quinta-feira, 30 de abril de 2020

Florália e os jogos florais em Roma

Flora e Zéfiro eram um casal de deuses menores do panteão romano, cujo culto, remetendo às mais remotas tradições dos sabinos, simbolizava a amada estação da primavera: a deusa personificava a erupção das flores após os meses de inverno, e Zéfiro, por seu turno, o vento alegre que agitava as árvores e fazia a delícia dos dias já ensolarados. 
Florália era, inicialmente, a festividade de caráter religioso celebrada em honra da deusa Flora. Os romanos, porém, que amavam competições e outros espetáculos, acabaram por anexar à tradição religiosa os jogos florais, que iam do final de abril ao início de maio.
Era ocasião favorável a festas públicas: o frio já diminuía, o sol tendia a cooperar e, para os romanos, o pretexto religioso era convincente quando se tratava de povoar o ano com feriados. Portanto, a festa conhecida como Florália e os jogos florais cabiam à perfeição nesse cenário.


terça-feira, 28 de abril de 2020

Felinos sagazes

É um daqueles casos que, se não resolvem nenhuma das questões propostas pela "Grande História", ao menos servem muito bem para humanizar o estudo e a compreensão do modo como viviam os que foram antes de nós. Secundariamente, não deixa de ser uma boa ilustração da proverbial sagacidade dos gatos.
Assim, sem mais delongas, vamos à aventura felina contada por frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, autor setecentista, no Novo Orbe Serafico Brasilico. Tudo começou quando um novo guardião, sem nenhuma estima por gatos, foi designado para o "Convento da Alagoa":
"Há poucos anos foi das partes da Bahia para este Convento da Alagoa por seu guardião certo religioso. Assim como chegou, ou para divertimento do trabalho do governo, ou para experiências de uma escopeta que levou consigo [sic], entrou a dar fogo nos gatos que havia na casa, e seria talvez em despique de alguma ceia, que lhe haveriam tirado à ligeireza da unha. Matou um ou dois, mas nos outros foi tal a advertência do seu natural instinto, que não apareceram mais de dia, nem ainda de noite aonde o Guardião os pudesse ver. [...]" (¹)
Havia, porém, um religioso, frei Manoel da Cruz, que, franciscanamente, amava os gatos, com especial devoção a um deles, a quem acolhia em sua cela para lhe dar algum petisco. Ora, o dito bichano, ciente do que fazia o guardião, passou a sumir nas horas claras, e mesmo sendo já noite, enquanto o desalmado gaticida não ia dormir. Depois disso, porém... Continua Jaboatão:
"[...] tanto que era noite, e o guardião estava recolhido, saía o gato do seu esconderijo, vinha à cela do seu benfeitor, tomava a ração e se retirava até o outro dia às mesmas horas. [...]" (²)
Não pensem, leitores, que a gatice acabou aqui. As idas e vindas felinas teriam durado um ano e meio, tempo que o guardião avesso a miados permaneceu no convento. Mas um dia, afinal, foi embora, e deixo que Jaboatão conclua a história, ficando a critério de quem lê acreditar ou não:
"[...] O mais notável deste caso foi, que no dia de manhã, em que o guardião despedido do convento se foi embarcar em uma canoa na praia à porta do carro do mesmo convento, entrou nele este gato com alguns mais, e não tornaram a sair, nem a esconder-se." (³)

(1) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil Segunda Parte. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1859, p. 612.
(2) Ibid.
(3) Ibid.


