieta explicava que os indígenas do litoral da Capitania de São Vicente eram hábeis em pescar no mar, quando, por ser época de desova, um número muito grande de peixes entrava pelas rochas e outros lugares de passagem estreita. Uma espécie de paliçada era feita para fechar a saída até que a maré baixasse, e os peixes, tontos pelo timbó (²) que os índios haviam posto na água, eram facilmente apanhados: "encurralados aí, e embriagados com o suco de certo lenho que os índios chamam timbó, são apanhados sem o mínimo trabalho muitas vezes mais de doze mil peixes grandes." (³)
Será que Anchieta estava exagerando? Embora não seja fácil obter uma resposta conclusiva, podemos ao menos estar certos de que no primeiro século da colonização as condições de mar e terra na América do Sul eram muitíssimo diferentes daquelas que encontramos hoje.

2. Pesca com pequenas redes

Gabriel Soares, na segunda metade do Século XVI, descreveu o modo como indígenas da Bahia faziam a pesca por meio de pequenas redes, às quais chamavam puçás:
"Tainhas se tomam em redes, porque andam sempre em cardumes (...). E de noite, com águas vivas, as tomam os índios com umas redinhas de mão, que chamam puçás, que vão atadas em uma vara arcada; e ajuntam-se muitos índios, e tapam a boca de um esteiro com varas e rama, e como a maré está cheia tapam-lhe a porta, e põem-lhe as redinhas ao longo da tapagem quando a maré vaza, e outros batem na água no cabo do esteiro, para que se venham todas abaixo a meter nas redes, e desta maneira carregam uma canoa de tainhas, e de outro peixe que entra no esteiro." (⁴)
Em comum com a pesca descrita por Anchieta, tem-se a ideia de encurralar os peixes para que sejam apanhados com maior facilidade - neste segundo caso, porém, com auxílio de redes.

Indígena pescando com arco e flecha (⁹)
3. Pesca com flechas

Indígenas ficaram famosos pela habilidade em flechar peixes, quase sempre sem erro. Dos tupinambás, disse Gabriel Soares:
"São os tupinambás grandes flecheiros (...), e há muitos que matam no mar e nos rios da água doce o peixe à flecha, e desta maneira matam mais peixes que outros à linha (...)." (⁵) 

4. Pesca com anzóis feitos de espinhos

Os amoipiras, ao tempo de Gabriel Soares, não tinham praticamente contato com portugueses e, por isso, continuavam a usar ferramentas de pedra, em lugar das facas, machados e tesouras que outros indígenas obtinham mediante escambo. Serviam-se, para pescar, de anzóis feitos com espinhos, ou capturavam peixes com flechadas:
"Pesca este gentio com uns espinhos tortos que lhe servem de anzóis, com que matam muito peixe, e à flecha, para o que são mui certeiros, e para matarem muita caça." (⁶)

5. Pesca fluvial com redes grandes feitas com lianas

Espécies vegetais de caule brando eram usadas pelos tapuias quando queriam fazer uma rede bem grande, que pudesse impedir aos peixes a passagem por um rio, segundo explicação também de Gabriel Soares, embora essa técnica nãos prescindisse de umas boas flechadas:
"Não pescam estes índios nos rios à linha, porque não têm anzóis, mas para matarem peixe, colhem uns ramos de umas ervas como vides, mas mui compridos e brandos, e tecem-nos como rede, os quais deitam no rio, e tapam-no de uma parte a outra; e uns têm mão nesta rede e outros batem a água em cima, donde o peixe foge e vem descendo até dar nela, onde se ajunta, e tomam às mãos o peixe pequeno, e o grande matam a flechadas, sem errarem um." (⁷)

6. Pesca com cercado de estacas parcialmente submersas e mergulho de indígenas para buscar os peixes

Já no Século XIX, integrantes da Expedição Langsdorff tiveram ocasião de presenciar, no interior do Brasil, o modo como pescavam os apiacás. A técnica vai descrita por Hércules Florence, desenhista da Expedição:
"Em dez minutos chegamos ao pari, nome que dão a uma paliçada em parte fora d'água, em parte submersa, feita com estacas fincadas no álveo do rio e atravessadas por outras, sendo os interstícios tapados com juncos. A água eleva-se e transborda. Na base da paliçada praticam buracos circulares, a cuja boca adotam mundéus que ficam retidos contra a correnteza por um pau. Os índios mergulham dentro da paliçada, voltam à tona com os mundéus, tiram o peixe e tornam a mergulhar para repô-los em seus lugares. Em pouco tempo ficou a piroga cheia de peixe, pelo que regressamos à maloca, onde nos ofertaram parte da pescaria." (⁸)

Dentro da divisão do trabalho que predominava entre a maior parte dos povos indígenas do Brasil, a pesca era considerada uma atividade masculina. Meninos aprendiam com os pais e com outros homens as técnicas de caça e pesca que garantiam parte da alimentação de seu grupo. Quando chegavam à idade adulta, já eram verdadeiros especialistas.

