quarta-feira, 29 de maio de 2013

Fraudes e corrupção nos tempos coloniais - Parte 6

O patrono dos fraudadores e corruptos do Brasil Colonial


Seu nome era Sebastião Fernandes do Rego, mas bem poderia ser chamado de patrono dos fraudadores e corruptos do Brasil Colonial. Como se verá, seu currículo foi admirável, e seria grandemente merecedor do título.
Vindo do Reino, é certo que já se encontrava em São Paulo na segunda década do século XVIII, onde, à custa de bajulações e aparente amabilidade, conseguiu infiltrar-se nos meandros da administração colonial. Entre o povo paulista, no entanto, a opinião sobre a detestada criatura era a pior possível. Arrogante e opressor, não contava de modo algum com a estima popular. Todavia, aparentava não se importar com isso, e até apreciar tal fato, desde que tudo sempre lhe corresse da forma mais lucrativa possível. Era verdadeira ave de rapina quando se tratava de apropriar-se do patrimônio alheio...
Conseguiu, pois, fazer-se amigo e confidente do detestado Capitão-General Antônio da Silva Caldeira Pimentel, fato que lhe abriu as portas para muitas de suas proezas, que no entanto já praticava desde os tempos em que o cargo máximo da Capitania era exercido por Rodrigo César de Meneses, constando na Nobiliarchia Paulistana ter sido este último o responsável por nomear Sebastião Fernandes do Rego para o cargo de Provedor da Casa de Fundição, fato, aliás, do maior significado para o que logo mais se dirá.
Resumindo a "folha de serviços" de Fernandes do Rego, pode-se lembrar ter ele sido o arquiteto da prisão do sertanista Bartolomeu Pais de Abreu, sendo também dado como quase certo que esteve envolvido na morte de João Leite da Silva Ortiz (provavelmente por envenenamento), genro de Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, a quem sabia estar-se dirigindo a Lisboa para notificar El-Rei quando aos desmandos que se faziam na Colônia. Nada surpreendente, no entanto, quando se considera o caso dos irmãos João e Lourenço Leme, que acabando de voltar das minas do Cuiabá com uma grande quantidade de ouro, foram acolhidos pelo Provedor da Casa de Fundição com aparentes provas de grande cortesia. Diante de tão bons tratos, não se deram conta de que estava a preparar uma armadilha para apropriar-se de seus bens.
Cabe aqui observar que estavam longe da santidade esses dois irmãos, João e Lourenço Leme - os crimes que haviam perpetrado eram bem merecedores de severíssima punição. No entanto, caindo na arapuca do tal Sebastião Fernandes do Rego, foram acusados, perseguidos, caçados e, sendo um morto, o outro acabou preso e condenado à morte.
Onde andaria, portanto, o erro, se eram, de fato culpados dos crimes de que eram acusados? Ocorre que, antes de deixarem São Paulo, buscando refúgio na região de Itu, de onde eram originários,  haviam tanto acreditado na suposta amizade de Sebastião Fernandes do Rego que lhe haviam confiado a guarda do ouro trazido das minas... e desse ouro jamais se ouviu falar novamente. Sabe-se, pois, em que mãos ficaram, aquelas cujo dono havia se encarregado de, sorrateiramente, fazer lembrança dos atos delituosos de seus "amigos" ituanos.
Porém, a máxima dentre as suas falcatruas ainda estava por vir - uma audácia quase ilimitada, um atentado contra um dos mais sagrados interesses da Coroa, os Reais Quintos do Ouro.
Tendo Rodrigo César de Meneses, por ordens expressas vindas da Corte, seguido para o Cuiabá, de lá enviou a nada desprezível quantia de oito arrobas de ouro (*), os "Reais Quintos", que deviam, de São Paulo, ser encaminhados a Lisboa, o que se fez, segundo a tramitação legal. Contudo, quando se abriu a "encomenda", já na capital do Reino, constatou-se, para escândalo geral, que nada havia de ouro nos caixotes, mas apenas chumbo de caça!
Ora, como ninguém na Fazenda Real acreditaria em tolices supersticiosas sobre alguma mágica transformação do ouro em chumbo, iniciou-se rigorosa devassa. Curiosamente, Fernandes do Rego, que tão amigo de Rodrigo César se mostrara, não hesitou em tentar incriminá-lo. Com a ajuda de Caldeira Pimentel, talvez também implicado no caso, as investigações se arrastaram. Longas discussões e idas e vindas de testemunhos e acusações acabaram resultando na prisão de Fernandes do Rego, primeiro na fortaleza de Santos, depois no Rio de Janeiro, vindo, finalmente, a transferência para Lisboa. Teve os bens confiscados, mas, ao que tudo indica, devia ter ainda boa reserva deles em algum lugar seguro, de modo que, uma vez solto, já em 1739 - acreditem, senhores leitores - retornou a São Paulo, disposto a estabelecer-se como comerciante. Mas...
Uma segunda ordem de prisão e novo confisco de bens foram decretados contra ele, além da instituição de nova devassa. O patrono dos fraudadores e corruptos do Brasil Colonial não viveria, no entanto, para pagar por seus crimes. Morreu em abril de 1741, de modo que a ordem de prisão ficou sem efeito, embora o confisco tenha se realizado. E a Nobiliarchia Paulistana conclui o caso com estas palavras:
"Procedeu-se pela ouvidoria de São Paulo na devassa, e nela ficou assaz manifesta a sacrílega culpa do autor dela, e segunda vez se verificou um geral confisco nos bens de Sebastião Fernandes do Rego pelo doutor Domingos Luís da Rocha, cujos autos a todo o tempo publicarão esta verdade para horror e confusão dos vindouros."