Veja também:

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Como os servidores do imperador asteca se comportavam quando falavam com ele

Monarcas de todos os lugares sempre tiveram certos rituais no trato com os súditos, em especial quando o rei ou imperador era visto ou se fazia ver como uma figura dotada de atributos divinos. O cerimonial que os cercava tinha a função de estabelecer a distinção entre quem mandava e quem obedecia, justificando ou tentando justificar por que motivo alguém tinha tantos privilégios, enquanto a maioria tinha poucos direitos e quase infinitas obrigações. 
Sabe-se, pelo relato de Bernal Díaz del Castillo, um soldado espanhol que acompanhou Hernán Cortés na "conquista" do México, que Montezuma (¹), o grande imperador asteca, exigia de seus servidores certos gestos cerimoniais que, continuamente, demonstravam a submissão que lhe era devida:
"[...] Quando iam falar com ele [Montezuma], deviam tirar as mantas de qualidade e colocar roupas de pouco valor, que, no entanto, deviam ser limpas, deviam entrar descalços e com os olhos voltados ao chão, jamais olhando diretamente em seu rosto, fazendo três reverências antes de chegar à sua presença, dizendo nelas: "Senhor, meu senhor, grande senhor!", e quando lhe diziam por que estavam ali, com poucas palavras os despachava; [os servidores] sem erguer o rosto quando se despediam dele, antes com o rosto e olhos postos na terra onde estavam, saíam sem voltar as costas até que estivessem fora da sala." (²)
Para quem vive em um Estado democrático na atualidade, tudo isso pode parecer muito estranho, mas, pergunto: a seu modo, as cerimônias exigidas por Montezuma não são comparáveis, por exemplo, ao ritual da corte de Luís XIV, estabelecido, diga-se de passagem, para atrair a nobreza, mantê-la obediente mediante a servidão às regras de etiqueta, enquanto o monarca, a seu gosto, governava, absoluto, como "Rei Sol"? Nesse sentido, as diferenças estariam apenas em questões de aparência. Na essência, abaixo da superfície, os objetivos eram mais ou menos os mesmos.

(1) Ou Moctezuma, também conhecido como Montezuma II.
(2) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


terça-feira, 21 de abril de 2020

Era uma vez um rei que mandava navegar

Era uma vez - por que não? - era uma vez um rei. O rei tinha uma porção de conselheiros, gente da nobreza, funcionários públicos e homens interessados em negócios, que davam palpites no governo, cuidando para fazer o monarca pensar sempre que eram próprias as ideias que favoreciam os interesses de outros. Assim, o rei achava que mandava, a gente da Corte jurava obedecer, como se as ordens reais viessem de Deus, e tudo ficava bem.
Pouco tempo antes, uma frota do reino fizera uma viagem muito longa, alcançando, finalmente, a meta que era perseguida há décadas e lançava gente corajosa em arriscadas aventuras marítimas. O empreendimento se provara lucrativo e era preciso consolidar a nova rota de comércio, além de causar melhor impressão no mandatário das terras distantes, que não ficara muito entusiasmado com a frota anterior que, para dizer a verdade, lhe parecera insignificante.
Dessa vez o rei queria fazer bonito e mandou para o mar uma bela expedição, com o que havia de melhor em navios, com muitos marinheiros, sob o comando de alguns dos melhores navegadores do reino. A festa de despedida dos que iam viajar para tão longe foi muito concorrida. O rei em pessoa compareceu. 
Já no mar, a frota dirigiu-se um pouco mais que o habitual para oeste, parou em um lugar aparentemente desconhecido e aproveitou para reabastecer as reservas de água, embora, naquele momento, não houvesse falta dela. Por ordem do comandante, um navio voltou ao reino para entregar notícias ao rei daquilo que até ali se fizera, enquanto os demais seguiram viagem, não sem trabalhos e perdas significativas. O rei mandara, seus fiéis servidores obedeciam, mesmo ao preço da vida.
Lição de casa para vocês, leitores: coloquem os nomes corretos em personagens e lugares, além de datas, nesta historinha. E vamos falar sério.
Vasco da Gama, que liderou a armada que chegou às Índias em 1498, completando a sonhada rota marítima ao Oriente, levava consigo uns cento e sessenta homens, entre marinheiros e soldados, em apenas quatro navios. Já a frota sob o comando de Cabral, que zarpou de Portugal em 9 de março de 1500, era composta por treze embarcações e levava mais de mil homens. A diferença era enorme.
Portanto, que fique entendido de uma vez por todas: a esplêndida frota comandada por Cabral foi aparelhada para ir às Índias, não para descobrir o Brasil, independentemente de ter o descobrimento ocorrido como um acidente de percurso ou de ser um objetivo secundário da empresa. A expectativa no Reino, ao enviar gente para repetir a viagem de Vasco da Gama,  era firmar relações sólidas de comércio no Oriente, possibilitando a remessa constante de especiarias - no sentido amplo - para a Europa, assim abrindo portas para lucros estratosféricos. Ninguém lançaria ao mar um conjunto de treze luzidos navios, com tantos marinheiros, entre os quais alguns dos mais distintos navegadores portugueses, para ir a um lugar que ninguém sabia o que era, se era, e onde era. Essa é a realidade em relação ao descobrimento do Brasil, por menos lisonjeira que pareça.


