quarta-feira, 29 de abril de 2015

Minas de Nossa Senhora do Rosário Meia Ponte (ou simplesmente Pirenópolis)

Igreja Matriz de N. Sra. do Rosário (Pirenópolis - GO)

Hoje chamamo-la Pirenópolis, mas seu nome já foi Minas de Nossa Senhora do Rosário Meia Ponte, seguindo uma antiga tradição de dar nomes gigantescos às povoações (parecia, quem sabe, aumentar-lhes a importância). Como a extensão do nome era cansativa, passou a ser chamada simplesmente Meia Ponte. 
Sobre essa povoação, nascida com a exploração do ouro por bandeirantes na primeira metade do Século XVIII, o padre Ayres de Casal fez constar em sua Corografia Brasílica:
"Meia Ponte, a maior, a mais florescente e comerciante povoação da Província depois da capital, da qual dista vinte e seis léguas para Leste, está junto ao rio das Almas, que ainda é pequeno. [...] É cabeça de Julgado, abastada de carne e peixe, e tem professor régio de Gramática Latina. Seus habitantes e os de seus arredores recolhem milho, trigo, farinha de mandioca, tabaco, algodão, açúcar, algum café; criam gado vacum e muitos porcos; fabricam tecidos de lã e de algodão: o que a faz considerar como o berço e centro da agricultura e indústria na Província." (¹)
A descrição empreendida pelo padre Ayres de Casal é quase neutra, deixando transparecer algumas nuances talvez favoráveis. O que veremos a seguir, meus leitores, é uma amostra de como um mesmo lugar pode ser descrito sob pontos de vista muito diferentes. Veremos as observações de dois outros autores, Luís d'Alincourt e Raimundo J. da Cunha Matos.
Cunha Matos e d'Alincourt eram de nacionalidade portuguesa. Ambos eram militares e vieram ao Brasil sob circunstâncias semelhantes. Estiveram em Meia Ponte na década de vinte do Século XIX. 
O que os senhores leitores preferem: primeiro a descrição favorável ou a essencialmente negativa?
Vamos ao que escreveu d'Alincourt:
"É notável o mau gosto e nenhum desvelo que punham os antigos na fundação dos lugares auríferos, no que bem mostravam que só o ouro formava o seu alvo, e que tudo o mais era nada, em presença de tão precioso ídolo! Por isso é que sempre davam princípio às povoações o mais perto possível do sítio em que mineravam, importando-lhes pouco a irregularidade do terreno, das ruas e edifícios, ainda que próximo houvesse melhor local; assim teve começo, junto ao rio das Almas, que ainda é pequeno, o arraial de Meia Ponte; e até por um capricho mal entendido, edificaram a matriz no pior sítio do largo, em que existe, com frontispício voltado para o máximo declive do mesmo largo, e os fundos que estão em uma cova, para a parte mais espaçosa, o que executaram só para que o templo ficasse próximo à casa de quem tinha concorrido com maior quantia para a sua fundação, o que desta sorte se exigiu. Toda a parte do arraial, que está ao setentrião da matriz, é pior situada, com as ruas dispostas sem ordem nem uniformidade em suas larguras; a outra parte, que fica ao meio-dia da mesma igreja, ocupa terreno mais regular, e as ruas são largas e direitas, porém menos povoadas, à exceção da Nova." (²)
Agora, o Brigadeiro Cunha Matos:
"O arraial tem mais de 1/4 de légua de extensão, e acha-se assentado na margem esquerda do rio das Almas, onde existe uma grande ponte arruinada. O terreno é desigual, mas a parte mais considerável da povoação fica em uma chapada. Tem a bela rua das Bestas, e outra do Rosário, além de diversas de menor extensão; algumas elegantes e espaçosas casas, pela maior parte térreas [...]; tem Casa do Conselho do Julgado e Cadeia; a espaçosa igreja de N. Sra. do Rosário, Matriz Paroquial; outra da mesma invocação; a do Senhor do Bonfim com uma devota imagem de estatura ordinária e sem nenhumas proporções nos seus membros: nesta igreja há ricos ornamentos; a igreja da Lapa e a do Carmo: estas duas estão mui arruinadas." (³)
Não se pode afirmar que Cunha Matos não enxergava os defeitos que tinha diante dos olhos; adotava, porém, ao que parece, o hábito de ver também o que havia de bom e, aspecto curioso, parecia gostar da localização da Igreja Matriz:
"A Igreja Matriz é espaçosa; tem cinco altares mui decentes, e os campanários e frontispício estão para ser reparados. Acha-se assentada na mais pitoresca posição, e dela se desfrutam golpes de vista de natureza admirável." (⁴)

Vista do centro histórico de Pirenópolis - GO
Deixando de lado o mau humor de Luís de d'Alincourt, deve-se salientar o fato de que a Matriz de Nossa Senhora do Rosário que hoje pode ser visitada é produto de muitas reformas, ampliações e alterações ocorridas ao longo dos anos, e até mesmo de uma ampla reconstrução, necessária após o incêndio de 2002. O conjunto arquitetônico do centro histórico de Pirenópolis não é nada desprezível e a cidade guarda uma rica tradição cultural que, aliada à bela paisagem natural que a cerca (Serra dos Pireneus) fazem dela um importante destino turístico no Estado de Goiás.

(1) CASAL, Manuel Ayres de. Corografia Brasílica  vol. 1. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1817, p. 352.
(2) ALINCOURT, Luís d'. Memória Sobre a Viagem do Porto de Santos à Cidade de Cuiabá. Brasília: Ed. Senado Federal, 2006, p. 64.
(3) MATOS, Raimundo José da Cunha. Itinerário do Rio de Janeiro ao Pará e Maranhão Pelas Províncias de Minas Gerais e Goiás. Rio de Janeiro: Typ. Imperial e Constitucional, 1836, p. 151.
(4) Ibid., p. 152.