(1) As informações que temos foram, no entanto, transmitidas por missionários jesuítas, colonizadores, viajantes, e não pelos próprios indígenas, e cabe lembrar que refletem o modo como europeus viam e interpretavam o que acontecia.
(2) O timbó, tóxico para os peixes, não causava dano aos indígenas, e por isso era usado para facilitar a pescaria.
(3) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 111.
(4) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 289.
(5) Ibid., p. 321.
(6) Ibid., p. 347.
(7) Ibid., p. 353.
(8) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 219.
(9) CHAMPNEY, James Wells. Viagens no Norte do Brasil, 1860. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada digitalmente para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Muita farinha de mandioca para presentear o vice-rei

O episódio, contado por Sebastião da Rocha Pita em sua controversa História da América Portuguesa (¹), ocorreu em 1724, quando Vasco Fernandes César de Meneses exercia o cargo de vice-rei do Brasil. A sede de seu governo era, ainda, a Cidade da Bahia, a que hoje chamamos Salvador. 
Foi o vice-rei percorrer algumas povoações das redondezas e, ao chegar a Maragogipe, ouviu dos moradores uma reclamação e um pedido. Primeiro, a reclamação: Maragogipe era subordinada à Vila de Jaguaripe, e era lá, portanto, que deviam ser resolvidas as questões relacionadas à Justiça. Jaguaripe, porém, alegavam eles, era muito distante... Veio, então, o pedido: para resolver o problema, os moradores de Maragogipe queriam que sua povoação (cuja principal atividade econômica era a produção de farinha de mandioca), fosse elevada a vila.
O vice-rei considerou o caso e, após verificar que em nada haveria prejuízo para a Real Coroa, houve por bem atender à vontade da gente de Maragogipe. Mais do que satisfeitos, os moradores de Maragogipe resolveram homenagear o vice-rei com um presente algo inusitado. Conta Rocha Pita:
"Agradecidos os vizinhos de Maragogipe por este benefício, lisonjearam o vice-rei com a galanteria de dois mil alqueires de farinha, postos pelas suas embarcações na cidade, por ser o gênero essencial da sua cultura." (²)
Todo mundo sabe que, no Brasil, a medida do alqueire era variável (³), mas, independente disso e aceitando que o relato de Rocha Pita não contenha exagero, o presente foi, de fato, generoso, e, se essa foi mesmo a ordem dos acontecimentos, não se pode dizer que houve uma tentativa de suborno. Com a atitude esperada de um administrador que governava o Brasil em nome de El-Rei, o vice-rei Vasco Fernandes César de Meneses recebeu o donativo, que foi encaminhado para uso público:
"Ele os aceitou [os dois mil alqueires de farinha] para o sustento dos soldados e artilheiros do presídio (⁴) da Bahia, ordenando os recebesse o almoxarife a quem toca a distribuição deste pão de munição da infantaria, e poupando [...] tão oportuno donativo muita despesa." (⁵)
Malgrado andar já o Brasil às voltas com a exploração aurífera, parece que o tesouro colonial não estava em muito boa situação, ou Rocha Pita não faria menção à poupança que o presente de Maragogipe significou para o erário público - que o digam as nada incomuns sedições da soldadesca, que às vezes ficava quase um ano sem ver uma só moeda do pagamento que lhe era devido.

(1) Controversa, sim, pelo teor altamente encomiástico, e também por conter muitos erros, conforme diziam Pedro Taques de Almeida Paes Leme e Frei Gaspar da Madre de Deus, paulistas. A primeira edição da História da América Portuguesa apareceu em 1730.
(2) PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa 2ª ed. Lisboa: Ed. Francisco Arthur da Silva, 1880, p. 327.
(3) Quarenta litros em São Paulo, oitenta em Minas Gerais. Não havia uniformidade.
(4) Eram denominados "presídios" os quartéis, fortalezas e outros locais de uso militar no Brasil Colonial.
(5) PITA, Sebastião da Rocha. Op. cit., p. 327.


Veja também:

segunda-feira, 20 de junho de 2016

O Poder Moderador no Império do Brasil

Sagração de D. Pedro I como imperador do Brasil, de acordo com Debret (¹)

Jovens escolares estão acostumados a repetir que, no Brasil, são três os Poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário. Os estudantes que viviam nos tempos do Império tinham, porém, mais um item para memorizar, devido à existência do Poder Moderador.
Expliquemos, primeiro, que o Poder Moderador era exercido exclusivamente pelo imperador, conforme dispunha o Título 5º, Capítulo I, Artigo 98 da Constituição Imperial de 1824
"O Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos."
Levando em conta o modo como a Constituição de 1824 foi elaborada, é possível ver com facilidade por que razão é que D. Pedro I, imperador constitucional, era frequentemente acusado de ter tendências absolutistas. Ao que parece, as observações não eram infundadas; ao menos revelavam que o jovem D. Pedro tinha dificuldade em lidar com limites à sua autoridade.
Ele não tinha, porém, do que reclamar: o Artigo 101 da Constituição, que fixava as atribuições do monarca no exercício do Poder Moderador, era bastante generoso. Competia a Sua Majestade Imperial (²) nomear senadores, convocar a Assembleia Geral fora das sessões ordinárias sempre que julgasse necessário, além de prorrogar ou adiar as sessões costumeiras, sancionar os decretos da Assembleia Geral, que só assim entrariam em vigor, aprovar ou suspender aquilo que se resolvesse nos Conselhos das Províncias, dissolver a Câmara dos Deputados quando lhe aprouvesse, efetuar a nomeação e demissão de ministros de Estado a seu bel-prazer, suspender magistrados do exercício de suas funções, conceder anistia e comutar penas (³). 
D. Pedro II em 1861 (⁵)
Mas isso não era tudo. No Título 5º, Capítulo I, Artigo 99 encontrava-se esta joia diáfana:
"A pessoa do imperador é inviolável e sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma."
Não há dúvida de que um dispositivo assim poderia ser o sonho de muito político do Século XXI, mas, para felicidade geral da Nação, acabou em 1889. 
A partir de 1847, quando era imperador D. Pedro II, a criação do Conselho de Ministros transferiu a função de indicar quem ocuparia cada Ministério ao Presidente do Conselho (primeiro-ministro), e, portanto, desde então, essa deixou de ser uma prerrogativa do Poder Moderador (⁴). Pode até parecer que a influência do monarca estava diminuindo, mas a ideia era outra: impedir seu desgaste político diante dos partidos e da sociedade.
A proclamação da República pôs fim, é claro, à existência do Poder Moderador. Como efeito colateral, ao menos nesse aspecto, diminuiu a memorização exigida da criançada nas escolas.