quinta-feira, 16 de abril de 2020

Familiares do Santo Ofício

Tácito, autor romano, escreveu, tratando do governo do imperador Tibério: "Assim os delatores, uma espécie de homens que existem para desgraça pública e que nunca são satisfatoriamente punidos, eram aliciados com prêmios" (¹). Ao que parece, muitos séculos após a queda do Império Romano, o Tribunal do Santo Ofício percebeu que, para seus propósitos investigativos, era conveniente contar com indivíduos dessa espécie descrita por Tácito, e deu a eles o título de "familiares do Santo Ofício".
Em termos práticos e claros, os familiares do Santo Ofício eram bisbilhoteiros que tinham a confiança dos inquisidores, e andavam, por conseguinte, a investigar a vida alheia, para denunciar suspeitas de heresia que pudessem interessar ao inquisidor de plantão. 
Ser familiar, porém, era garantia de status, porque, para isso, era preciso passar por uma investigação quanto à "limpeza de sangue", outra infame mania da época. Isto posto, esse indivíduo de sangue imaculado entrava no exercício de funções diversas, conforme as circunstâncias requeressem, além de, em Portugal e seus domínios - incluindo o Brasil, portanto - desfrutar de uma gama de privilégios, que o isentavam de muitas obrigações ordinariamente impostas à gente "comum", conforme estipulado por uma Carta Régia de 1562, que, como se vê pela data, foi expedida no reinado do muito famoso rei Dom Sebastião.
Em nosso tempo, semelhante fofoqueiro oficial pareceria, talvez, digno da máxima execração, mas quando a Inquisição estava no auge, o título de familiar era reputado honroso, como se infere por esta menção na Nobiliarchia Paulistana (escrita no Século XVIII por Pedro Taques de Almeida Paes Leme), ao tratar de certo homem chamado João Vieira da Silva, casado com dona Bernarda de Almeida: "[...] João Vieira da Silva, natural da freguesia de S. Jorge de Lima de Selheiro, termo de Guimarães. Tomou juramento de familiar do Santo Ofício em São Paulo a 7 de janeiro de 1766 por carta passada em Lisboa a 16 de janeiro de 1764, registrada no livro 18 a 19 do dito mês pelo secretário André Cursino de Figueiredo". Levando em conta que a Nobiliarchia inclui uma enxurrada de elogios aos seus "nobres", presume-se o quanto um indivíduo desses deveria andar de nariz empinado e, talvez, ser temido, mesmo em São Paulo, onde a Inquisição não era bem-vinda (²).