(*) Isso segundo a Nobiliarchia Paulistana, de Pedro Taques de Almeida Paes Leme. Outras fontes mencionam quantidade um pouco superior. De qualquer modo, uma pequena variação na quantidade de ouro roubada em nada altera os fatos.


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domingo, 26 de maio de 2013

Fraudes e corrupção nos tempos coloniais - Parte 5

Expedientes fraudulentos no apresamento de índios para escravização


Se os colonizadores que viviam no Brasil praticavam fraudes cabeludas em suas relações comerciais (veja postagem anterior), não seria razoável supor que, no trato com os povos indígenas, agissem segundo maior lisura. Pelo contrário.
A ideia que em geral se tem de brancos e/ou mamelucos aprisionando índios para a escravidão é a dos ataques brutais às reduções nas quais padres praticavam a catequese. Desarmados, esses índios podiam oferecer muito pouca resistência aos seus algozes, e é fato que ataques assim aconteciam e não eram raros. Mas não eram a única forma de aprisionar índios e obrigá-los a trabalhar de graça, nem eram apenas paulistas os que se aventuravam sertão adentro para "descimento do gentio" ou buscar o "remédio do sertão", como então se usava dizer. A fraude era, também, uma rotina, e Frei Vicente do Salvador fez dela uma relato pungente.
Antes de mais nada, por questões formais, era preciso obter das autoridades uma permissão para o apresamento. Esta se dava, igualmente formal, para os casos de índios que faziam guerra aos colonos e se recusavam a receber a catequese. Hipocritamente, era a chamada "guerra justa". A partir daí, os interessados na captura de ameríndios agiam com astúcia, de preferência a pegar em armas. Algum mameluco que bem sabia a língua dos índios era enviado a "negociar a paz" e, conforme explicou Frei Vicente do Salvador, "ordinariamente bastava a língua do parente mameluco, que lhes representava a fartura do peixe e mariscos do mar, de que lá careciam (¹), a liberdade de que haviam de gozar, a qual não teriam se os trouxessem por guerra." (²)
Em suma, a proposta era simples: aceitar a escravidão (pintada como favorável), ou encarar a guerra. Os índios eram valentes, mas a essa altura já tinham conhecimento de que suas armas pouco podiam contra as dos colonizadores.
A tática funcionava. O engano prevalecia. Segue Frei Vicente do Salvador:
"Com estes enganos, e com algumas dádivas de roupas e ferramentas que davam aos principais, e resgates que lhes davam pelos que tinham presos em cordas para os comerem [sic!], abalavam aldeias inteiras, e em chegando à vista do mar, apartavam os filhos dos pais, os irmãos dos irmãos, e ainda às vezes a mulher do marido, levando uns o capitão mameluco, outros os soldados, outros os armadores, outros os que impetraram a licença e alguns os vendiam [...]." (³)
Tudo isso tão cristãmente...
O caso é que esses índios, do ponto de vista legal, não eram exatamente escravos. Podia-se requerer deles apenas trabalho, mas não eram mercadoria, e quem com eles ficava sabia disso e o declarava ao recebê-los. Entretanto, havia um subterfúgio muito empregado para mergulhá-los de vez na escravidão:
"...quem os comprava, pela primeira culpa ou fugida que faziam, os ferrava na face, dizendo que lhe custaram seu dinheiro, e eram seus cativos; quebravam os pregadores os púlpitos sobre isto, mas era como se pregassem em deserto." (⁴)