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 3. Paris: Firmin Didot Frères, 1839. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) Esse tratamento era definido no Artigo 100 da Constituição de 1824.
(3) A pena de morte podia ser trocada, por exemplo, por prisão perpétua, se o imperador assim decidisse. Sentenças de morte não eram incomuns nos dias de D. Pedro I. D. Pedro II, fazendo uso do Poder Moderador, comutou a pena de morte várias vezes.
(4) Apenas o presidente do Conselho de Ministros era nomeado diretamente pelo imperador.
(5) RIBEYROLLES, Charles. Brazil Pittoresco. Paris: Lemercier, 1861. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


Veja também:

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Tolices ditas sobre os cristãos no Império Romano

"É esta uma sociedade composta por animais ferozes, com a ressalva de que os animais não atacam os de sua própria espécie, mas o homem quer o sangue do homem."
Sêneca, Da Ira

Os leitores já devem ter visto uma situação mais ou menos assim, quando alguém chega e diz: "Ouvi dizer que..." "Ohhh!", respondem os circunstantes. E lá vem uma história cabeluda, que já andou por uma centena de bocas e ouvidos, e que agora é repetida, com direito a nuances que estava longe de ter quando a fofoca começou. Ganha mais alguns detalhes e segue em frente. Poderia ser hilariante, mas os boatos têm, às vezes, consequências desastrosas.
Em meados do Primeiro Século o cristianismo era uma novidade em Roma. Ao que se sabe, fez adeptos, a princípio, entre as camadas mais pobres da população - artesãos e escravos - mas não tardou a ganhar seguidores também nos estratos elevados. 
Em 64 d.C. um incêndio brutal reduziu a cinzas uma parte considerável da capital do Império. De acordo com Tácito, Nero, sob suspeita de estar envolvido no incêndio, tratou logo de apontar supostos responsáveis pela catástrofe:
"Para afastar os numerosos rumores, Nero incriminou e passou a punir com toda sorte de tormentos a uma gente desagradável, vulgarmente chamada de cristãos." (¹)
Esta foi a primeira grande perseguição aos cristãos dentro do Império Romano, mas não foi a única. Outras viriam, à medida que boatos sem qualquer fundamento era espalhados entre a população ignorante. No ano 200 d.C., sob governo de Sétimo Severo, o Senado desencadeou uma dessas "caçadas", e foi nessa ocasião que Tertuliano escreveu, em defesa da fé cristã, sua famosa Apologia. Através dela é que ficamos sabendo de algumas dentre as muitas tolices que eram ditas a respeito dos cristãos no mundo romano, e que serviam de pretexto para que os adeptos da nova religião fossem presos, torturados e mortos. Lemos, na obra de Tertuliano:
"Os crimes ocultos, que se diz que cometemos, são estes:
- Que em uma reunião à noite, sacrificamos e comemos um menino;
- Que molhamos e empapamos um pão no sangue do menino que havia sido degolado, e que cada um dos presentes à reunião comeu um pedaço desse pão;
- Que partes desse pão foram lançadas a alguns cachorros, que, presos aos candelabros, queriam alcançar o sangue;
- Que, protegidos pelas trevas decorrentes de serem apagados os candelabros, misturamo-nos impiamente com irmãs e mães."
Leitores perspicazes já devem ter notado o que é que estava na origem de tamanho absurdo: no ritual da Comunhão, cristãos compartilhavam pão e vinho, "corpo e sangue de Cristo"!... É certo que, para os não iniciados, essa história soava enigmática, e também é fato que cristãos, que se sabiam perseguidos, faziam suas reuniões à noite, às escondidas, para escapar à fúria de seus oponentes. Vejam, agora, leitores, em que é que resultou a onda de boatos. (²)
Havia mais. Sigamos, ainda com Tertuliano e sua Apologia:
"Já houve quem afirmasse que adoramos uma cabeça de jumento. Essa tolice foi dita por Cornélio Tácito, no livro quinto de sua História, em que, discorrendo sobre a guerra dos judeus, tratou de sua origem [...]. Contou que saindo os judeus do Egito (ao qual denomina exílio), ao andarem pelos vastos desertos da Arábia, tiveram sede, sem que pudessem encontrar água. Foi então que viram alguns jumentos selvagens, e indo após suas pegadas, encontraram água. Agradecidos pela guia do jumento, consagraram sua cabeça como deus. Sendo os cristãos algo semelhantes aos judeus, os perversos têm dito que também eles adoram a cabeça de jumento." (³)
Podem rir, leitores. Não é para menos. O lado perverso é que, com tanta tolice como pretexto, inocentes, aos milhares, eram mortos porque não se lhes reconhecia o direito de ter um pensamento religioso divergente em relação à maioria. Execuções públicas de cristãos eram um espetáculo que as massas apreciavam, não custavam quase nada ao Estado e desviavam a atenção do populacho dos verdadeiros problemas que afetavam o Império.

