Tão diversas quanto eram as culturas ameríndias, assim também variavam as técnicas de pesca por elas utilizadas. Em comum havia, porém, o fato de que quase todos os povos indígenas tinham nos peixes um elemento muito importante da alimentação. O que veremos aqui é uma pequena lista de técnicas de pesca empregadas por indígenas do Brasil, que está longe de ser completa, mas que certamente possibilitará a você, leitor, uma percepção de como esses povos conseguiam, em sua inserção no ambiente, obter o sustento de um modo inteligente e compatível com os recursos de que dispunham. (¹)
1. Pesca com timbó
Em uma carta que escreveu ao Geral dos Jesuítas em 31 de maio de 1560, o padre José de Anchieta explicava que os indígenas do litoral da Capitania de São Vicente eram hábeis em pescar no mar, quando, por ser época de desova, um número muito grande de peixes entrava pelas rochas e outros lugares de passagem estreita. Uma espécie de paliçada era feita para fechar a saída até que a maré baixasse, e os peixes, tontos pelo timbó (²) que os índios haviam posto na água, eram facilmente apanhados: "encurralados aí, e embriagados com o suco de certo lenho que os índios chamam timbó, são apanhados sem o mínimo trabalho muitas vezes mais de doze mil peixes grandes." (³)
Será que Anchieta estava exagerando? Embora não seja fácil obter uma resposta conclusiva, podemos ao menos estar certos de que no primeiro século da colonização as condições de mar e terra na América do Sul eram muitíssimo diferentes daquelas que encontramos hoje.
2. Pesca com pequenas redes
Gabriel Soares, na segunda metade do Século XVI, descreveu o modo como indígenas da Bahia faziam a pesca por meio de pequenas redes, às quais chamavam puçás:
"Tainhas se tomam em redes, porque andam sempre em cardumes (...). E de noite, com águas vivas, as tomam os índios com umas redinhas de mão, que chamam puçás, que vão atadas em uma vara arcada; e ajuntam-se muitos índios, e tapam a boca de um esteiro com varas e rama, e como a maré está cheia tapam-lhe a porta, e põem-lhe as redinhas ao longo da tapagem quando a maré vaza, e outros batem na água no cabo do esteiro, para que se venham todas abaixo a meter nas redes, e desta maneira carregam uma canoa de tainhas, e de outro peixe que entra no esteiro." (⁴)
Em comum com a pesca descrita por Anchieta, tem-se a ideia de encurralar os peixes para que sejam apanhados com maior facilidade - neste segundo caso, porém, com auxílio de redes.
Indígenas ficaram famosos pela habilidade em flechar peixes, quase sempre sem erro. Dos tupinambás, disse Gabriel Soares:
"São os tupinambás grandes flecheiros (...), e há muitos que matam no mar e nos rios da água doce o peixe à flecha, e desta maneira matam mais peixes que outros à linha (...)." (⁵)
4. Pesca com anzóis feitos de espinhos
Os amoipiras, ao tempo de Gabriel Soares, não tinham praticamente contato com portugueses e, por isso, continuavam a usar ferramentas de pedra, em lugar das facas, machados e tesouras que outros indígenas obtinham mediante escambo. Serviam-se, para pescar, de anzóis feitos com espinhos, ou capturavam peixes com flechadas:
"Pesca este gentio com uns espinhos tortos que lhe servem de anzóis, com que matam muito peixe, e à flecha, para o que são mui certeiros, e para matarem muita caça." (⁶)
5. Pesca fluvial com redes grandes feitas com lianas
Espécies vegetais de caule brando eram usadas pelos tapuias quando queriam fazer uma rede bem grande, que pudesse impedir aos peixes a passagem por um rio, segundo explicação também de Gabriel Soares, embora essa técnica nãos prescindisse de umas boas flechadas:
"Não pescam estes índios nos rios à linha, porque não têm anzóis, mas para matarem peixe, colhem uns ramos de umas ervas como vides, mas mui compridos e brandos, e tecem-nos como rede, os quais deitam no rio, e tapam-no de uma parte a outra; e uns têm mão nesta rede e outros batem a água em cima, donde o peixe foge e vem descendo até dar nela, onde se ajunta, e tomam às mãos o peixe pequeno, e o grande matam a flechadas, sem errarem um." (⁷)