Indígenas aprisionados, de acordo com Debret (⁵).
Chama a a atenção o fato de Debret ainda ter visto tal horror
na primeira metade do 
século XIX!

(1) Isto quando se ia fazer apresamento no interior da Colônia.
(2) História do Brasil, c. 1627.
(3) Ibid.
(4) Ibid.
(5) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 22 de maio de 2013

Fraudes e corrupção nos tempos coloniais - Parte 4

Pouca (ou nenhuma) honestidade nos pesos e medidas


Hoje voltamos ao Compêndio Narrativo do Peregrino da América, de Nuno Marques Pereira, para mais alguns relatos de fraudes correntes no Brasil Colonial. Era nas "vendas", os armazéns da época, que muitos enganos se praticavam, sendo os mais comuns relacionados à pouca honestidade nos pesos e medidas (ainda que as Ordenações do Reino fossem severas a esse respeito) e, muito usualmente, no misturar água a bebidas, como se vê neste trecho do autor e obra citados:
"Ouvi então perguntar o vendeiro a um seu escravo, quanto tinha feito aquele dia em dinheiro. Respondeu-lhe o escravo que quatro mil réis. Pouco fizestes a respeito dos mais dias, lhe disse o vendeiro. E assim mais lhe perguntou quanta água deitara no vinho e nas mais bebidas. Disse-lhe o escravo que no vinho deitara duas canadas de água, e no vinagre, três, e que também caldeara a aguardente do Reino com a da terra. E logo lhe perguntou mais o vendeiro se calcara com os dedos o fundo da medida de folha de flandres em que se media o azeite, porque fazendo cova pela parte de fora no meio da medida, com o peso do liquor se derrama, e parece ao que compra que está cheia. E finalmente lhe perguntou se lançara o vinho de alto na medida, para se derramar, e parecer que estava cheia. Tudo fiz, senhor, como vossa mercê me tem ensinado, lhe disse o escravo. Pois assim hás de fazer, lhe disse o vendeiro, porque nestas casas quem dá o seu a seu dono, fica sem coisa alguma." (¹)
Depois desse autêntico manual de fraude nos negócios, vale lembrar que era atribuição dos vereadores de uma localidade, segundo as Ordenações, a fiscalização dos preços e fornecimento de alimentos na área sob sua jurisdição. (²) Para ilustrar o funcionamento dessa disposição, diga-se que em São Paulo, nos anos de 1623 e 1627, precisou a Câmara interferir para garantir que o pão vendido ao povo tivesse um peso razoável, e como medida extrema, em 1631, recorreu à fintação do trigo (³) para assegurar o abastecimento, segundo conta Affonso de E. Taunay:
"...Precisou a Câmara de 1631 recorrer ao expediente violento da "fintação de seiscentos alqueires de trigo, para sustento do povo, entre os principais lavradores"." (⁴)
É quase desnecessário afirmar que, quanto ao vinho (tão prezado pelos colonizadores, já saudosos do Reino) e demais mercadorias, as coisas corriam mais ou menos da mesma maneira. Para cada infração às leis devidamente notada e punida, havia uma infinidade de outras, que escapavam ao alcance das autoridades ou para as quais simplesmente se faziam "vistas grossas", no dizer popular.

(1) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, pp. 266 e 267.
(2) Ver, por exemplo, o Livro Primeiro, Título LXVI, § 8.
(3) Estabelecia-se uma quantidade e os produtores eram obrigados a contribuir com sua parte, a título de imposto.
(4) TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 104.