Este desenho, descoberto em 1857 e datado dos dias do Império Romano,
é uma sátira ao culto cristão.
Com a legenda "Alexamenos cultua seu deus" vê-se um crucificado,
com cabeça de jumento, sendo adorado por um homem. (⁴)

(1) Annales, Livro XIV.
(2) É interessante notar que, em tempos medievais, circulava em alguns lugares da Europa a história de um menino que teria sido sequestrado e assassinado, sendo seu corpo e sangue misturado a um tipo de pão. Dessa vez, entretanto, eram cristãos que atribuíam a culpa aos judeus...
(3) As citações de Da Ira de Sêneca, dos Annales de Tácito e da Apologia de Tertuliano foram traduzidas por Marta Iansen para uso exclusivo no blog História & Outras Histórias.
(4) WRIGHT, Thomas. A History of Caricature & Grotesque in Literature and Art. London: Virtue Brothers & Co., c. 1864, p. 39.


Veja também:

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Escravos levavam almofadas para as mulheres que iam à missa

No Brasil Colonial (e mesmo durante o Império) as igrejas não tinham bancos


Em As Minas de Prata, José de Alencar descreve as matronas da cidade da Bahia (Salvador), isso em 1609, indo à igreja acompanhadas por escravos, cuja função era carregar almofadas para uso das respectivas senhoras:
"D. Luísa de Paiva e sua filha desceram do palanquim, e recebendo as saudações dos cavalheiros que estavam parados no adro, dirigiram-se à capela-mor onde já estavam as almofadas de veludo roxo, que então as damas faziam conduzir à igreja por pajens escravos." 
Fantasia de autor de romance histórico? Não, as igrejas coloniais em geral não tinham bancos para os fieis que iam à missa, e só os membros do clero e aqueles que ocupavam altos cargos na administração colonial é que tinham cadeiras à disposição (¹). Esse mau costume de não haver bancos nas igrejas, como já veremos, existiu no Brasil por longo tempo, extrapolando (e muito) os dias coloniais.
Em sua breve permanência no Rio de Janeiro como oficial do Segundo Batalhão de Granadeiros do Exército Imperial, o alemão C. Schlichthorst teve ocasião para observar:
"O Rio de Janeiro possui umas quarenta igrejas, quase todas construídas com estilo e bom gosto. Internamente parecem-se muito umas com as outras. Afetam duas formas principais: rotundas e em cruz, com vastas naves bem ventiladas sem bancos nem cadeiras. [...] Poucas têm camarotes e tribunas para os ouvintes. Estes se ajuntam na nave, os homens de pé, as mulheres sentadas nos degraus dos altares ou, de pernas dobradas, no próprio chão. Durante a missa, se a aglomeração o permite, todos se ajoelham." (²)
Ora leitores, que incômodo!... E, vejam, era na capital do Brasil, e já nos dias do Império. Mas vamos adiante, que temos um outro registro, vindo dos anos finais do Período Regencial, escrito por Daniel P. Kidder, pastor e missionário metodista, de nacionalidade americana, que assistiu, na catedral de São Paulo, a um serviço religioso em comemoração ao aniversário de fundação da cidade (25 de janeiro):
"A construção dessa igreja, como em geral a das outras, no Brasil, não leva em consideração as conveniências do orador nem as do auditório. O púlpito fica de lado e o fundo da igreja é invariavelmente ocupado pelo altar-mor. A assistência não tem onde sentar, a não ser o piso de terra, de madeira ou de mármore, conforme a suntuosidade do templo. O chão é, às vezes, juncado de folhas, outras vezes coberto com tábuas limpas, sendo que, em alguns casos, vimos transportarem cadeiras para a igreja. Por ocasião de nossa visita, a grande área que ficava para o lado de dentro das grades estava cheia de senhoras sentadas à la turque, todas juntas. Assim instaladas com frente para o altar onde estava sendo celebrada a missa, não podiam olhar para o pregador, conquanto tivesse ele tido o cuidado de se colocar ao lado direito." (³)
Kidder vinha de uma tradição religiosa em que a fala do pregador era geralmente vista como o ponto central do serviço religioso, daí estranhar a localização do púlpito na lateral da igreja - para ele, não fazia sentido, mas era a regra nas igrejas brasileiras.
Só para mostrar que a falta de bancos continuou ao longo do Século XIX, vai aqui um relato feito pelo britânico Richard Burton, já na década de 1860, em que somos discretamente informados de que, afinal, o hábito segundo o qual os fieis assistiam aos ofícios religiosos em pé ou sentados no chão começava a dar sinais de cansaço e preparava a retirada:
"Todos entraram, os brancos tomando lugar à frente e os pretos atrás, os homens de pé e as mulheres sentadas no chão. O velho costume continua no interior (⁴); somente nas cidades mais civilizadas do Brasil, as igrejas dispõem de bancos." (⁵)

(1) A moda não foi inventada no Brasil, já que o mesmo acontecia na maior parte das igrejas medievais.
(2) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 112.
(3) KIDDER, Daniel P. Reminiscências de Viagens e Permanência no Brasil. Brasília: Senado Federal, 2001, p. 199.
(4) Burton estava, nessa ocasião, em uma localidade no interior de Minas Gerais.
(5) BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Brasília: Senado Federal, 2001, pp. 278 e 279.