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segunda-feira, 27 de abril de 2015

Roupas para as índias

Se houve um fato que deixou estarrecidos os europeus que, em fins do Século XV e início do XVI chegaram à América do Sul, este sem dúvida foi o de que a população nativa não tinha, quase toda ela, o hábito de usar roupas. Na Carta de Caminha lemos, logo na descrição dos primeiros humanos avistados que eram "pardos, nus e sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas". Mais adiante, voltaria a afirmar: "Andam nus, sem cobertura alguma".
Pois bem, mais chocante era, ainda, para os valentes navegadores, que também as índias não usavam vestir-se, e Caminha não deixou de observar que não tinham elas nenhum constrangimento "de as nós muito bem olharmos"
Senhor Caminha!...
Ao escrivão da esquadra de Cabral ocorreu lembrar ao rei D. Manuel que, "a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior"; mas faz uma ressalva: "quanto ao pudor". Não queria, naturalmente, ser acusado de heresia quanto às crenças correntes, relativas ao pecado original.
Durante a celebração da segunda missa na Terra de Santa Cruz vários indígenas, motivados pela curiosidade, vieram presenciar o que faziam os portugueses. Dentre eles, relatou Caminha, "uma [...] moça, que esteve sempre à missa, à qual deram um pano para que se cobrisse e puseram-no em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se cobrir." Vê-se que, para ela, aquilo não fazia o menor sentido. Falo da roupa que lhe queriam impor, claro. Quanto à missa, é difícil julgar se podia apreender seu significado como um ritual de caráter religioso, até por não entender palavra alguma do que era dito (¹).
Cinquenta anos mais tarde a obsessão por vestir as índias prevalecia, ao menos entre os religiosos. O padre Manuel da Nóbrega, jesuíta que veio ao Brasil com o primeiro governador-geral Tomé de Sousa, em carta escrita na Bahia no dia 9 de agosto de 1549, destinada ao padre-mestre Simão Rodrigues, pedia-lhe que empreendesse uma verdadeira campanha no Reino entre senhoras devotas, com o objetivo de conseguir a doação de peças de vestuário com que pudessem cobrir as índias que aos domingos vinham à missa:
"Também peça Vossa Reverendíssima algum peditório para roupa, para entretanto cobrirmos estes novos convertidos, ao menos uma camisa a cada mulher pela honestidade da Religião Cristã, porque vêm todas a esta cidade à missa aos domingos e festas, que faz muita devoção, e vêm rezando as orações que lhes ensinamos, e não parece honesto estarem nuas entre os cristãos na igreja, e quando as ensinamos. E disto peço ao padre mestre João tome cuidado por ele ser parte na conversão destes gentios, e não fique senhora nem parenta a que não importune para coisa tão santa, e a isto se haviam de aplicar todas as restituições que lá se houvessem de fazer, e isto agora somente no começo, que eles farão algodões para se vestirem ao diante." (²)
Não se enganava o padre Nóbrega: por todo o Período Colonial, e mesmo mais tarde, a roupa da gente pobre da terra, fosse para o trabalho quotidiano, fosse para dias de festa ou para ouvir missa aos domingos, seria confeccionada com o algodão rústico que se podia tecer no Brasil.

(1) Da missa, em si, só pelo costume é que os rústicos marujos deviam, também, entender alguma coisa, já que era oficiada em latim. A pregação de frei Henrique de Coimbra, após a comunhão, foi, certamente, em português.
(2) VASCONCELOS, Pe. Simão de S.J. Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil vol. 2 2ª ed. Lisboa: Fernandes Lopes, 1865, p. 298.


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sexta-feira, 24 de abril de 2015

Nero

Nero (37 - 68 d.C.) é bem conhecido como sendo o sujeito que incendiou Roma, embora não se possa ter certeza de que ele de fato fez isso. Incêndios em Roma não eram raros, mas o comportamento de Nero era tão tresloucado que não tornava difícil a alguém crer que, de alguma forma, estava ele envolvido com o tal incêndio, direta ou indiretamente.
Outros episódios da vida desse imperador romano são menos conhecidos, sendo porém mais facilmente comprovados. Temos aqui, senhores leitores, uma pequena coleção de suas façanhas, que servirão para dar uma ideia de quem foi esse indivíduo que, na Roma Antiga, teve em suas mãos - mãos muito jovens, diga-se de passagem (¹) - uma autoridade de vida e morte sobre a população do Império. E, a considerar tudo o que sobre ele escreveram vários autores, alguns contemporâneos e outros tardios, vê-se que tinha em bem pouca conta a vida de seus concidadãos, à medida que, com suas sentenças, espalhou a morte mesmo pelas mais ilustres famílias de Roma.

1)  Entre os romanos, esperava-se que aqueles que se encaminhavam à política fossem pessoas de conduta sóbria, discreta, até severa, e que dominassem a arte de falar em público. Nero, ao contrário, disse Tácito, "desde a infância seguiu outro caminho: esculpir, pintar, cantar e dominar a arte equestre; quanto a compor poesia, era capaz de ostentar algum conhecimento". (²)

2) Mais Tácito: "Os idosos, cujo lazer consiste em opor o passado ao presente, faziam ver que, entre os imperadores, Nero foi o primeiro a ter de servir-se da eloquência de um outro." (²)
Entenda-se: jovem demais ao chegar ao poder, Nero era incapaz de escrever os próprios discursos, que eram, então, preparados por Sêneca, seu professor.