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domingo, 19 de maio de 2013

Fraudes e corrupção nos tempos coloniais - Parte 3

Estupendas usuras nos mercados...


Gregório de Matos invectivou em seus versos, no século XVII, a condição em que via a cidade do Salvador, capital da Bahia, e também, durante bom tempo, do Brasil. Escreveu, por exemplo:

"Qual homem pode haver tão paciente,
Que vendo o triste estado da Bahia,
Não chore, não suspire, e não lamente?"

Ou então:

"...que ande pois a fidalguia
vendida assim por dinheiro,
só porque há nisso vanglória!
Boa história."

São mais famosos, talvez, os versos abaixo, e os que, por hora, mais nos interessam:

"Estupendas usuras nos mercados,
Todos, os que não furtam, muito pobres,
E eis aqui a cidade da Bahia."

Falemos, pois, da usura.
Frei Vicente do Salvador (¹), na primeira metade do século XVII, explicava que os traficantes de escravos que vinham à Bahia oferecer sua "mercadoria" aos senhores, principalmente aos que tinham engenhos, jamais aceitavam fazer negócios à vista, Estranho? Não, facílimo de explicar: é que os juros pelas compras a prazo, eram de... 100% ao ano:
"... se vale um escravo vinte mil réis pago logo, o dão fiado por um ano por quarenta, e o que mais é que por isso o não querem já vender a dinheiro de contado, senão fiado, e não há quem por isto olhe."
Outro que observou a malfadada prática da usura que se fazia na Bahia, escrevendo um século mais tarde, foi Nuno Marques Pereira, o autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América, livro famoso nos tempos setecentistas. Em sua narrativa, coloca estas palavras na boca de um vendeiro, que parece estar arrependido de suas más práticas, pelos bons conselhos do "Peregrino":
"Na verdade, senhor, me disse o vendeiro, que não sei com que palavras vos signifique o quanto vos estou obrigado. Agora conheço que estou no inferno pelos grandes pecados que neste particular tenho cometido. Porque não só roubei a este povo com a venda, mas também pelo negócio de usuras no dinheiro que dei a alguns homens, que mo pediram por empréstimo, com a condição de vinte e de trinta por cento, ficando-me penhores em meu poder." (²)
Desnecessário é dizer que essa história termina com o "Peregrino" recomendando ao vendeiro que, tal qual Zaqueu, o publicano, mencionado no Evangelho Segundo S. Lucas, trate de colocar a vida em ordem, pela devolução do que seria produto de fraude. Há que se observar, no entanto, que o tal vendeiro até era modesto nos juros exigidos, se comparados aos que se extorquiam  no infame negócio dos seres humanos escravizados.
Ora, alguém dirá, a Bahia dos tempos coloniais era mesmo um mar de corrupção!
A Bahia? Meus leitores devem lembrar-se de que Salvador era a cidade mais importante no Brasil da época, e era nela que vivia a maioria das pessoas em condições de escrever e analisar a vida ao seu redor, daí termos testemunhos em maior número sobre as falcatruas que aí se praticavam do que sobre as de outros lugares. É só isso. A verdade é que em quase toda a Colônia as práticas escusas nos negócios eram, no mínimo, muito frequentes. Na próxima postagem trataremos mais disto.

Vista da Cidade de Salvador nos tempos coloniais (³)

(1) História do Brasil c. 1627.
(2) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 276.
(3) DENIS, Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1837.


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quarta-feira, 15 de maio de 2013