Veja também:

segunda-feira, 13 de junho de 2016

O que é uma tartaruga


Antes do riso, leitores, tentem definir, vocês mesmos, o que é uma tartaruga. Lucas Rigaud, um chef que viveu entre os Séculos XVIII e XIX, cozinhando para vários monarcas europeus (inclusive em Portugal), escreveu um livro de enorme sucesso, cujo título era Cozinheiro Moderno ou Nova Arte da Cozinha, em que expunha algumas de suas principais receitas culinárias.
Ora, no tal livro, cuja primeira edição, datada de 1780, foi seguida de muitas outras, Rigaud explicava como preparar pratos, dos mais simples aos mais exóticos, e, dentre eles, alguns que tinham tartaruga como principal ingrediente. Cumpria, pois, antes de qualquer outra coisa, explicar o que era uma tartaruga. Estão prontos, leitores? Lá vai:
"A tartaruga é um animal de uma espécie particular, metido em uma concha manchada de diferentes cores; a cabeça e o rabo são como os da cobra, e os pés como os do lagarto; há tartaruga do mar, da terra e de água doce." (¹)
Temos razão para supor que Lucas Rigaud imaginava que seus leitores não estavam muito familiarizados com quelônios ou testudíneos - será que ele próprio estava?
Para satisfação dos curiosos, menciono apenas os títulos das receitas que seguiam a definição: "tartaruga de fricassé", "tartaruga de molho pardo", "tartarugas para dias de carne", esta última, com o uso de tartarugas-marinhas. Satisfeitos, senhores?
Só para provar que o chef Rigaud era o mais acabado mestre das definições, veremos mais uma, desta vez quando pretendia introduzir receitas usando galeirões (cozidos, assados no espeto, recheados):
"O galeirão é um pássaro, que quase sempre vive no mar ou nas lagoas, onde mergulha até ao fundo para procurar peixes miúdos, mariscos e outros insetos..." (²)
Não se espantem leitores. A explicação seguinte era ainda mais surpreendente: "Como participa da natureza de peixe e o seu uso é permitido na Quaresma [...], direi os melhores modos de se preparar." (³)
Um pássaro que "participa da natureza de peixe"? Ai! Com tal coleção de absurdos, colocar um "[sic]" nas citações faz-se de todo dispensável, concordam?

(1) RIGAUD, Lucas. Cozinheiro Moderno ou Nova Arte da Cozinha 5ª ed. Lisboa: Typografia Lacerdina, 1826, p. 273.
(2) Ibid., p. 282.
(3) Ibid.


Veja também:

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Gente que não queria que a escravidão acabasse

A época do debate sobre a questão abolicionista, em especial a partir de 1870, foi das mais intensas na vida política brasileira, não só pelas divergências que o tema levantava, mas pelo envolvimento, em algum grau, de parte considerável da população que vivia nas grandes e nas pequenas cidades.
É fácil perceber que os proprietários de escravos estavam entre os maiores interessados nas discussões abolicionistas, mas não eram os únicos que expressavam opiniões contrárias ao fim da escravidão. Havia muitas outras pessoas cujos empreendimentos estavam vinculados à existência e manutenção do sistema escravista e que, por isso mesmo, tinham horror ao movimento que queria, tão cedo quanto possível, arrancar o País da situação nada honrosa em que se encontrava diante de outros povos, pela insistência em manter gente cativa quase às portas do Século XX. Vejamos, pois, quais eram algumas atividades que subsistiam apenas porque ainda havia escravos.

1. Comércio de escravos

É verdade que o tráfico de africanos foi definitivamente abolido em 1850 (¹) pela Lei Eusébio de Queirós, mas ainda havia quem negociasse escravos que algum proprietário queria vender, aqueles que eram parte do espólio de um falecido e, durante certo tempo, os que iam de uma Província do Império para outra. No entanto, o comércio de escravos, apesar de ser considerado um "negócio sujo", foi, por muito tempo, altamente lucrativo. O militar alemão C. Schlichthorst observou, ainda nos dias de D. Pedro I: "Os traficantes de escravos são considerados os negociantes mais ricos da cidade" (²). A cidade em questão era a capital do Brasil naquela época, ou seja, o Rio de Janeiro.
O Almanaque Laemmert de 1854 trazia o seguinte anúncio de comerciantes de escravos (³):


Era importante assegurar que os escravos eram "ladinos", já que o comércio de "negros novos" estava proibido. Expliquemos: "negros novos" eram chamados os escravizados que chegavam da África, enquanto que "ladinos" eram os escravizados já experientes na condição de cativos, que estavam no Brasil há muito tempo ou mesmo que eram nascidos no País.

2. Avaliação de Escravos

A avaliação de escravos era feita habitualmente quando, tendo morrido um proprietário, os bens deixados (nos quais estavam incluídos os escravos) deviam ter seu valor estipulado para efeitos de partilha de herança ou para a quitação de dívidas. Além disso, uma avaliação podia ser solicitada sempre que escravos fossem parte do pagamento em alguma aquisição, ou quando fossem vendidos junto com uma propriedade.
Um anúncio, também do Almanaque Laemmert de 1854, listava avaliadores de escravos (⁴) disponíveis no Rio de Janeiro:


Havia avaliadores juramentados, cuja opinião quanto ao preço de um escravo tinha valor legal.
Mais tarde, à medida que o movimento abolicionista ganhava corpo, avaliadores passaram a ser requisitados sempre que um escravo comparecia em Juízo apresentado um pecúlio com o qual pretendia comprar a própria liberdade. Avaliadores deviam, então, arbitrar o valor, para que a Justiça determinasse se o escravo tinha o suficiente para a manumissão. O aspecto interessante, aqui, é que não era incomum que o pecúlio que o escravo apresentava fosse provido por uma sociedade abolicionista. Havia senhores que, insatisfeitos com a avaliação, chegavam a alegar que os abolicionistas estavam mancomunados com autoridades, que concediam a liberdade ao escravo por um valor muito baixo.