6. Pesca com cercado de estacas parcialmente submersas e mergulho de indígenas para buscar os peixes
Já no Século XIX, integrantes da Expedição Langsdorff tiveram ocasião de presenciar, no interior do Brasil, o modo como pescavam os apiacás. A técnica vai descrita por Hércules Florence, desenhista da Expedição:
"Em dez minutos chegamos ao pari, nome que dão a uma paliçada em parte fora d'água, em parte submersa, feita com estacas fincadas no álveo do rio e atravessadas por outras, sendo os interstícios tapados com juncos. A água eleva-se e transborda. Na base da paliçada praticam buracos circulares, a cuja boca adotam mundéus que ficam retidos contra a correnteza por um pau. Os índios mergulham dentro da paliçada, voltam à tona com os mundéus, tiram o peixe e tornam a mergulhar para repô-los em seus lugares. Em pouco tempo ficou a piroga cheia de peixe, pelo que regressamos à maloca, onde nos ofertaram parte da pescaria." (⁸)
Dentro da divisão do trabalho que predominava entre a maior parte dos povos indígenas do Brasil, a pesca era considerada uma atividade masculina. Meninos aprendiam com os pais e com outros homens as técnicas de caça e pesca que garantiam parte da alimentação de seu grupo. Quando chegavam à idade adulta, já eram verdadeiros especialistas.
(1) As informações que temos foram, no entanto, transmitidas por missionários jesuítas, colonizadores, viajantes, e não pelos próprios indígenas, e cabe lembrar que refletem o modo como europeus viam e interpretavam o que acontecia.
(2) O timbó, tóxico para os peixes, não causava dano aos indígenas, e por isso era usado para facilitar a pescaria.
(3) ANCHIETA, Pe. Joseph de, S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1933, p. 111.
(4) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 289.
(5) Ibid., p. 321.
(6) Ibid., p. 347.
(7) Ibid., p. 353.
(8) FLORENCE, Hércules. Viagem Fluvial do Tietê ao Amazonas de 1825 a 1829. Brasília: Ed. Senado Federal, 2007, p. 219.
(9) CHAMPNEY, James Wells. Viagens no Norte do Brasil, 1860. O original pertence à BNDigital; a imagem foi editada digitalmente para facilitar a visualização neste blog.
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Gostei muito do post, Marta. Para além da curiosidade do invasor, ele remete-nos, de imediato, para a seguinte questão: como era a vida daqueles povos antes da chegada dos europeus? Bem sei que há muitos trabalhos sobre o assunto, mas interessa-me mais a questão filosófica.
ResponderExcluirUma boa semana :)
É difícil saber com exatidão quais eram suas concepções sobre o sentido da vida, conceitos de sociedade e outras questões semelhantes. Praticamente todas as informações de que dispomos chegaram até nós na visão de alguém externo às culturas ameríndias, como eram colonizadores, navegadores e missionários. Quando "filtramos" o que escreveram, corremos ainda o risco de fazê-lo segundo nossas próprias ideias. É mesmo complicado, concorda?
ExcluirClaro que é complicado, Marta. Mas há alguns contributos de antropólogos, e estou a lembrar-me, entre outros, de Claude Lévi-Strauss, que não descuram completamente o assunto.
ResponderExcluirSim, concordo, mas Lévi-Strauss e Darcy Ribeiro, por exemplo, fundamentaram suas ideias em comunidades indígenas contemporâneas a eles; não significa que os valores fossem, necessariamente, os mesmos das comunidades ameríndias anteriores a Colombo e Cabral. Não há nisso apenas o problema da troca de informações com colonizadores, mas também uma questão de decurso de tempo (quase 500 anos...).
ExcluirQue estranha evolução sofreu o Brasil, hoje quase não se come peixe por aí. Como senti saudades de peixe fresco, quando morei no interior de S. Paulo...
ResponderExcluirAbraço, Marta
É verdade, em relação ao interior de São Paulo. Mas no leste de Santa Catarina (já morei lá) o peixe é mais frequente na alimentação, sem falar dos que vivem na Amazônia - aí é peixe todo dia.
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