Fraudes e corrupção nos tempos coloniais - Parte 2

O contrabando de tabaco


De volta a Antonil (veja a postagem anterior), verificaremos que, em relação ao contrabando do tabaco que se produzia no Brasil, atribuíam-se penas draconianas aos infratores. Resultado? O de sempre - ainda maior ousadia da parte dos que praticavam descaminhos. Basta ler:
"Qualquer descaminho do tabaco, por qualquer destas partes do Brasil, fora do Registro (¹) e Guias, debaixo do que tudo vai despachado, tem por pena a perda do tabaco e da embarcação em que se achar, e mais cinco anos de degredo para Angola ao autor dessa culpa. [...].
Mas ainda maior prova do grande valor e lucro que dá o tabaco é o perderem muitos, por ambição, o temor destas penas [...]. E para isso parece que não há indústria de que se não use para o embarcar e tirar das embarcações às escondidas, à vista dos mesmos ministros, que como Argos (²) de cem olhos vigiam, quando não são juntamente Briareus (³) de cem mãos para receber, e mais mudos que os peixes para calar." (⁴)
Ora, se o lucro obtido com o contrabando de tabaco era tão significativo, a ponto de, independente das penas severas aos infratores, haver ânimo para que se empreendessem os descaminhos, resta saber quais eram as artimanhas empregadas pelos que tentavam burlar a fiscalização imposta. Nisso também Antonil explica muito bem:
"Para apontar algumas destas indústrias, direi, por relação dos casos em que se apanham não poucos, que uns mandaram o tabaco dentro das peças de artilharia, outros dentro das caixas e fechos do açúcar, outros arremedando as caras também de açúcar muito bem encouradas. Serviram-se outros dos barris de farinha da terra (⁵), dos de breu e dos de melado, cobrindo com a superfície mentirosa o que ia dentro, em folhas de flandres. Outros valeram-se das caixas de roupa, fabricadas a dois sobrados, para dar lugar a esconderijos, de frasqueiras que estão à vista, pondo entre os frascos de vinho outros também de tabaco. [...]. E não faltou quem lhe desse lugar até dentro de umas imagens ocas de santos, assim como uns carpinteiros de navios o esconderam em paus ocos, misturados entre uns e outros, de que costumam valer-se." (⁶)
Vê-se que a imaginação trabalhava a todo vapor e com  tal fertilidade, que foi capaz mesmo de legar um sólido patrimônio de "ensinamentos" às futuras gerações!

(1) Pontos oficiais de cobrança de impostos.
(2) Esse gigante mitológico dormia com cinquenta olhos fechados, enquanto os outros cinquenta permaneciam abertos.
(3) Para os antigos gregos, Briareus era um dos três gigantes que ajudaram Zeus a dominar os Titãs. Era dotado de cinquenta cabeças e cem braços, daí o uso dessa imagem por Antonil, já que cem braços significam também cem mãos... O restante os leitores inferirão por si mesmos.
(4) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, p. 126.
(5) Farinha de mandioca.
(6) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Op. cit., p. 127.


Veja também:

domingo, 12 de maio de 2013

Fraudes e corrupção nos tempos coloniais - Parte 1

Sendo agrícolas muitas das atividades coloniais, não deve parecer estranho que na prática da agricultura e/ou tarefas a ela relacionadas ocorressem muitos dos atos de fraude e corrupção da época. Igualmente, era no incipiente comércio de vilas e outras povoações que gente depravada encontrava campo fértil para agir. Isso, é claro, sem contar os clássicos corruptos que infectavam a administração colonial, que não poucas vezes era, a respeito, omissa ou conivente.
Não se tem aqui, de modo algum, a pretensão de desvendar toda a intrincada rede de corrupção que permeava a vida colonial. O que se terá, no entanto, nesta e nas próximas postagens, servirá para dar uma ideia do que ocorria. E depois há quem ainda chame Gregório de Matos de "Boca do Inferno". Sim, talvez fosse mesmo, mas muito de suas sátiras se firmava em fatos perversos do quotidiano que o poeta, com habilidade, ousava mencionar, enquanto havia gente que preferia, mesmo detendo o poder de mando, fazer de conta que não observava.

