quarta-feira, 22 de maio de 2013

Fraudes e corrupção nos tempos coloniais - Parte 4

Pouca (ou nenhuma) honestidade nos pesos e medidas


Hoje voltamos ao Compêndio Narrativo do Peregrino da América, de Nuno Marques Pereira, para mais alguns relatos de fraudes correntes no Brasil Colonial. Era nas "vendas", os armazéns da época, que muitos enganos se praticavam, sendo os mais comuns relacionados à pouca honestidade nos pesos e medidas (ainda que as Ordenações do Reino fossem severas a esse respeito) e, muito usualmente, no misturar água a bebidas, como se vê neste trecho do autor e obra citados:
"Ouvi então perguntar o vendeiro a um seu escravo, quanto tinha feito aquele dia em dinheiro. Respondeu-lhe o escravo que quatro mil réis. Pouco fizestes a respeito dos mais dias, lhe disse o vendeiro. E assim mais lhe perguntou quanta água deitara no vinho e nas mais bebidas. Disse-lhe o escravo que no vinho deitara duas canadas de água, e no vinagre, três, e que também caldeara a aguardente do Reino com a da terra. E logo lhe perguntou mais o vendeiro se calcara com os dedos o fundo da medida de folha de flandres em que se media o azeite, porque fazendo cova pela parte de fora no meio da medida, com o peso do liquor se derrama, e parece ao que compra que está cheia. E finalmente lhe perguntou se lançara o vinho de alto na medida, para se derramar, e parecer que estava cheia. Tudo fiz, senhor, como vossa mercê me tem ensinado, lhe disse o escravo. Pois assim hás de fazer, lhe disse o vendeiro, porque nestas casas quem dá o seu a seu dono, fica sem coisa alguma." (¹)
Depois desse autêntico manual de fraude nos negócios, vale lembrar que era atribuição dos vereadores de uma localidade, segundo as Ordenações, a fiscalização dos preços e fornecimento de alimentos na área sob sua jurisdição. (²) Para ilustrar o funcionamento dessa disposição, diga-se que em São Paulo, nos anos de 1623 e 1627, precisou a Câmara interferir para garantir que o pão vendido ao povo tivesse um peso razoável, e como medida extrema, em 1631, recorreu à fintação do trigo (³) para assegurar o abastecimento, segundo conta Affonso de E. Taunay:
"...Precisou a Câmara de 1631 recorrer ao expediente violento da "fintação de seiscentos alqueires de trigo, para sustento do povo, entre os principais lavradores"." (⁴)
É quase desnecessário afirmar que, quanto ao vinho (tão prezado pelos colonizadores, já saudosos do Reino) e demais mercadorias, as coisas corriam mais ou menos da mesma maneira. Para cada infração às leis devidamente notada e punida, havia uma infinidade de outras, que escapavam ao alcance das autoridades ou para as quais simplesmente se faziam "vistas grossas", no dizer popular.

(1) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, pp. 266 e 267.
(2) Ver, por exemplo, o Livro Primeiro, Título LXVI, § 8.
(3) Estabelecia-se uma quantidade e os produtores eram obrigados a contribuir com sua parte, a título de imposto.
(4) TAUNAY, Affonso de E. História da Cidade de São Paulo. Brasília: Ed. Senado Federal, 2004, p. 104.


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