sexta-feira, 17 de junho de 2016

Tolices ditas sobre os cristãos no Império Romano

"É esta uma sociedade composta por animais ferozes, com a ressalva de que os animais não atacam os de sua própria espécie, mas o homem quer o sangue do homem."
Sêneca, Da Ira

Os leitores já devem ter visto uma situação mais ou menos assim, quando alguém chega e diz: "Ouvi dizer que..." "Ohhh!", respondem os circunstantes. E lá vem uma história cabeluda, que já andou por uma centena de bocas e ouvidos, e que agora é repetida, com direito a nuances que estava longe de ter quando a fofoca começou. Ganha mais alguns detalhes e segue em frente. Poderia ser hilariante, mas os boatos têm, às vezes, consequências desastrosas.
Em meados do Primeiro Século o cristianismo era uma novidade em Roma. Ao que se sabe, fez adeptos, a princípio, entre as camadas mais pobres da população - artesãos e escravos - mas não tardou a ganhar seguidores também nos estratos elevados. 
Em 64 d.C. um incêndio brutal reduziu a cinzas uma parte considerável da capital do Império. De acordo com Tácito, Nero, sob suspeita de estar envolvido no incêndio, tratou logo de apontar supostos responsáveis pela catástrofe:
"Para afastar os numerosos rumores, Nero incriminou e passou a punir com toda sorte de tormentos a uma gente desagradável, vulgarmente chamada de cristãos." (¹)
Esta foi a primeira grande perseguição aos cristãos dentro do Império Romano, mas não foi a única. Outras viriam, à medida que boatos sem qualquer fundamento era espalhados entre a população ignorante. No ano 200 d.C., sob governo de Sétimo Severo, o Senado desencadeou uma dessas "caçadas", e foi nessa ocasião que Tertuliano escreveu, em defesa da fé cristã, sua famosa Apologia. Através dela é que ficamos sabendo de algumas dentre as muitas tolices que eram ditas a respeito dos cristãos no mundo romano, e que serviam de pretexto para que os adeptos da nova religião fossem presos, torturados e mortos. Lemos, na obra de Tertuliano:
"Os crimes ocultos, que se diz que cometemos, são estes:
- Que em uma reunião à noite, sacrificamos e comemos um menino;
- Que molhamos e empapamos um pão no sangue do menino que havia sido degolado, e que cada um dos presentes à reunião comeu um pedaço desse pão;
- Que partes desse pão foram lançadas a alguns cachorros, que, presos aos candelabros, queriam alcançar o sangue;
- Que, protegidos pelas trevas decorrentes de serem apagados os candelabros, misturamo-nos impiamente com irmãs e mães."
Leitores perspicazes já devem ter notado o que é que estava na origem de tamanho absurdo: no ritual da Comunhão, cristãos compartilhavam pão e vinho, "corpo e sangue de Cristo"!... É certo que, para os não iniciados, essa história soava enigmática, e também é fato que cristãos, que se sabiam perseguidos, faziam suas reuniões à noite, às escondidas, para escapar à fúria de seus oponentes. Vejam, agora, leitores, em que é que resultou a onda de boatos. (²)
Havia mais. Sigamos, ainda com Tertuliano e sua Apologia:
"Já houve quem afirmasse que adoramos uma cabeça de jumento. Essa tolice foi dita por Cornélio Tácito, no livro quinto de sua História, em que, discorrendo sobre a guerra dos judeus, tratou de sua origem [...]. Contou que saindo os judeus do Egito (ao qual denomina exílio), ao andarem pelos vastos desertos da Arábia, tiveram sede, sem que pudessem encontrar água. Foi então que viram alguns jumentos selvagens, e indo após suas pegadas, encontraram água. Agradecidos pela guia do jumento, consagraram sua cabeça como deus. Sendo os cristãos algo semelhantes aos judeus, os perversos têm dito que também eles adoram a cabeça de jumento." (³)
Podem rir, leitores. Não é para menos. O lado perverso é que, com tanta tolice como pretexto, inocentes, aos milhares, eram mortos porque não se lhes reconhecia o direito de ter um pensamento religioso divergente em relação à maioria. Execuções públicas de cristãos eram um espetáculo que as massas apreciavam, não custavam quase nada ao Estado e desviavam a atenção do populacho dos verdadeiros problemas que afetavam o Império.

Este desenho, descoberto em 1857 e datado dos dias do Império Romano,
é uma sátira ao culto cristão.
Com a legenda "Alexamenos cultua seu deus" vê-se um crucificado,
com cabeça de jumento, sendo adorado por um homem. (⁴)

(1) Annales, Livro XIV.
(2) É interessante notar que, em tempos medievais, circulava em alguns lugares da Europa a história de um menino que teria sido sequestrado e assassinado, sendo seu corpo e sangue misturado a um tipo de pão. Dessa vez, entretanto, eram cristãos que atribuíam a culpa aos judeus...
(3) As citações de Da Ira de Sêneca, dos Annales de Tácito e da Apologia de Tertuliano foram traduzidas por Marta Iansen para uso exclusivo no blog História & Outras Histórias.
(4) WRIGHT, Thomas. A History of Caricature & Grotesque in Literature and Art. London: Virtue Brothers & Co., c. 1864, p. 39.


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