Fraudes no embarque do açúcar para a Europa


Tratando de como era o açúcar posto em caixas de madeira para embarque, Antonil descreve possíveis fraudes:
"A marca do engenho, também de fogo, se põe na mesma testa da caixa, junto ao fundo, no canto da banda direita, para que se possam averiguar as faltas que poderiam haver no encaixamento do açúcar. Porque assim como às vezes nas pipas de breu que vêm de Portugal se acham pedras breadas, e nas peças de pano de linho fino por fora, no meio se acha pano de estopa ou menor número de varas que as que se apontam na face da peça, assim se poderiam mandar nas caixas de açúcar menos arrobas das que se apontam na marca, e, no meio da caixa, açúcar mascavado por branco, como já tem acontecido, por culpa de algum caixeiro infiel." (*)
Cabem aqui duas observações:
a) As fraudes, segundo aponta Antonil, eram via de mão dupla: vinha da Metrópole breu e tecido inferiores àquilo que se supunha comprar, ia da Colônia açúcar inferior em meio ao de alta qualidade. O antigo rei dos hebreus tinha toda razão: nihil sub sole novum...
b) A outra observação é relacionada ao fato de Antonil creditar a fraude no açúcar a "algum caixeiro infiel". Era perfeitamente possível que um caixeiro contratado retirasse açúcar branco e colocasse mascavado, retendo o produto de qualidade para si; mas não se pode deixar de aventar outras origens para a fraude, inclusive por ordem de senhores de engenho, fato que Antonil, seguindo uma lógica comum em seus dias, talvez tenha preferido não enunciar.

(*) ANTONIL, André João (ANDREONI, Giovanni Antonio). Cultura e Opulência do Brasil por Suas Drogas e Minas. Lisboa: Oficina Real Deslandesiana, 1711, pp. 92 e 93.


quarta-feira, 8 de maio de 2013

Músicos em São Paulo no Período Colonial - Parte 2

Na postagem anterior tratou-se de gente que, em São Paulo, nos velhos tempos coloniais, dedicava-se, além do cuidado de fazendas e de apresar índios, a algo mais: fazer música. A crermos, porém, no que escreveu Pedro Taques de Almeida Paes Leme na Nobiliarchia Paulistana, um dos mais notáveis músicos que viveu entre paulistas não era natural da Capitania de São Vicente - vinha de Pernambuco, e era filho de um importante comerciante que deixara o Reino para estabelecer-se no Brasil:
"A nobre família de Penteados teve origem em São Paulo em Francisco Rodrigues Penteado, natural de Pernambuco, para onde veio ser morador seu pai Manoel Corrêa [...], saindo de Lisboa, e em Pernambuco se estabeleceu com negócio grande. " (¹)
Esse Manoel Corrêa devia ter um certo apreço pela instrução dos filhos, já que fez Francisco Rodrigues Penteado estudar as chamadas "artes liberais", vindo a ser, ainda de acordo com Pedro Taques "excelente e com muito mimo na de tanger viola, e destro na arte da música".
Tempos depois, tendo o pai necessidade de mandar alguém ao Reino para receber uma herança, julgou que seu tão instruído filho era a pessoa certa e de confiança para isso...
"O filho, porém", observou Pedro Taques, "vendo-se em uma Corte das mais nobres da Europa e com prendas para conciliar estimações, cuidou só no estrago que fez do cabedal que recebeu, consumido em bom tratamento e amizades."
Ora, depois de torrar a tal herança que fora receber, o rapaz deu-se conta de que estava metido em uma grossa encrenca, que o impedia de simplesmente voltar para casa de mãos abanando. Teve sorte, no entanto, o perdulário. Seguimos com Pedro Taques:
"Refletindo depois que não estava nos termos de dar satisfação da comissão com que passara de Pernambuco a Lisboa, embarcou na frota do Rio de Janeiro com Salvador Corrêa e Sá e Benavides em 1648, o qual, tendo de passar a Angola, como passou, para a restaurar dos holandeses, o deixou na cidade do Rio muito recomendado pelo interesse de lhe instruir nos instrumentos músicos a suas filhas e ao filho mais velho Martim Corrêa, com quem estava unido pela igualdade dos anos."
Vê-se, portanto, que seus conhecimentos musicais foram valiosa ferramenta para começar a safar-se da enrascada em que se metera. As musas eram mesmo suas amigas, e não parou aí a virada de sorte que o alcançou:
"Do Rio de Janeiro, pela demora em Angola do dito Salvador Corrêa de Sá, que ficou feito general daquele reino, passou para a vila de Santos Francisco Rodrigues Penteado, e já desta vila subia para São Paulo contratado para casar com uma sobrinha de Fernão Dias Paes, que foi quem o ajustou para este contrato. Em São Paulo casou Francisco Rodrigues Penteado com D. Clara de Miranda [...]."
Sim, acabou contratado (²) para casar-se com ninguém menos que uma sobrinha de Fernão Dias Paes, o famoso "caçador de esmeraldas", homem notável e abastado, que chegava a receber cartas do próprio rei de Portugal.
Depois da tenebrosa aventura no Reino, era já tempo de nosso ótimo músico mas gastador-mor sossegar, não?
E Pedro Taques conclui, dizendo:
"Francisco Rodrigues Penteado, com sua mulher D. Clara de Miranda, fez [sic] o seu estabelecimento em fazenda de cultura no termo da vila de Parnaíba."
Sabe-se apenas que teve sete filhos, todos naturais de São Paulo. Teria ele, em meio às lides de sua fazenda, continuado a tanger viola, ao menos por diversão? Teria ensinado música a seus filhos? Ou teria abandonado por completo seu modo anterior de vida, tornando-se um respeitado senhor de terras e escravos, como tantos outros seus contemporâneos? Infelizmente, não se tem resposta conclusiva, mas não será demasiada fantasia, penso, imaginá-lo em casa, à noite, candeias acesas, a dedilhar uma das antigas canções do Reino para quem o quisesse ouvir.