3) É fato que Nero encomendou a morte da própria mãe, Agripina, porque achava que ela dava demasiados palpites em assuntos relacionados ao governo de Roma. Inicialmente,  foi feita uma tentativa de matá-la por afogamento, mas ela escapou, conseguindo nadar até a praia. Vendo que a estratégia original não dera o resultado que se esperava, Nero mandou homens até onde Agripina se encontrava repousando, que, a golpes de espada, puseram termo à sua vida.
Ocorre que Agripina não era nenhuma santa. Entre uma série de crimes e intrigas associados ao seu nome, consta, por exemplo, a participação na morte por envenenamento do imperador Cláudio, seu marido. Que família, essa!

4) Uma das grandes paixões de Nero era pilotar bigas ou quadrigas, para demonstrar sua capacidade de controlar os cavalos. Ora, esse esporte, na visão dos antigos romanos, não era nada conveniente à sobriedade requerida de um homem público, quanto mais de um imperador, de modo que Burrus e Sêneca, que cuidavam da instrução do ousado mandatário desde a infância, fizeram delimitar uma área no Vale Vaticano, para que ali, longe das vistas do povo, pudesse o jovem Nero dedicar-se à sua grande paixão.

5) Vaidoso ao extremo, Nero não tolerava  quaisquer palavras de oposição, fossem elas escritas ou proferidas. Valia a mesma regra para quem ousasse criticar o Senado. Assim, tendo alguém escrito críticas aos senadores e sacerdotes, o imperador fez queimar todos os livros encontrados que as continham, sendo seu autor banido da Itália. Tácito diz que os tais livros proibidos suscitaram, na época, muito interesse e curiosidade. Mais tarde, quando podiam ser lidos sem qualquer impedimento, já ninguém se interessava por eles.

6) Nero amava cantar e tocar. Para desespero dos conservadores, pôs-se a fazer apresentações públicas, esperando que seu grande talento fosse aclamado pelo povo romano. Não contente em exibir-se na capital do Império, foi a Nápoles, para uma apresentação no teatro local. Sucede que, após o show, e tendo acabado de sair toda a assistência, o teatro desabou completamente. Ah, se houvesse ocorrido pouco antes...

Há quem queira, hoje, melhorar a imagem pública de Nero, fazendo ver que, afinal, não era assim tão mau - os povos que viviam no Oriente pareciam tê-lo em grande apreço. A isso se pode responder, antes de qualquer coisa, que os do Oriente estavam longe o bastante para que não sofressem com seus desmandos do mesmo modo que os de Roma. A maior parte dos autores da Antiguidade é enfática em salientar a crueldade que marcou seu governo, ainda que mostrando algumas medidas sábias que adotou. Por último, é bom lembrar que a mania de ser uma celebridade grassava nos dias de Nero tanto quanto hoje, sempre havendo, portanto, quem se disponha a uma suposta "revisão" nos fatos e respectivas interpretações, ainda que sem nenhum fundamento sólido, desde que isso assegure notoriedade, visibilidade, popularidade...

(1) Ainda não tinha 17 anos quando se tornou príncipe (a que chamamos, hoje, imperador), como sucessor de Cláudio.
(2) TÁCITO,  Annales (tradução de Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias).


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quarta-feira, 22 de abril de 2015

O primeiro contato entre portugueses e indígenas, sob a ótica de Pero Vaz de Caminha

Um modo muito proveitoso de estudar o que aconteceu em um tempo diferente daquele em que vivemos é a comparação de escritos da época, nos quais são expressos diferentes pontos de vista. Sobre a chegada dos portugueses ao Brasil em 1500 e os primeiros contatos entre europeus e indígenas, porém, não podemos, infelizmente, realizar esse tipo de estudo. A razão para isso é que os nativos do Brasil não usavam nenhum sistema de escrita e, portanto, não deixaram documentos que pudéssemos comparar, por exemplo, à Carta de Pero Vaz de Caminha. Aliás, de acordo com Caminha, foi assim que, pela primeira vez, os portugueses viram ameríndios:
"E tanto que ele começou a ir-se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou vinte. Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel."
Veio, em seguida, o primeiro contato "oficial":
"E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos, e eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio."
Quebrando o mar na costa ou não, Nicolau Coelho e sua gente não teriam mesmo qualquer "entendimento que aproveitasse", já que ninguém conhecia o falar dos indígenas. Outra coisa que salta aos olhos é que a aproximação não foi assim tão próxima, uma vez que Nicolau Coelho arremessou o barrete, a carapuça e o sombreiro, e o mesmo fez o ameríndio com o cocar de penas. Ora, arremessar é atirar a alguma distância... Devia haver temor de ambas as partes.
Mais tarde, com a ajuda forçada dos dois condenados a degredo que vinham com Cabral (e que ficaram no Brasil), portugueses e índios chegaram a ganhar maior confiança. Jovens da terra foram à embarcação onde estava Cabral, experimentaram a comida dos navegadores e até dormiram. Sabe-se que, nas duas missas relatadas por Caminha, indígenas estavam entre a assistência.
É verdade que Caminha também relatou a existência de um índio que se opunha à aproximação, mas parece, ao menos dessa vez, ter sido um caso isolado:
"Andava lá um que falava muito aos outros que se afastassem (¹), mas não já que a mim me parecesse que lhe tinham respeito ou medo. Este que assim os andava afastando trazia seu arco e setas. Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e contas pelos quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era tão vermelha que a água lha não comia nem desfazia, antes, quando saía da água, era mais vermelho."
Como terá sido a despedida? Sabe-se que os dois condenados ficaram em terra contra a vontade, extremamente chorosos, receando nunca mais voltar a Portugal (²). Terão os navegadores acenado, quem sabe com lenços, à medida que as embarcações se afastavam rumo ao alto mar? Teriam os índios tentado acompanhar com os olhos, até que a última nau desapareceu?
Não sabemos. Se ao menos tivéssemos um relato indígena...


