O Gato de Botas, gravura de Gustave Doré (*) |
Veja só, leitor: Crispim, o mais novo dos três filhos de um moleiro, recebe como herança um Gato que usa botas. Os dois irmãos mais velhos, que haviam herdado, respectivamente, o moinho e o burro, ficaram em boas condições para prover o próprio sustento, mas Crispim se lamenta, decepcionado, supondo que o bichano lhe é absolutamente inútil. Está, porém, completamente enganado, pois o gato, muito habilidoso, acaba fazendo com o que o rapaz se case com a filha do rei, para, finalmente, reinar em seu lugar. Narração inocente? Nem tanto.
Em primeiro lugar, e sem discutir eventuais interpretações subjacentes à narrativa, o Gato engana o rei seguidamente, dizendo que os presentes que lhe traz são enviados pelo "Marquês de Carabás". Segue enganando, ao propor que os camponeses digam ao rei que as terras por onde passa, ao percorrer o país, pertencem ao mesmo supracitado Marquês. Mente, dizendo que Crispim foi atacado por ladrões, que roubaram sua roupa e o jogaram no rio com a intenção de matá-lo. E por aí vai, mas não é só.
Que rei é esse que se deixa enganar por um gato? Que rei é esse que desconhece os próprios domínios? Bela lição para as crianças sobre a autoridade governamental. Quer mais? Tudo o que o gato faz sucede porque seu amo, cansado de procurar trabalho, lhe diz que seu sonho é ser rei. Ora, só se pode concluir que ser rei é ótimo porque um governante vive muito bem e não precisa trabalhar!
Quem acha que tais imposturas são coisa apenas d'O Gato de Botas, engana-se e muito. O respeito aos mais velhos é amplamente propalado pelo lobo que engana e ataca a vovó, lobo esse que em seguida é ecologicamente assassinado pelos caçadores, Cinderela chega a ser princesa não por esforço próprio, mas por obra da fada-madrinha, a princesinha é chantageada pelo sapo, primeiro para levá-lo ao quarto, depois para beijá-lo...
É por isso que os contos de fadas são deliciosos e, embora haja quem queira reescrevê-los, tornando-os politicamente corretos, percebe-se que essas investidas editoriais em geral não são muito bem sucedidas, mesmo porque travam uma batalha inglória contra a natureza humana. Gostamos de ambientar nossos contos em tempos remotos (ótimo, sei de muita gente que se interessou por História Medieval por causa deles), realizamos através deles nossas fantasias que, na vida real, são impossíveis, mas não somos tolos a ponto de supor em nós mesmos uma perfeição que não temos, embora aceitemos, candidamente, chamar os contos de fadas de histórias infantis.
Há algum tempo vi um guri ser repreendido pela mãe que insistia para que cantasse "Não atire um pau no gato", em lugar da versão tradicional que você, leitor, conhece muito bem. Diga-me, quem já viu alguém tiranizando algum gato por causa da tal música? Pois eu não vi, e o fato de que a criançada continue a cantar e os felinos proliferem como sempre mostra que ninguém sai por aí a matar gatos a pauladas só porque cantou algum dia "Atirei um pau no gato-tô..." Como vê, estamos diante de profundas reflexões!
(*) HOOD, Tom. Fairy Realm. London: Ward, Lock, and Tyler, 1865. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
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(*) HOOD, Tom. Fairy Realm. London: Ward, Lock, and Tyler, 1865. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
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