(1) Lembrem-se os senhores leitores de que, nos tempos coloniais, não havia regras estritas para dar nome e sobrenome a quem nascia, de modo que os filhos não tinham, necessariamente, o sobrenome de seus pais, mas podiam ter o de algum parente próximo, a quem se desejava homenagear, ou mesmo o do padrinho de batismo.
(2) Os casamentos de "gente importante", na época, eram contratados geralmente pelos pais ou parentes próximos, à revelia dos noivos ou, pelo menos, das noivas. Logo trataremos disso neste blog.


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domingo, 5 de maio de 2013

Músicos em São Paulo no Período Colonial - Parte 1

Não foram poucos os autores que, descrevendo os paulistas do Período Colonial, transmitiram as mais desfavoráveis impressões. Gente sanguinária, ávida por aprisionar escravos, rebelde às ordens de governantes coloniais e mesmo àquelas vindas expressamente da Metrópole lusitana, tendo por diversão procurar ouro e meter-se em brigas, emboscadas e mais atrocidades. Ufa!
Pedro Taques de Almeida Paes Leme, ele próprio de família paulista já bem arraigada, tentou mostrar que essas impressões negativas eram pura difamação. Pode, no entanto, não ter sido tão feliz em provar a origem nobre da gente de São Paulo (*), mas deixou relatos que nos propiciam uma visão da vida diária que levavam os aventureiros que, transpondo o terrível Caminho do Mar, acabavam por estabelecer-se no Planalto, longe por topografia, senão por distância, do controle que Portugal tentava, ainda que muitas vezes em vão, exercer na Colônia.
Assim é que a Nobiliarchia Paulistana, ao lado de intermináveis (e, às vezes, contraditórias) genealogias, nos informa que paulistas, além de caçadores de índios e incitadores de rebeliões, podiam eventualmente, ser também bons músicos, quer para cantar, quer para tocar instrumentos. Sim, é isso mesmo!
Diz-nos Pedro Taques que "Ana Maria da Cunha foi casada com [...] o capitão João Vaz dos Reis, natural de Mogi das Cruzes e cidadão de São Paulo. [...] E teve sete filhos nascidos em São Paulo". Um desses sete filhos era o "padre Belchior Vaz dos Reis, clérigo de São Pedro, que foi muito estimado pela excelência da voz para missas cantadas."
Não se deve esquecer, aqui, que as missas cantadas eram acontecimentos especiais, celebradas em ocasiões festivas, para as quais concorria o povo de toda a região, e não apenas quem residia nas imediações da igreja, o que devia contribuir bastante para a fama do religioso que, em tempos de grande devoção popular, acrescentava música às palavras nem sempre bem compreendidas da liturgia em latim. Como se sabe, onde as palavras não são claras, a música pode fazer toda a diferença em inspirar sentimentos devotos.
Outro que deixou de si memória pelas habilidades musicais foi Baltasar Velho de Godoy, sobre quem Pedro Taques anotou:
"Francisca Leme casou com o capitão Baltasar Velho de Godoy, que tange excelentemente harpa, filho de Manoel Velho de Godoy e de sua mulher Estefânia de Quadros [...] e teve dez filhos, naturais de Itu, que casaram em Parnaíba."
O mais notável dos músicos referidos por Pedro Taques foi, no entanto, um pernambucano de nascimento, que, depois de muita travessura, acabou estabelecido em Santana de Parnaíba. Ele será assunto da próxima postagem.