***

Ainda sobre o Descobrimento, muitos anos depois, por obra de um cartunista, na edição de 1º de maio de 1921, Ano VIII, nº 159, da revista paulistana A Cigarra:


Diz a legenda:
Pedro Álvares Cabral - Então que é isso? Ainda se encontram nesse estado?
O Cacique-guaçu - Não estranhe: nós somos nacionalistas.

(1) Provavelmente o gestual é que deve ter levado Caminha a concluir que o índio pintado de vermelho queria afastar os demais do contato com os navegadores.
(2) Há relatos que dizem que um deles, pelo menos, chegou a voltar ao Reino.


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segunda-feira, 20 de abril de 2015

O Poder Legislativo na Constituição Imperial de 1824

A primeira Constituição que o Brasil teve, outorgada pelo imperador D. Pedro I, estabelecia, em seu Título 4º, Capítulo I, Artigo 13, quanto ao exercício do Poder Legislativo:
"O Poder Legislativo é delegado à Assembleia Geral com a sanção do Imperador."
Ressalvadas as especificidades, a Assembleia Geral estava para o Império como o Congresso Nacional está para o Brasil de hoje, e adotava, conforme o Artigo 14, um sistema bicameral, ou seja, era composta por uma Câmara de Deputados e por uma Câmara de Senadores ou, simplesmente, Senado.
Enquanto que o mandato de um deputado era eletivo e temporário; o de um senador era parcialmente eletivo e sempre vitalício. Dizia o Artigo 43:
"As eleições [para o Senado] serão feitas pela mesma maneira que as dos deputados, mas em listas tríplices, sobre as quais o Imperador escolherá o terço na totalidade da lista."
Notando, de passagem, que a autoridade reservada ao Imperador para interferir no Legislativo era enorme, cabe destacar um aspecto curioso relativo às atividades da Assembleia Geral, de acordo com o que se determinava no Título 4º, Capítulo I, Artigo 17:
"Cada Legislatura durará quatro anos e cada Sessão anual, quatro meses." 
Ora, dirão os leitores, que absurdo! Por que tão somente quatro ínfimos meses?
Não entendam os senhores leitores que isso refletia preguiça ou pouco caso com os assuntos públicos. A questão era outra.
Expliquemos. Nem todos os deputados e senadores tinham residência permanente na Corte. A maioria tinha terras nas Províncias, e nelas é que passava uma parte de cada ano, tratando de administrar seus empreendimentos, fossem eles agrícolas ou de outra natureza qualquer. Havia até quem se elegesse por uma Província na qual não residia e cujos problemas desconhecia quase completamente - mas isso já é outro assunto. De qualquer modo, viajar das Províncias ao Rio de Janeiro, a capital do Brasil na época, podia durar de vários dias a alguns meses, dependendo, é claro, da distância. Nesse aspecto, a vida de quem morava em cidade litorânea era um pouco menos complicada, já que havia linhas regulares de embarcações de vários tipos que levavam à Corte. Quem vinha das Províncias interiores, porém, passava por muito desconforto. As estradas (quando existiam), eram péssimas, principalmente em época de chuva, a tal ponto que não poucos autores diziam passar por elas com a  a lama chegando quase à altura da sela dos cavalos. Não havia hotéis pelo caminho, de modo que, se o deputado ou senador achasse  famílias que reputassem uma honra recebê-lo, podia passar a noite na casa de alguém. Caso contrário, talvez parasse em pousos de tropeiros ou tivesse de dormir ao relento (*).
Ainda assim, o Artigo 18 rezava:
"A Sessão Imperial de abertura será todos os anos, no dia três de maio."
Mas nem sempre era. Pela impossibilidade de reunir deputados e senadores em número suficiente, às vezes sucedeu ser muito adiada. Coisas do Império, afinal.

(*) Nem por isso eram adotadas providências para melhorar as poucas estradas existentes ou mesmo para a construção de novas e melhores. 


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sexta-feira, 17 de abril de 2015

Guardadores de porcos

A figura do pastor de ovelhas tem, no imaginário popular, um certo aspecto romântico. Não faltam lendas e histórias reais que ressaltam o cuidado e ternura dos pastores por seus rebanhos, sejam eles pouco ou muito numerosos. Civilizações do passado, principalmente nômades, surgiram e cresceram tendo o pastoreio como sua atividade econômica mais importante. Ainda hoje é assim em alguns lugares, nos quais populações deslocam-se com as ovelhas de acordo com as estações do ano - é a chamada transumância.
O que pouca gente sabe é que, no passado, não só as ovelhas tinham guardadores especiais. Havia também porqueiros - guardadores profissionais de porcos.
Cornetas de pastoreio usadas
pelos antigos romanos (³)
Políbio de Megalópolis (¹) escreveu:
"Na Itália os criadores de porcos não os colocam em cercados, tampouco os porqueiros seguem as manadas (como ocorre na Grécia), mas caminham adiante dos animais, tocando um instrumento de sopro, que a manada reconhece e distingue como sendo de seu pastor." (²)
O próprio Políbio admitia que, à primeira vista, isso parecia muito estranho e improvável, mas afirmava ser a verdade. E havia mais: quando duas ou mais manadas, caminhando juntas, chegavam a misturar-se, bastava que os porqueiros tocassem seus instrumentos para que os animais, sem mais demora, se aproximassem dos respectivos guardadores.
Esse costume da Itália, entendia ele, era muito útil, já que, como grego de nascimento, afirmava saber que entre os helenos, quando sucedia que manadas se misturassem, não raro o dono do maior número de porcos tentava reter para si os animais de outros donos. Vê-se que, como regra geral, a humanidade não mudou muito nesses pouco mais de dois mil anos.