(1) TÁCITO. Annales, Livro IV. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Missionários jesuítas, em confronto com paulistas aprisionadores de índios, ameaçavam-nos com a Inquisição. Para burla geral, os religiosos foram lembrados de que o inquisidor, se ousasse ir à vila, seria lançado serra abaixo, ao intentar a escalada do áspero Caminho do Mar.


terça-feira, 14 de abril de 2020

Ciclistas entregavam telegramas no final do Século XIX

No final do Século XIX o mundo parecia estar ficando mais rápido, não no giro do planeta, é claro, mas no modo de vida dos seus habitantes. Composições ferroviárias e automóveis, por exemplo, permitiram deslocamento mas rápido e, por isso mesmo, mais frequente de pessoas, sem falar no desenvolvimento do transporte de cargas. Foi aí que alguém teve a ideia de acelerar a entrega de telegramas no Rio de Janeiro usando bicicletas. A notícia apareceu no jornal especializado Semana Sportiva, edição de 8 de setembro de 1900:
"Começou no dia 1º do corrente o serviço de estafetas ciclistas da repartição telegráfica da Estrada de Ferro Central do Brasil, sob a direção do Sr. Luiz Rouanet. 
Corretamente uniformizados, dispondo de excelentes máquinas e sujeitos a um regulamento severo, os novos estafetas provarão à evidência, a importância desse grande melhoramento para o público, que receberá com presteza os telegramas que lhe forem dirigidos.
No meio da indiferença geral dos poderes públicos para com o ciclismo, esse fato é digno de ser registrado como confissão de que a bicicleta está apta a desempenhar papel proeminente, além de simples esporte, o que tem aliás acontecido nos principais países da Europa e da América, tendo sido mesmo adotada em vários exércitos, com excelentes resultados.
Vimos anteontem na redação d'A Notícia um estafeta ciclista que lhe levou da Central um despacho em três minutos!" (¹)
Era rápido e, para os padrões da época, muito eficiente. Não dependia de nenhum combustível (²). Como é que ninguém pensou nisso antes?

(1) SEMANA SPORTIVA, nº 401, 8 de setembro de 1900.
(2) Bastava o suor dos ciclistas que entregavam telegramas e a manutenção regular das bicicletas.


quinta-feira, 9 de abril de 2020

Domiciano, "nosso senhor e deus"

Ao ditar um documento oficial, o imperador Domiciano começou: "Nosso senhor e deus assim ordena..." Falava de si mesmo, é claro. Que audácia! E, de acordo com Suetônio (¹), desde então ficou entendido que competia a todos chamá-lo por esse modo, quer de viva voz, quer por escrito. 
Domiciano era filho de Vespasiano e irmão de Tito, imperadores precedentes. Esteve à frente do Império entre os anos 81 e 96 d.C., época em que tratou de centralizar o poder, afastando o Senado, tanto quanto possível, da esfera decisória. Ao menos nas aparências, foi um adepto decidido das antigas tradições romanas, inclusive no que tange à religião - fazendo-se incluir no conjunto de divindades que deveriam ser adoradas.
Augusto, imperador entre 27 a.C. e 14 d.C., não só recusou ser chamado "senhor", como proibiu que o mesmo tratamento fosse dado a seus familiares (²). Entende-se que o Império, em seu tempo, era algo novo, e dificilmente Augusto se sentiria seguro e confortável para receber um título que remetia ao panteão de deidades. Os romanos tinham ódio à realeza, suprimida entre eles para dar lugar à República, e não era conveniente oferecer a mais tênue impressão de que pretendesse ser rei. 
Não obstante, depois da morte, Augusto passou a ser honrado como "divo", e, portanto, contado entre os deuses. O mesmo sucedeu com outros imperadores. A Tibério, seu sucessor, ofereceu-se a condição de deus em vida, pretendendo-se, para isso, o estabelecimento de templos e sacerdócio específico; contudo, o imperador recusou tal honra, e, ainda conforme Suetônio (³), somente permitiu que lhe dedicassem estátuas que não fossem colocadas em recintos consagrados a práticas religiosas. Aliás, foi além, recusando mesmo ser chamado "Imperator" e "Dominus".
Imperador Domiciano (⁵)
Mas veio Calígula, e, com ele, a deificação do imperador vivo ganhou força. Fez substituir a cabeça de deuses pela sua em esculturas gregas (⁴), e, colocado entre Castor e Pólux, admitiu ser cultuado. O caminho estava limpo para que, alguns imperadores mais tarde, Roma aceitasse sem muito questionamento que Domiciano exigisse o título de "senhor e deus". Para os romanos que, por esse tempo, viam na religião apenas uma prática tradicional e/ou um dever patriótico, a mania do imperador metido a deus talvez não soasse coisa muito ofensiva. Para as minorias adeptas de outros conceitos religiosos, a situação era difícil e até perigosa. A recusa em reconhecer a divindade do imperador ou em oferecer sacrifícios aos deuses por sua prosperidade e longevidade podia resultar no confisco dos bens (⁶) e na sentença de morte.

