"sin autem resistis et non vis dimittere eum ecce ego inducam cras lucustam in fines tuos quae operiat superfieciem terrae nec quicquam eius appareat sed comedatur quod residuum fuit grandini conrodet enim omnia ligna quae germinant in agris"
Exodus X, 4 - 5
As recentes nuvens de gafanhotos na América do Sul fizeram muita gente pensar nas famosas "pragas do Egito". Que mais faltaria para coroar o acervo de catástrofes de 2020? Falou-se nos exércitos de insetos que encobriam a luz do Sol como consequência do desequilíbrio ambiental que assola este sofrido planeta. Ora, meus leitores, vou mostrar a vocês que, em se tratando de bandos de incontáveis ortópteros destruidores, não há novidade alguma nesta parte do Continente Americano e, portanto, não se pode atribuir o aparecimento de nuvens de gafanhotos na atualidade exclusivamente à relação inadequada entre a humanidade e o meio ambiente. Pragas dessa natureza já devastavam a América do Sul há quase quinhentos anos, pelo menos. Não temos relatos escritos que comprovem o fenômeno anteriormente à colonização; não há, contudo, razão para duvidar que ameríndios já o enfrentassem.
Ulrich Schmidel (¹), um mercenário alemão que veio à América do Sul no Século XVI com Pedro de Mendoza e esteve na Argentina e no Paraguai, registrou a praga em várias localidades e afirmou que gafanhotos, devorando as plantações, chegavam a deixar indígenas sem quase nada para comer (²) - péssimo para Schmidel e seus companheiros, habituados a ir de aldeia em aldeia pilhando o fruto do trabalho da população nativa.
Mais tarde, Félix de Azara, que esteve na América Espanhola entre 1789 e 1801 (³), tendo maior conhecimento de ciências naturais e, por conseguinte, maior interesse pelo assunto, depois de descrever a aparência dos gafanhotos em suas várias fases de desenvolvimento, explicou como se comportavam as "nuvens" que podiam ser vistas principalmente no Paraguai: "[...] elas cobrem às vezes extensões consideráveis de terreno, a tal ponto que andei duas léguas marchando continuamente sobre esses insetos. Não cessam de devorar tudo, até que se sentem bastante fortes para subir nas árvores e matas que cobrem inteiramente [...]. Enfim, quando estes gafanhotos acham alguma noite favorável [...], sobretudo clara pela luz da Lua, partem, sem que se saiba para onde vão [...]" (⁴).
Observador cuidadoso, Azara ainda registrou um detalhe pitoresco, fruto da rivalidade entre moradores de Buenos Aires, na Argentina, e colonizadores do Paraguai: "Esta praga é rara em Buenos Aires; os habitantes dessa cidade zombam dos [moradores] do Paraguai, dizendo-lhes que se eles são incomodados com tanta frequência pelo gafanhoto, é castigo por sua má conduta para com um de seus bispos. [...]" (⁵).
Não, meus leitores, o desmatamento, os incêndios florestais, o uso inadequado do solo, ruins como são, não inventaram o fenômeno das nuvens da gafanhotos na América do Sul. Notem que elas já existiam muito antes que esses transtornos ambientais atingissem grandes dimensões, mas podem, talvez, ter-se agravado com uma ajudinha da humanidade, de quem se espera, agora, bom senso no manejo do problema.
(1) A primeira edição de seus escritos foi publicada na Alemanha em 1567. Seguiu-se aqui a edição de 1599.
(2) Cf. SCHMIDEL, Ulrich. Warhafftige Historien einer wunderbaren Schiffart. Nürnberg: Levinus Hulsius, 1599 p. 78.
(3) Foi enviado pelo governo espanhol para trabalhar na demarcação de limites entre terras pertencentes à Espanha e Portugal.
(4) AZARA, Félix de. Viajes por la América del Sur 2ª ed. Montevideo: Imprenta del Comércio del Plata, 1850, p. 115. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(5) Ibid.
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