(1) Falecido em c.120 a.C. 
(2) Tradução de Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) STRONG, Eugénie. Art in Ancient Rome vol. 2. New York: Charles Scribner's Sons, 1928, p. 22. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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quarta-feira, 15 de abril de 2015

Teatro Amazonas

Fachada do Teatro Amazonas

O Teatro Amazonas é considerado, em Manaus, o mais célebre remanescente da brevíssima fase de prosperidade que o norte do Brasil viveu devido à exportação de borracha, nas últimas décadas do Século XIX e, já em declínio, no começo do Século XX. Graças a algumas restaurações, está em boa forma e não se deve deixar de visitá-lo.
As fotos são, neste caso, talvez mais úteis que as palavras. Transcrevo, porém, o que observou o general Aníbal Amorim, que esteve no Amazonas em 1909 e viu o teatro que era, ainda, espaço de sociabilidade para os magnatas da borracha e não, como hoje, alvo da curiosidade dos turistas:
"O Teatro Amazonas assenta no extremo mais elevado da avenida Eduardo Ribeiro. É avistado de qualquer ponto da cidade (¹). É uma das primeiras coisas que prendem a atenção de quem chega à linda princesa do rio Negro. O interior do teatro é simplesmente majestoso. O seu foyer só tem, entre nós, um competidor no nosso Municipal (²). É rodeado de imensas colunas, fingindo mármore. Decoram-no diversos quadros de De Angelis. Um desses quadros tem um sabor finamente regional: representa uma pequena fração da floresta Amazônica.
Veem-se ali os bustos de muitos dos grandes vultos do teatro moderno e contemporâneo. É todo iluminado a luz elétrica. [...]" (³)

Vista da sala de espetáculos
O fato de ser o teatro dotado de luz elétrica era, para a época, sensacional. Hoje, quem o visita, irá admirar o primor dos detalhes, mas ficará surpreso com as dimensões do auditório, que é muito pequeno (para os nossos padrões), mostrando, em silenciosa discrição, que a elite que tinha acesso aos espetáculos sofisticados não era exatamente numerosa, ainda que apreciasse exibir seu poderio econômico.

Vista externa do Teatro Amazonas

(1) Na cidade de seu tempo, naturalmente.
(2) Do Rio de Janeiro, então capital da República.
(3) AMORIM, Aníbal. Viagens Pelo Brasil. Rio de Janeiro / Paris: Garnier, s.d., pp. 156 e 157.


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segunda-feira, 13 de abril de 2015

Todos os navios deveriam ter...

Conselhos para os marinheiros que cruzavam o Atlântico no Século XVIII


Tudo que já se escreveu sobre os perigos e sofrimentos das viagens marítimas do passado talvez seja ainda insuficiente para dar conta das cenas de horror, aliás muito frequentes, de que as embarcações eram palco. 
Nem poderia ser diferente, quando uma porção de gente passava meses no mar, enfrentando a fúria das tempestades ou semanas inteiras de calmaria (o que seria pior?), com a mais lamentável alimentação, não poucas vezes com falta de água e, até por consequência, em contínua exposição a doenças, algumas causadas por desnutrição severa, outras por absoluta falta de higiene. Isso tudo em companhia de animais que viajavam vivos, até o momento em que deviam virar comida, pra não falar dos que iam mesmo sem convite: ratos, por exemplo. 
No Século XVIII um grupo de embarcações saiu do Brasil em comboio, uma prática comum na época, para dar alguma segurança, e tomou o rumo de Lisboa, onde poucos dos que empreenderam a viagem chegaram vivos, depois da mais cruel tempestade. Um dos sobreviventes, Elias Alexandre e Silva, escreveu e publicou a Relação ou Notícia Particular da Infeliz Viagem da Nau de Sua Majestade Fidelíssima, Nossa Senhora da Ajuda e São Pedro de Alcântara do Rio de Janeiro Para Lisboa (para que um título tão grande...), na qual contou toda a desgraça que havia presenciado. Por isso mesmo, fez, logo de saída, uma importante recomendação aos que faziam a rota do Atlântico: deviam ter sempre, em cada embarcação, "paus, massame, mantimentos e aguada, mais do que até aqui se julgava necessário, para se navegar com bonanças, e, sobretudo, [...] um leme sobressalente, que somente costumam levar as naus da Índia, como se Éolo e Netuno só naqueles mares fossem soberbos." (*)
Convém explicar que era preciso levar madeira para o caso de algum conserto indispensável na embarcação, assim como massame, que bem poderia ser útil em caso de avarias decorrentes do mau tempo. Resta indagar se era viável levar mais água e alimentos, tendo em conta a capacidade limitada de cada navio. Já quanto a ter um leme adicional não cabem objeções. Quem porventura estiver disposto a ler a obrinha escrita por Elias Alexandre e Silva não demorará a entender o motivo de sua tão enfática quanto prudente recomendação.

(*) SILVA, Elias Alexandre e. Relação ou Notícia Particular da Infeliz Viagem da Nau de Sua Majestade Fidelíssima, Nossa Senhora da Ajuda e São Pedro de Alcântara do Rio de Janeiro Para Lisboa. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1778, p. 2.


