Estupendas usuras nos mercados...
Gregório de Matos invectivou em seus versos, no século XVII, a condição em que via a cidade do Salvador, capital da Bahia, e também, durante bom tempo, do Brasil. Escreveu, por exemplo:
"Qual homem pode haver tão paciente,
Que vendo o triste estado da Bahia,
Não chore, não suspire, e não lamente?"
Ou então:
"...que ande pois a fidalguia
vendida assim por dinheiro,
só porque há nisso vanglória!
Boa história."
São mais famosos, talvez, os versos abaixo, e os que, por hora, mais nos interessam:
"Estupendas usuras nos mercados,
Todos, os que não furtam, muito pobres,
E eis aqui a cidade da Bahia."
Falemos, pois, da usura.
Frei Vicente do Salvador (¹), na primeira metade do século XVII, explicava que os traficantes de escravos que vinham à Bahia oferecer sua "mercadoria" aos senhores, principalmente aos que tinham engenhos, jamais aceitavam fazer negócios à vista, Estranho? Não, facílimo de explicar: é que os juros pelas compras a prazo, eram de... 100% ao ano:
"... se vale um escravo vinte mil réis pago logo, o dão fiado por um ano por quarenta, e o que mais é que por isso o não querem já vender a dinheiro de contado, senão fiado, e não há quem por isto olhe."
Outro que observou a malfadada prática da usura que se fazia na Bahia, escrevendo um século mais tarde, foi Nuno Marques Pereira, o autor do Compêndio Narrativo do Peregrino da América, livro famoso nos tempos setecentistas. Em sua narrativa, coloca estas palavras na boca de um vendeiro, que parece estar arrependido de suas más práticas, pelos bons conselhos do "Peregrino":
"Na verdade, senhor, me disse o vendeiro, que não sei com que palavras vos signifique o quanto vos estou obrigado. Agora conheço que estou no inferno pelos grandes pecados que neste particular tenho cometido. Porque não só roubei a este povo com a venda, mas também pelo negócio de usuras no dinheiro que dei a alguns homens, que mo pediram por empréstimo, com a condição de vinte e de trinta por cento, ficando-me penhores em meu poder." (²)
Desnecessário é dizer que essa história termina com o "Peregrino" recomendando ao vendeiro que, tal qual Zaqueu, o publicano, mencionado no Evangelho Segundo S. Lucas, trate de colocar a vida em ordem, pela devolução do que seria produto de fraude. Há que se observar, no entanto, que o tal vendeiro até era modesto nos juros exigidos, se comparados aos que se extorquiam no infame negócio dos seres humanos escravizados.
Ora, alguém dirá, a Bahia dos tempos coloniais era mesmo um mar de corrupção!
A Bahia? Meus leitores devem lembrar-se de que Salvador era a cidade mais importante no Brasil da época, e era nela que vivia a maioria das pessoas em condições de escrever e analisar a vida ao seu redor, daí termos testemunhos em maior número sobre as falcatruas que aí se praticavam do que sobre as de outros lugares. É só isso. A verdade é que em quase toda a Colônia as práticas escusas nos negócios eram, no mínimo, muito frequentes. Na próxima postagem trataremos mais disto.
Vista da Cidade de Salvador nos tempos coloniais (³) |
(1) História do Brasil c. 1627.
(2) PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa, 1731, p. 276.
(3) DENIS, Ferdinand. Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1837.
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