(1) Cf. SUETÔNIO. De vita Caesarum, Livro VIII. 
(2) Ibid., Livro II.
(3) Ibid., Livro III. 
(4) Ibid., Livro IV.
(5) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. 
Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 220. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(6) Uma prática nada incomum em Roma, sempre que imperadores perdulários procuravam um pretexto para refazer as finanças debilitadas. Afirma-se que Calígula, por exemplo, não precisou de mais de um ano para gastar toda a fortuna acumulada por Tibério, seu antecessor.


terça-feira, 7 de abril de 2020

Escravos libertados em circunstâncias curiosas

No Brasil, durante muito tempo, escravos foram libertados apenas por decisão do proprietário, isso porque era improvável que alguém que trabalhasse nas lavouras de cana-de-açúcar do Nordeste conseguisse obter o dinheiro necessário para a compra da liberdade. A possibilidade de que um escravo chegasse a ser livre aumentou à medida que a mineração ganhou importância: era possível faiscar ouro nas horas vagas, e alguns cativos, com sorte, chegavam a juntar o bastante para a alforria. Além disso, era comum que um escravo que encontrasse uma grande quantidade de ouro fosse, em recompensa, alforriado, mas havia, também, senhores tão sovinas que, mesmo enriquecendo do dia para a noite, nem por isso concediam a liberdade ao cativo que fizera tão feliz descoberta.
Contudo, há registros de alguns escravos que obtiveram a liberdade em circunstâncias curiosas. Veremos alguns casos.

1. Escravos da Fazenda de Santa Cruz, que carregaram a cadeirinha de arruar de D. João enquanto esteve doente, foram por ele libertados:
"Eram doze os escravos que carregavam o príncipe regente; e este, em reconhecimento a tão bons serviços, os libertou e às suas mulheres, filhos e pais, dando-lhes uma pensão suficiente." (¹)

2. Escravos que carregaram a liteira de D. Leopoldina em sua visita a Salvador, no ano de 1826, foram alforriados:
"[...] indo o imperador com as pessoas imperiais debaixo do pálio, acompanhado por todas as autoridades e pessoas notáveis da cidade, subindo pela ladeira da Preguiça, indo a imperatriz em uma cadeira mui rica e a princesa em outra (²), e os carregadores vestidos de jaquetas verdes agaloadas e chapéus com armas de prata. Esses pretos carregadores tiveram carta de liberdade." (³)

3. O casal Agassiz, liderando a Expedição Thayer, assistiu a um casamento no Rio de Janeiro. Depois de recriminar, com absoluta razão, a rudeza do clérigo que oficiou a cerimônia, veio a observação: 
"O novel esposo já era um liberto; a sua esposa foi libertada e recebeu ainda da liberalidade do senhor um pequeno terreno como dote..." (⁴)