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sexta-feira, 10 de abril de 2015

Pão e circo

Até batalhas navais eram realizadas para entretenimento dos romanos


Ouvem os estudantes em suas aulas de História que, para garantir que uma revolta social de grandes proporções não viesse a ocorrer em Roma, os governantes promoviam distribuições de trigo e espetáculos circenses de todo tipo, tais como corridas de bigas e combates de gladiadores, entre si e entre gladiadores e animais selvagens. Quanto mais sangrento o espetáculo, melhor. 
Isso tudo pode parecer um tanto simplista, mas é preciso recordar que, desde as grandes guerras de conquista durante a República, a entrada de muitíssimos escravos em Roma havia resultado em uma vasta população livre e desocupada. Havia gente sem fazer nada porque tinha escravos para fazer o trabalho, mas a a maioria dentre os ociosos havia perdido sua ocupação para os cativos. O temor de uma revolta social não, era, pois, descabido. 
Além disso, figuras que pretendiam ascensão política faziam realizar jogos e espetáculos às próprias expensas, com a finalidade de obter apoio popular. Geralmente funcionava (que o dissesse Júlio César). A morte de personagens ilustres também podia ser pretexto para circo. Em homenagem, claro, e não para festejar (oficialmente).
À medida que o tempo passava, simples lutas entre fortões escravizados já não pareciam ser o bastante - talvez estivessem cansando pela repetição - de modo que novos espetáculos foram inventados, sem muito limite à imaginação, apenas cerceada pelas condições tecnológicas da época (¹).
O fato é que cada novo imperador pretendia realizar jogos mais deslumbrantes que seus predecessores, tencionando fazer-se eternizar na memória dos contemporâneos, o que, convenhamos, não era grande coisa, sob o nosso ponto de vista, mas era essencial ao jogo político da época. A gastança era grande e a criatividade levou até à realização de batalhas navais para entretenimento dos desocupados. De acordo com Tácito (²), a primeira delas ocorreu nos dias de Augusto, mas o imperador Cláudio (³) foi mais longe, fazendo colocar duas esquadras, com milhares de homens (criminosos, não marinheiros "de verdade") para um combate sangrento no lago Fucino. Tudo foi arranjado para que os contendores não tivessem como fugir da batalha, e os mestres-pilotos viessem a demonstrar toda a habilidade em conduzir as embarcações, quer em uma abordagem para ataque, quer para escapar do contato com o inimigo. 
Para emprestar maior realismo à cena, a Guarda Pretoriana e muitos soldados a cavalo foram postados junto às margens, e, como se não bastasse, catapultas e outras máquinas de guerra, também instaladas junto ao lago, lançavam pedras e setas, como se esperava que ocorresse um uma batalha naval.
É quase desnecessário dizer que, para presenciar a luta, veio gente de toda a região, em tal quantidade que não se poderia facilmente contar, procurando lugar nas áreas mais elevadas, de onde o espetáculo podia ser melhor apreciado. O próprio Cláudio, acompanhado da imperatriz Agripina, assistiu a tudo. 
Resultado? Sucesso absoluto, de público e crítica. Não dá pra dizer que a banalização da morte é coisa apenas de nosso tempo.

(1) Que não eram tão limitadas quanto se poderia pensar: consta que, no coliseu, havia até mesmo um elevador para que animais selvagens de grande porte fossem colocados na arena.
(2) Annales, Livro 12.
(3) Ano 806 da fundação de Roma, ou 53 d. C.


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quarta-feira, 8 de abril de 2015

Cigarras do Brasil

Quem dentre os leitores gosta de ouvir o canto (¹) das cigarras? Há bastante tempo alguém me falou de uma senhora que  tinha ódio a elas, pois julgava que o tal canto repetia-lhe o nome continuamente... É fato que cada um ouve, por assim dizer, aquilo que quer, nos sons da natureza, e, nesse caso não era diferente.
Acho que também Machado de Assis não era um apaixonado pelo canto desses insetos. Vai aqui um trecho de uma coluna que escreveu para a Gazeta de Notícias, publicada em 7 de janeiro de 1894:
"Entra o galo e faz com a cigarra um concerto de vozes, que me acorda inteiramente. [...]
Pássaros, galo, cigarra, entoam a sinfonia matutina, até que salto da cama e abro a janela.
[...]
Ir-me-á cantar, todo o verão, esta cigarra estrídula? Canta, e que eu te ouça, amiga minha; é sinal de que não haverei entrado no obituário do mesmo verão, que já sobe a cinquenta pessoas diárias. Disseram-mo; eu não me dou ao trabalho de contar os mortos."
Entre as cigarras a espécie mais comum na faixa leste do Brasil é a Carineta fasciculata, mas não pensem que elas são exclusivas do Brasil. Há, no mundo, mais de mil e quinhentas espécies conhecidas e, na década de quarenta do Século XIX, uma delas deve ter atormentado os ouvidos  do príncipe Adalberto da Prússia, que, em suas andanças pelo Rio de Janeiro, registrou: "...já estava escuro, e as cigarras já começavam a cantar quando chegamos à chácara das Mangueiras. O som que estas cantoras brasileiras emitem fere os ouvidos; só posso compará-lo, é claro que em miniatura, ao desagradável apito de uma locomotiva." (²) 
Vejam, então, os senhores leitores que, havendo cigarras pelo mundo afora, as do Brasil cantavam demais, ao menos para os ouvidos sensíveis do príncipe prussiano.
Já ouvi comentários e li algumas observações de que as cigarras de São Paulo cantam de modo diferente do que pode ser encontrado em todas as outras regiões do Brasil. Ora, não sei se é verdade, mas observei que, quando começa o berreiro, parece haver uma vibração algo particular. Serão de alguma espécie diferente? Não sei, não sou especialista em cantorias de cigarras. Apenas tenho delas as melhores recordações de uma travessura dos tempos de universidade que, por suposto, não seria apropriado contar aqui.

Zi - Zi - Zi - Zi - Zi - Ziiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiih
(é uma cigarra paulista)

(1) Apenas os machos emitem o ruído característico das cigarras que, aliás, não provém da boca.
(2) ADALBERTO, Príncipe da Prússia. Brasil: Amazônia - Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 32.