(*) Em geral, os que de fato detinham algum título, eram da pequena nobreza lusitana, sem grandes posses ou terras.


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quarta-feira, 1 de maio de 2013

Tatus

Pra falar a verdade, acho repugnante a mania de ver os animais simplesmente como recurso para as panelas, mas é preciso admitir que, à vista dos colonizadores europeus que vieram viver no Brasil, era importante e até indispensável um conhecimento de que coisas eram "comestíveis", já que a sobrevivência na América dependia, ao menos em parte, desse saber. Nisso, os povos indígenas do Brasil eram excelentes mestres, dominando, com igual eficiência, diferentes métodos de caça. E, a crermos no que escreveram autores dos séculos XVI e XVII, a mais apreciada dessas refeições ambulantes eram os tatus.
Tatu ("Dattu"), de acordo com Hans Staden (¹)
Hans Staden, o aventureiro alemão que andou pela América do Sul por meados do século XVI (¹), referiu-se ao "Dattu", animalzinho dotado de uma armadura que em tudo lembrava aquelas usadas por guerreiros medievais, com uma couraça que lhe cobria as costas, firme e resistente como um chifre. Deixou bem claro que havia provado sua carne muitas vezes.
Também Pero de Magalhães Gândavo, que queria incentivar a vinda de portugueses ao Brasil, observou:

Tatu-Galinha (Dasypus novemcinctus) (⁵)
"Uns bichos há nesta terra que também se comem e se têm pela melhor caça que há no mato. Chamam-lhes tatus, são tamanhos como coelhos e têm um casco à maneira da lagosta como de cágado, mas é repartido em muitas juntas como lâminas; parecem totalmente um cavalo armado, têm um rabo do mesmo casco comprido, o focinho é como de leitão, e não botam mais fora do casco que a cabeça, têm as pernas baixas e criam-se em covas, a carne deles tem o sabor quase como de galinha. Esta caça é muito estimada na terra." (²)

Tatu-Peba (Euphractus sexcinctus) (⁵)
Finalmente, Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil (³), observou:
"Há tatus, a que os espanhóis chamam armadillos, porque são cobertos de uma concha não inteiriça como a das tartarugas, mas de peças a modo de lâminas, e sua carne assada é como de galinha."
Notaram, senhores leitores, quantas comparações?
Concha semelhante a armadura, casco de tartaruga, como lagosta, focinho de leitão, semelhante a cavalo armado, carne como a de galinha... É que diante da surpreendente diversidade natural da América, os autores viam-se às voltas com palavras que pareciam por vezes insuficientes para uma descrição acurada, daí a necessidade de apontar similaridades, que dessem à gente da Europa alguma ideia daquilo que se queria descrever. Em alguns casos, só mesmo um bom desenho para ajudar, como é o caso deste que aparece na Historia naturalis Brasiliae, de Willen Piso e Georg Markgraf:

Tatu, de acordo com a Historia naturalis Brasiliae (Piso e Markgraf) (⁴)
 
(1) Hans Staden escapou, por muito pouco, de também ele virar refeição. Veja-se: STADEN, Hans. Zwei Reisen nach Brasilien. Marburg: 1557.
(2) GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil. Brasília: Ed. Senado Federal, 2008, pp. 61 e 62.
(3) O manuscrito foi concluído por volta de 1627.
(4) PISO/PIES, Willen et MARKGRAF, Georg. Historia naturalis Brasiliae. Amsterdam: Ioannes de Laet, 1648, p. 231. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(5) Os tatus fotografados para esta postagem pertencem ao acervo do Museu de História Natural de Itapira - SP (tatu-galinha) e do Museu do Eucalipto, em Rio Claro - SP (tatu-peba), este último novamente aberto ao público, depois de um longo tempo fechado. Se puder, visite!


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