3. Aluguel de escravos

Em lugar de fazer uso direto dos escravos em uma propriedade agrícola ou em trabalhos urbanos, alguns senhores preferiam ter cativos para aluguel, que prestavam serviços a interessados por tempo limitado. É evidente que o pagamento pelo trabalho ia para o proprietário, e não para os cativos. "No Brasil não se pode empregar seu dinheiro melhor do que comprando escravos e alugando-os para trabalhar" (⁵), afirmou Schlichthorst. Talvez o mercenário alemão até sonhasse em virar alugador de escravos, a despeito das muitas encrencas em que andava metido e de viver contando os tostões... Façamos justiça: os militares recebiam pagamentos anoréxicos, isso quando chegavam a receber alguma coisa.
Voltando ao assunto dos alugadores de escravos, no Almanaque Laemmert de 1854 aparecia este anúncio (⁶):


Observem o detalhe, leitores, junto ao último endereço: "...asseguram boa conduta"!...

4. Fornecimento de roupas para escravos

Escravos recebiam, usualmente, roupas confeccionadas com algodão rústico. Durante muito tempo os tecidos eram feitos nas próprias fazendas, mas a gradual especialização nas atividades produtivas levou ao aparecimento de fábricas e de comerciantes de tecidos que, por suposto, não trabalhavam apenas com o fornecimento de roupas para escravos, mas tinham nisso um filão importante, que desapareceria tão logo a escravidão saísse de cena. Os leitores que tiverem interesse no assunto podem ver a postagem "Algodão Para a Roupa dos Escravos".

5. Seguro de vida de escravos

Talvez pareça estranho encontrar essa faísca de capitalismo no Brasil escravocrata. Mas era verdade. Havia, sim, quem oferecia seguro de vida de escravos, não para os próprios cativos, é claro, mas para os respectivos proprietários, que investiam na compra de mão de obra (principalmente para a lavoura), e que temiam perder o investimento com a morte de trabalhadores, bastando, para isso, o surto de uma doença letal, coisa que, no século XIX, não era acontecimento nada incomum.
Vejam, a título de exemplo, o anúncio que apareceu na edição de 1871 (⁷) do Almanaque Laemmert (que, nesse tempo, tinha já outro editor):


(1) Embora nos anos imediatos ainda tenha havido algumas tentativas de introduzir - ilegalmente - africanos escravizados no Brasil.
(2) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1924 - 1926). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 135.
(3) LAEMMERT, Eduardo. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1854. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1854, p. 500.
(4) Ib., p. 362.
(5) SCHLICHTHORST, C. Op. cit., p. 150.
(6) LAEMMERT, Eduardo. Op. cit., p. 509.
(7) HARING, Carlos Guilherme. Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial da Corte e Província do Rio de Janeiro Para o Ano de 1871. Rio de Janeiro: E & H Laemmert, 1871, p. 396.


Veja também:

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Como indígenas do Brasil faziam contas

Segundo um grande número de relatos, povos indígenas do Brasil eram hábeis em usar a calculadora mais antiga do mundo. Sim, aquela mesma, leitores, que vocês devem ter usado em seus primeiros anos escolares, malgrado a oposição dos professores ou dos pais, quando acompanhavam suas tarefas. Já sabem do que estou falando, não?
Hans Staden, que foi prisioneiro dos tupinambás no Século XVI, teve sorte suficiente para escapar de virar moquém (¹) e, depois de tudo isso, ainda publicou um livro na Alemanha, no qual relatou:
"Eles [os indígenas] não sabem contar além de cinco. Quando desejam contar, nomeiam os dedos das mãos e dos pés. Se querem falar de números maiores, mostram quatro ou cinco pessoas, para dizer os dedos e artelhos que têm." (²)
Uma informação semelhante vem de Frei Vicente do Salvador, que concluiu o manuscrito de sua História do Brasil por volta de 1627; observem a tentativa de justificar por que indígenas não tinham um sistema altamente sofisticado para indicar quantidades:
"Jamais usam de pesos e medidas, nem têm números por onde contem mais que até cinco, e se a conta houver de passar daí a fazem pelos dedos das mãos e pés, o que lhes nasce da sua pouca cobiça [...]."
Explicando que indígenas tinham dificuldade em estabelecer uma conta exata dos rios que constituíam uma bacia, o jesuíta Simão de Vasconcelos observou, em obra cuja primeira edição é datada da segunda metade do Século XVII:
"[...] As nações que habitavam a circunferência [sic] do rio, e seus grandes braços, não podiam contá-la, não só pelos dedos das mãos e dos pés, por onde costumam contar, mas nem ainda com os seixos da praia [...]." (³)
Como os leitores devem ter notado, a novidade apresentada por Simão de Vasconcelos é a menção ao uso de "seixos da praia", para indicar quantidades que não podiam ser contadas com os dedos. Mas vamos, agora, a uma última referência, que nos vem da obra do Príncipe Adalberto da Prússia. Quando percorria o Xingu, anotou em seu diário de viagem, em um dia de dezembro de 1842, este relato do encontro com um chefe juruna bastante idoso, que lhe contava como reunia gente para ir fazer guerra a uma maloca pertencente a desafetos:
"Para o pôr do sol reuniram-se muitos índios diante da cabana do tuxava de Piranhaquara, um velho amável, cujos compridos cabelos brancos caíam sobre os ombros escuros. [...] Para nos mostrar o número dos que o acompanharam, contava os dedos das mãos e dos pés, e, por fim, fazendo um largo círculo em volta, apontava para as mãos e os pés de todos os circunstantes, para significar que o número dos seus era igual à soma dos dedos dos pés e das mãos de todos nós." (⁴)
Ora, meus leitores, é muito fácil constatar que, entre a descrição do método indígena de contar feita por Hans Staden, que esteve entre os tupinambás no Século XVI, e a que aparece na obra do Príncipe Adalberto, que andou entre jurunas em meados do Século XIX, há uma semelhança notável. Como pode ser isso, já que todos sabemos o quanto os séculos de colonização afetaram as variadas culturas dos povos indígenas do Brasil? 
A explicação é bastante simples: os tupinambás que Hans Staden encontrou viviam em áreas litorâneas do Sudeste e, em consequência do confronto precoce com colonizadores, não tardaram a "desaparecer"; os jurunas que o príncipe Adalberto conheceu viviam, por assim dizer, no coração do Brasil, portanto em uma área que, no Século XIX, ainda era relativamente pouco afetada pela presença de não indígenas, daí não ser uma completa surpresa a permanência de elementos da cultura tradicional, como era o caso da forma de contar. Não creio que seja necessário recordar que, para bem e/ou para mal, as coisas não permaneceram assim por muito tempo.