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segunda-feira, 6 de abril de 2015

Como reconhecer uma testemunha falsa

Pinóquio, a personagem criada por Carlo Collodi, era, como os leitores bem sabem, um boneco de madeira metido a androide. Tanto assim que tinha uma característica humana em excesso - contava mentiras e mais mentiras. E, quanto mais mentia, mais seu nariz crescia...
Ora, imaginem se uma coisas dessas de fato acontecesse. Em pouco tempo não haveria lugar no mundo para tanto nariz. 
Falemos sério.
As Ordenações do Reino (¹) eram explícitas quanto às perguntas que deviam fazer os inquiridores, funcionários encarregados de ouvir as testemunhas dos feitos levados à Justiça:
"E bem assim perguntarão declaradamente pelo que sabem dos artigos, e não perguntarão por coisa alguma que seja fora do que neles se contém, e da matéria e caso deles. E se disserem que sabem alguma coisa daquilo por que são perguntados, perguntem-lhes como o sabem. E se disserem que o sabem de vista, perguntem-lhes em que tempo e lugar o viram, e se estavam ali outras pessoas que também o vissem. E se disserem que o sabem de ouvida, perguntem-lhes a quem o ouviram e em que tempo e lugar. E tudo o que disserem façam escrever, fazendo-lhes todas as outras perguntas que lhes parecerem necessárias para que melhor e mais claramente se possa saber a verdade." (²)
Acontece que as testemunhas prestavam depoimento tendo jurado, sobre os Evangelhos, que diriam apenas a verdade. Nem por isso devem supor os leitores que a veracidade estivesse assegurada. Havia também as penas da lei para os mentirosos.
Como saber, porém, que era falso o que uma testemunha dizia? Não havia, então, nenhum equipamento detector de mentiras. Competia ao inquiridor observar cada depoente com o máximo cuidado, conforme também estipulavam as Ordenações:
"E atentem bem com que aspecto e constância falam, e se variam, ou vacilam, ou mudam a cor, ou se se turvam na fala, em maneira que lhes pareça que são falsas ou suspeitas. E quando assim o virem ou sentirem, devem-no notificar ao julgador do feito [...] onde se tirar a inquirição [...]." (³)
Pode-se dizer que, reduzido à simples observação, ficava o caso entregue à subjetividade, já que uma testemunha podia apresentar os mesmos sinais apenas por nervosismo. Cabia, portanto, à Justiça, confrontar os vários depoimentos (quando havia mais de um), para chegar a uma conclusão. Imagine-se, agora, o que é que tudo isso significava em uma época que estava muito longe de ser democrática.

(1) As Ordenações foram compiladas e publicadas pela primeira vez no início do Século XVII. Vigoravam tanto em Portugal como em seus domínios coloniais, o que incluía o Brasil. 
(2) Ordenações do Reino, Livro Primeiro, Título LXXXVI, de acordo com a edição de 1824 da Universidade de Coimbra.
(3) Ibid.


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domingo, 5 de abril de 2015

Procissões de Sexta-feira Santa e de Domingo de Páscoa em uma aldeia indígena no Século XVI

A música e as festas - os jesuítas perceberam em seu contato com os indígenas do Brasil - eram recursos poderosos na catequese. Serviam para atrair a atenção e pareciam estar em maior conformidade com as tradições nativas do que os sisudos cerimoniais adotados nos ofícios religiosos que eram praticados entre os colonos. Portanto, a Semana Santa era sempre uma ocasião especial nas missões (¹). O padre visitador Cristóvão de Gouvêa teve a oportunidade de verificar, na prática, como procediam os missionários e os indígenas nesses festejos, ao viajar pela Colônia entre 1583 e 1590. Os acontecimentos dessa viagem foram registrados pelo também jesuíta, padre Fernão Cardim, que, em sua Narrativa Epistolar de uma Viagem e Missão Jesuítica, observou, a propósito de uma procissão de Sexta-feira Santa na Aldeia do Espírito Santo, na Bahia:
"A procissão foi devotíssima, com muitos fachos e fogos, disciplinado-se a maior parte dos índios, que dão em si cruelmente, e têm isso não somente por virtude, mas também por valentia, tirarem sangue de si e serem Abaetê, ou seja, valentes. Levaram na procissão muitas bandeiras que um irmão, bom pintor, lhe fez para aquele dia, em pano, de boas tintas, e devotas. Um principal velho (²) levava um devoto crucifixo debaixo do pálio; o padre visitador lhe fez todos os ofícios que se oficiaram a vozes com seus bradados." (³)
Tentem imaginar a cena, leitores.
Pode parecer chocante, para nós, do Século XXI, que os índios catequizados praticassem a autoflagelação tão de-vo-ta-men-te. Mas o caso é que, em sua cultura, isso não era uma pura e simples prova de devoção. Era antes evidência de coragem, valentia, força, tudo muito pouco compatível, afinal, com a contrição esperada pelos religiosos da época, mas perfeitamente de acordo com os valores mais celebrados entre os guerreiros indígenas.
Não sabemos o que terá passado pela cabeça do padre visitador, se terá ele compreendido ou não qual era a interpretação que faziam os indígenas dos rituais que praticavam. Mas é fato que Cardim o entendia muito bem, porque não hesitou em dizê-lo em sua Narrativa Epistolar.
Veio o domingo da Ressurreição, e novas celebrações ocorreram na aldeia, dessa vez mais alegres:
"Ao dia da ressurreição se fez uma procissão por ruas de arvoredo muito frescas, com muitos fogos, danças e outras festas; comungaram quase todos os da comunhão, que são perto de duzentas pessoas." (⁴)
Fato curioso é que o padre Cardim, antes de mudar de assunto na Narrativa Epistolar, cuidasse em dizer qual era o procedimento adotado pelos valentes indígenas para tratamento das feridas resultantes da autoflagelação:
"Esquecia-me dizer que os lavatórios cheirosos e pós de murtinhos com que se curam estes índios quando se disciplinam são irem-se logo meter e lavar no mar ou rios, e com isso saram, e não morrem." (⁵)
Pode-se bem imaginar que ferimentos eram esses, capazes de levar alguém à morte se não fossem tratados...

