Segundo um grande número de relatos, povos indígenas do Brasil eram hábeis em usar a calculadora mais antiga do mundo. Sim, aquela mesma, leitores, que vocês devem ter usado em seus primeiros anos escolares, malgrado a oposição dos professores ou dos pais, quando acompanhavam suas tarefas. Já sabem do que estou falando, não?
Hans Staden, que foi prisioneiro dos tupinambás no Século XVI, teve sorte suficiente para escapar de virar moquém (¹) e, depois de tudo isso, ainda publicou um livro na Alemanha, no qual relatou:
"Eles [os indígenas] não sabem contar além de cinco. Quando desejam contar, nomeiam os dedos das mãos e dos pés. Se querem falar de números maiores, mostram quatro ou cinco pessoas, para dizer os dedos e artelhos que têm." (²)
Uma informação semelhante vem de Frei Vicente do Salvador, que concluiu o manuscrito de sua História do Brasil por volta de 1627; observem a tentativa de justificar por que indígenas não tinham um sistema altamente sofisticado para indicar quantidades:
"Jamais usam de pesos e medidas, nem têm números por onde contem mais que até cinco, e se a conta houver de passar daí a fazem pelos dedos das mãos e pés, o que lhes nasce da sua pouca cobiça [...]."
Explicando que indígenas tinham dificuldade em estabelecer uma conta exata dos rios que constituíam uma bacia, o jesuíta Simão de Vasconcelos observou, em obra cuja primeira edição é datada da segunda metade do Século XVII:
"[...] As nações que habitavam a circunferência [sic] do rio, e seus grandes braços, não podiam contá-la, não só pelos dedos das mãos e dos pés, por onde costumam contar, mas nem ainda com os seixos da praia [...]." (³)
Como os leitores devem ter notado, a novidade apresentada por Simão de Vasconcelos é a menção ao uso de "seixos da praia", para indicar quantidades que não podiam ser contadas com os dedos. Mas vamos, agora, a uma última referência, que nos vem da obra do Príncipe Adalberto da Prússia. Quando percorria o Xingu, anotou em seu diário de viagem, em um dia de dezembro de 1842, este relato do encontro com um chefe juruna bastante idoso, que lhe contava como reunia gente para ir fazer guerra a uma maloca pertencente a desafetos:
"Para o pôr do sol reuniram-se muitos índios diante da cabana do tuxava de Piranhaquara, um velho amável, cujos compridos cabelos brancos caíam sobre os ombros escuros. [...] Para nos mostrar o número dos que o acompanharam, contava os dedos das mãos e dos pés, e, por fim, fazendo um largo círculo em volta, apontava para as mãos e os pés de todos os circunstantes, para significar que o número dos seus era igual à soma dos dedos dos pés e das mãos de todos nós." (⁴)
Ora, meus leitores, é muito fácil constatar que, entre a descrição do método indígena de contar feita por Hans Staden, que esteve entre os tupinambás no Século XVI, e a que aparece na obra do Príncipe Adalberto, que andou entre jurunas em meados do Século XIX, há uma semelhança notável. Como pode ser isso, já que todos sabemos o quanto os séculos de colonização afetaram as variadas culturas dos povos indígenas do Brasil?
A explicação é bastante simples: os tupinambás que Hans Staden encontrou viviam em áreas litorâneas do Sudeste e, em consequência do confronto precoce com colonizadores, não tardaram a "desaparecer"; os jurunas que o príncipe Adalberto conheceu viviam, por assim dizer, no coração do Brasil, portanto em uma área que, no Século XIX, ainda era relativamente pouco afetada pela presença de não indígenas, daí não ser uma completa surpresa a permanência de elementos da cultura tradicional, como era o caso da forma de contar. Não creio que seja necessário recordar que, para bem e/ou para mal, as coisas não permaneceram assim por muito tempo.
(1) Não foi, por muito pouco, o prato principal de um festim antropofágico.
(2) STADEN, Hans. Zwei Reisen nach Brasilien. Marburg: 1557. O trecho citado é tradução de Marta Iansen, para uso exclusivo no blog História & Outras Histórias.
(3) VASCONCELOS, Pe. Simão de S. J. Notícias Curiosas e Necessárias das Cousas do Brasil. Lisboa: Oficina de Ioam da Costa, 1668, p. 37.
(4) ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazonas - Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 322.
Veja também:
Não me lembro de usar essa máquina de calcular, ainda que o deva ter feito, como todas as crianças.
ResponderExcluirA sua produção para o blog tem sido muito profícua. Mal tenho tempo para a acompanhar e temo que os próximos meses será ainda um pouco pior. Mas prometo vir espreitar, sempre que puder.
Beijinho
Ruthia d'O Berço do Mundo
Tenho mantido, por enquanto, as três postagens semanais, mas não sei por quanto tempo isso será possível.
ExcluirEspero que não deixe de escrever, ao menos de vez em quando, em O Berço do Mundo - o post que li há umas duas horas, sobre a Covilhã, está muito interessante.
Apareça quando puder.
Abraços...