(1) Não foi, por muito pouco, o prato principal de um festim antropofágico.
(2) STADEN, Hans. Zwei Reisen nach Brasilien. Marburg: 1557. O trecho citado é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivo no blog História & Outras Histórias.
(3) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 37.
(4) ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazonas - Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 322.


Veja também:

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Creta, o Minotauro e a fama dos cretenses na Antiguidade

A ilha de Creta é famosa devido à lenda do Minotauro, uma dentre as muitas histórias cabeludas da Antiguidade. Minos, rei de Creta, pediu a Poseidon, divindade do oceano, um sinal da aprovação dos deuses ao seu reinado. Foi atendido, ao surgir do mar um esplêndido touro branco, que Minos deveria sacrificar. Mas, como sabem os leitores, os cretenses tinham especial apreço por touros (¹), de modo que Minos resolveu conservar o animal para si. 
Algum tempo depois a rainha trouxe ao mundo um estranho bebê, com corpo humano e cabeça de touro, ou seja, o Minotauro. Era a vingança de Poseidon, por ter sido enganado por Minos (²).
Tendo chegado à idade adulta, o monstro somente se alimentava de carne humana e, mais especificamente, de jovens de Atenas, que deviam ser enviados periodicamente, porque sua cidade fora derrotada por Minos. Trancafiado no labirinto projetado por Dédalo, o minotauro foi finalmente morto por Teseu, herói ateniense, com a ajuda de Ariadne, a bela princesa de Creta. 
É fato que lendas (ou crenças religiosas) desse calibre pululavam no mundo mediterrânico, mas é também fato que, entre os gregos, os cretenses não tinham boa fama, e não era (só) por causa do Minotauro que teria devorado moças e rapazes atenienses. Nem mesmo a crença de que Zeus Olímpico, filho de Cronos, fora levado por Gaia, sua avó, para ser criado em Creta (³), salvava a reputação dos habitantes da ilha. Políbio de Megalópolis (⁴) faz duas referências que dão uma boa ideia do conceito que se fazia, então, do povo de Creta. Diz na primeira: "Bólis, que era cretense, e, portanto, falso por natureza...", e, na segunda: "Sendo cretense e, por isso, dado a suspeitar mal..." 
Nos dias de Políbio um escritor não tinha nenhuma obrigação de ser politicamente correto. Podia ser tão mordaz quanto quisesse. Os bons modos de nosso tempo, no entanto, apenas disfarçam os verdadeiros sentimentos, e os leitores bem sabem como são as rivalidades nacionais: nós somos perfeitos, enquanto aos outros atribuímos todos os defeitos, principalmente aqueles que mais detestamos em nós mesmos. Quem discorda?

(1) Conjectura-se que, entre os cretenses, devia haver algum tipo de competição esportiva envolvendo touros, frequentemente retratados como decoração em objetos de cerâmica, sem descartar a ideia da crença em uma divindade antropozoomórfica, com as características do Minotauro.
(2) Uma versão mais tenebrosa dessa história conta que a rainha, apaixonada pelo touro branco, acabou tendo dele um filho com corpo humano e cabeça de touro...
(3) De acordo com a Teogonia de Hesíodo.
(4) As citações da História de Políbio são tradução de Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


Veja também:

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Como D. Pedro I reagia a um sermão desagradável