(1) As missões eram aldeamentos de indígenas sob supervisão de jesuítas. Em muitos casos, eram povoações forçadas pelas autoridades coloniais, que impunham o fim do nomadismo como condição para a paz.
(2) Chefe indígena.
(3) CARDIM, Pe. Fernão, S. J. Narrativa Epistolar de Uma Viagem e Missão Jesuítica. Lisboa: Imprensa Nacional, 1847, pp. 58 e 59.
(4) Ibid., p. 59.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

O uso da religião como instrumento para garantir a submissão dos escravos

É de amplo conhecimento que religiões foram e são, às vezes, usadas para propósitos, digamos... nada religiosos. A surpresa vem quando a coisa torna-se tão  escandalosa quanto ostensiva. 
Chama a atenção, senhores leitores, como uma obrinha até progressista em alguns aspectos, escrita originalmente na primeira metade do Século XIX, tornava-se, com apenas um punhado de linhas, a expressão da máxima perversidade do sistema escravista. Refiro-me à Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro, cujo autor foi o segundo barão de Paty do Alferes, Francisco Peixoto de Lacerda Werneck. Vamos à citação:
"O escravo deve ter domingo e dia santo, ouvir missa, se a houver na fazenda, saber a doutrina cristã, confessar-se anualmente: é isto um freio que os sujeita muito, principalmente se o confessor sabe cumprir o seu dever, e os exorta para terem moralidade, bons costumes, amor ao trabalho e obediência cega a seus senhores e a quem os governa." (*)
Os leitores hão de convir que será difícil encontrar alguma coisa mais explícita quanto ao uso da religião como instrumento para subordinação dos cativos.
Nos tempos coloniais era raro que a regra de descanso aos domingos e dias de festas religiosas fosse respeitada, sendo porém mais frequente sua observância durante o Império. Por outro lado, salta aos olhos a expectativa do barão/fazendeiro/escritor de que o confessor dos escravos entendesse ser um dever doutriná-los para o "amor ao trabalho e obediência cega a seus senhores e a quem os governa". Ora, se o religioso vivesse na própria fazenda, às expensas do proprietário, é bem provável que, fazendo silenciar a consciência que lhe apontava a desumanidade do sistema, apoiasse, do púlpito e do confessionário, aquele que lhe garantia o sustento.
Fica claro, então, que, por inteligente e progressista que fosse o escritor da Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda, era ele um senhor de escravos, e como tal é que raciocinava. Talvez não houvesse, mesmo, como ser diferente. O sistema era brutal e a maioria das pessoas que lhe moviam as engrenagens jamais conseguiria romper com a lógica que possibilitava aos "proprietários" de seres humanos o enriquecimento mediante a extorsão da força de trabalho de seus escravos, mesmo porque eram em extremo beneficiadas por ela.

(*) WERNECK, Francisco Peixoto de Lacerda. Memória Sobre a Fundação e Custeio de uma Fazenda na Província do Rio de Janeiro 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1863, p. 40.


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quarta-feira, 1 de abril de 2015

Os indígenas do Brasil e os antigos romanos tinham algo em comum

Sinal de combate para os índios coroados,
de acordo com Debret (⁴)
Em fins do Século XVI, Gabriel Soares descreveu assim o método usado pelos tupinambás quando iam à guerra contra uma aldeia inimiga (fosse de outros índios ou uma povoação de portugueses):
"Tanto que os tupinambás chegam a duas jornadas da aldeia de seus contrários, não fazem fogo de dia, por não serem sentidos deles pelos fumos que se veem de longe, e ordenam-se de maneira que possam dar nos contrários de madrugada, e em conjunção de lua cheia, para andarem a derradeira jornada de noite pelo luar, e tomarem seus contrários desapercebidos e descuidados; e em chegando à aldeia dão todos juntos tamanho urro, gritando, que fazem com isso e com suas buzinas e tamboris grande estrondo, e desta maneira dão o seus assalto aos contrários." (¹)
Gabriel Soares não foi o único a referir o hábito entre os indígenas de iniciar o combate com grande alarido. Sabermos, também, por outros autores, que esse costume não se restringia aos tupinambás, sendo antes muito comum entre os povos indígenas do Brasil.
No entanto, culturas muito distintas, grandemente separadas no tempo e no espaço, podem, às vezes, ter costumes semelhantes. Descrevendo os momentos que precederam o combate entre as forças romanas, comandadas por Cipião, e as de Cartago, comandadas por Aníbal (²), até que o confronto principiasse, Políbio de Megalópolis anotou:
"Neste momento, as duas falanges iam lentamente se aproximando com arrogância, exceto aquelas forças que, com Aníbal, tinham vindo da Itália (e que permaneceram no mesmo lugar que desde o início ocupavam). Já próximos, os romanos, com altos gritos - esse é seu costume - e fazendo barulho quando batiam as espadas nos escudos, atacaram." (³)
Os instantes que antecediam um combate deviam ser de grande tensão, quer os contendores fossem romanos e cartagineses, quer fossem povos indígenas do Brasil. Em ambos os casos, gritar e fazer barulho talvez ajudasse a liberar as energias severamente reprimidas. 

(1) SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. Rio de Janeiro: Laemmert, 1851, p. 330.
(2) Durante as Guerras Púnicas.
(3) Tradução de Marta Iansen para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(4) DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 1. Paris: Firmin Didot Frères, 1834. O original pertence à Brasiliana USP; a imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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