4. Já nos estertores da escravidão, quando o movimento abolicionista era intenso, integrantes da comissão que deveria realizar estudos para implantação da Estrada de Ferro Madeira e Mamoré foram recepcionados no Pará com um banquete, no qual a libertação de um escravo foi anunciada:
"O Dr. Cordeiro de Castro representa a Sociedade Filantrópica Emancipadora, e em nome dela vem trazer as mais entusiásticas saudações à comissão de engenheiros; e como prova significativa dos seus sentimentos anuncia a manumissão do escravo Ladislau, um dos criados que servem a mesa, cuja carta confia ao Dr. Morsing para entregar pessoalmente ao novo concidadão.
Uma salva de palmas acolheu as últimas palavras do orador, e todos os convivas se mostraram sensibilizados com a agradabilíssima surpresa.
O Dr. Morsing, expressando a Ladislau os votos que fazia para que fosse um cidadão útil à sociedade, entregou-lhe a carta de redenção, a qual mais tarde foi assinada por todos os engenheiros." (⁵)

5. Para concluir, voltemos no tempo à Roma Antiga. De acordo com Suetônio (⁶), no ano 37 a.C. Otávio, depois chamado César Augusto, libertou vinte mil escravos. Generosidade? Talvez não. A ideia é que trabalhassem como remadores em uma esquadra que acabara de construir.

(1) MORAES, Alexandre José de Mello. Crônica Geral do Brasil vol. 2. Rio de Janeiro: Garnier, 1886, p. 117.
(2) Cadeiras de arruar.
(3) MORAES, Alexandre José de Mello. Op. cit., p. 251.
(4) AGASSIZ, Jean Louis R. et AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 145.
(5) ______ Itinerário e Trabalhos da Comissão de Estudos da Estrada de Ferro do Madeira e Mamoré. Rio de Janeiro: Soares e Niemeyer, 1885, 40.
(6) De vita Caesarum, Livro II.


quinta-feira, 2 de abril de 2020

Teria a educação romana contribuído para a decadência do Império?

Em termos sociais, a educação romana era brutalmente desigual. Isso quer dizer que, para meninos provenientes das camadas inferiores da sociedade, a escola era uma espécie de antro de tortura, em que, à custa de castigos severos, aprendia-se a ler, escrever e fazer algumas contas, em um grau de competência que poderia ser classificado como sofrível. Para a elite, no entanto, a situação era outra. Não que os castigos físicos desaparecessem, mas o espectro de conhecimentos que se devia introduzir na cabeça dos meninos era mais amplo, incluindo gramática e retórica. Além do latim, era preciso aprender o grego, e muito bem, porque vários autores vistos como modelos e, por isso, devidamente estudados, haviam escrito nessa língua. Gostando ou não, os estudantes eram treinados para o debate e para a defesa de ideias e opiniões. 
Diante disso, surge uma questão intrigante: seria a educação tradicional romana mais uma dentre as muitas causas para o declínio e queda do Império?
Vejamos duas possibilidades de interpretação, não mutuamente excludentes:
Primeira proposição
O ensino ministrado à elite, com foco em habilidades para a carreira de leis e da política (o sucesso na primeira geralmente levava à segunda), não estimulava vocações científicas, e, até onde se sabe, foram poucos os romanos que poderiam ser equiparados aos gregos e egípcios, por exemplo, em se tratando de conhecimentos técnicos, sendo a arquitetura um dos campos que merece elogios como exceção honrosa. Lembrem-se, leitores, de que Roma teve seu primeiro relógio de sol quando, durante as Guerras Púnicas, conquistou Catânia e, de lá, trouxe o curioso "monumento" que servia para marcar as horas. Por essa linha de raciocínio, a falta de uma prática constante de investigação verdadeiramente científica, em larga escala, "engessou" o Império, impedindo, inclusive, que a agricultura se desenvolvesse com a adoção de novas técnicas, que poderiam elevar a produtividade do solo. 
Segunda proposição
A agricultura romana empacou, mas não só por falta de ciência; a massa de escravos fazia todo o trabalho, de modo que quase ninguém, entre os homens livres, se ocupava em buscar inovações técnicas/tecnológicas que melhorassem a produtividade; por seu turno, escravos dificilmente iriam se empenhar por novas invenções e, quanto a outras atividades econômicas, além da agricultura, a situação não era diferente.
Qual das proposições leva vantagem? Deixo aos leitores essa reflexão.