D. Pedro I, de acordo com Debret (¹)
A intriga palaciana vem de C. Schlichthorst, um mercenário alemão que, entre 1824 e 1826, serviu como oficial no Segundo Batalhão de Granadeiros do Exército Imperial. A par do aspecto pitoresco, tem lá sua utilidade, se quisermos entender um pouco do clima político que reinava - oh, não, que imperava na Corte do Rio de Janeiro ao tempo do primeiro imperador.
D. Pedro, como se esperava do monarca de um país que tinha uma religião oficial, ostentava a devoção conveniente que o obrigava a comparecer às missas e outras cerimônias da Igreja, em especial em datas festivas, celebradas com solenidade. Seguimos com a descrição de Schlichthorst:
"O imperador senta-se no trono, ao pé do altar-mor. Junte dele, o bispo. Em frente, os cônegos da Capela Imperial. Se a imperatriz comparece, fica só ou em companhia da filha, a princesa Maria da Glória, na tribuna imperial. Uma ou duas damas da Corte ocupam uma tribuna maior ao lado." (²)
Engana-se, porém, quem imagina que, em tal situação, o imperador era, para seus leais súditos, um exemplo acabado de bom comportamento. Tudo dependia, como já veremos, do teor do sermão. "Se a prédica agrada ao imperador", escreveu C. Schlichthorst, "ele a ouve com a maior atenção. Se, porém, escapa ao orador uma expressão que desagrada a Sua Majestade, acabou-se a sua devoção. O imperador jamais esconde sua suscetibilidade e, nessas ocasiões, vira as costas para o pregador, pigarreia, brinca com o sabre e, por outros sinais inequívocos, demonstra seu aborrecimento." (³)
A despeito da imperial falta de compostura, os oradores sacros eram, com frequência, bastante destemidos, e sua audácia tinha imperial utilidade:
"Graças, no entanto, à franqueza e destemor do clero brasileiro, os pregadores lhe fazem ouvir coisas que, cercado por uma corte escravizada, só assim poderia saber." (⁴)
Ao tempo de Pedro I havia, no Rio de Janeiro, frades notáveis pela erudição e pelo talento na oratória. Portanto, não devia ser tanto a forma que caia mal aos ouvidos de Sua Imperial Majestade, e sim o conteúdo. Todos sabemos, porém, que não escasseavam os motivos para uns puxões (exclusivamente verbais) nas imperiais orelhas. Compreende-se, compreende-se...

(1) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 3. Paris: Firmin Didot Frères, 1839. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(2) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1824 - 1826). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 114.
(3) Ibid., pp. 114 e 116.
(4) Ibid., p. 116.


Veja também:

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Couve-flor para alimentar os porcos

Se você, leitor, fosse um proprietário rural, faria cultivar uma plantação de couves-flores com a finalidade de alimentar porcos? A ideia pode parecer estranha, mas era exatamente o que estava acontecendo em uma fazenda nas imediações de Teresópolis, quando, em 1866, por lá passaram Louis e Elizabeth Cary Agassiz, com outros membros de sua expedição científica:
"Embora seja bem pequena a distância daqui à capital [Rio de Janeiro], o transporte é tão difícil e dispendioso, que o Sr. d'Escragnolle em vez de mandar ao mercado do Rio os produtos de suas plantações, alimenta a couve-flor os porcos de sua fazenda." (¹)
Já se vê que ninguém plantava couve-flor com a intenção de prover comida para porcos, mas que isso acabava acontecendo simplesmente porque não compensava levar a produção para venda no Rio de Janeiro. As estradas eram horríveis e os gêneros agrícolas, expostos ao sol e à chuva e transportados dificultosamente nas costas de mulas, fatalmente chegariam à capital do Império em condições nada satisfatórias e a um preço proibitivo. Não valia mesmo a pena, nem para produtores e nem para consumidores.
Se a situação era essa perto da capital do Império, qual não deveria ser nas Províncias mais distantes!... Alguns anos mais tarde o Visconde de Taunay observaria, em relação aos pequenos produtores rurais de Santa Catarina:
"Causa dó e admiração ver por esses caminhos mal traçados, atirados por sobre o dorso de altaneiros morros, resvalosos e pejados de pedras, ver aqueles alemães, homens e mulheres, uns carregando aos ombros e às costas pesados fardos, outros tangendo cargueiros, a fazerem periódicas viagens para levarem aos consumidores leite, manteiga fresca, queijos, banha e hortaliça com que, às terças e sextas-feiras de cada semana, abastecem a cidade do Desterro.
Quando [...] se desperdiçam somas enormes por erros palmares de administração, não era muito buscar ajudar com pequenas quantias aquela população, que vê frustradas todas as esperanças fagueiras com que se embalava, mas que hoje resignada só pede um caminho suportável para poder dar saída aos produtos de seu constante e penoso lidar." (²)
Seria pedir demais? É de Augusto-Emílio Zaluar esta observação:
"Apenas deixamos o caminho de uma dessas fazendas, um atoleiro, uma ponte desmoronada, uma estiva rota, nos vem advertir que entramos na estrada pública, subvencionada pela nação e fiscalizada pelo governo (³) provincial!" (⁴)
A lista de consequências do caos nas (poucas) estradas existentes no Brasil do Século XIX seria grande. Menciono apenas três:
  • 1. Não era estimulante produzir, porque quem cultivava a terra queria, naturalmente, vender e ter lucro, mas, sem a possibilidade de escoar a produção para os centros urbanos, só restava mesmo dar couve-flor aos porcos;
  • 2. O abastecimento das cidades ficava prejudicado (no Rio de Janeiro, grande parte do que havia no mercado só podia chegar à cidade através do porto);
  • 3. A população urbana tinha sério prejuízo, já que, em decorrência do abastecimento deficiente (em quantidade e qualidade), os preços dos alimentos eram quase sempre elevados.
Vê-se, portanto, que a deficiência na infraestrutura viária era um dos grandes problemas do Brasil no Século XIX. 
Só do Século XIX? Os leitores sabem que não.

(1) AGASSIZ, Jean Louis R. e AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 447.
(2) TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. Paisagens Brasileiras. Brasília: Ed. Senado Federal, 2009, p. 91.
(3) Neste caso, especificamente, a referência era ao governo da Província do Rio de Janeiro, e não ao da Corte - quando escreveu, o autor estava em Barra Mansa.
(4) ZALUAR, Augusto-Emílio. Peregrinação Pela Província de São Paulo 1860 - 1861. Rio de Janeiro/Paris: Garnier, 1862, pp. 11 e 12.


Veja também: