quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Leis de Rômulo sobre o casamento e o divórcio

Viagem maluca, leitores: venham comigo em um trem (imaginário, felizmente), capaz de transitar no tempo e no espaço. O detalhe é que ele apenas se move para trás, e assim passamos pela Guerra do Vietnã, pelas duas Guerras Mundiais, pela Guerra de Secessão, pela Revolução Francesa, pelas Grandes Navegações, pelas Cruzadas, invasões bárbaras no Império Romano, assassinato de Júlio César... Nosso meio de transporte, que partiu frenético, vai ficando mais e mais lento, à medida que recua no tempo. Roma, agora, é ainda uma pequena povoação, e Rômulo, seu lendário fundador, ainda vive e governa.
Chegamos, hora do desembarque. Afinal, viemos para conhecer a legislação que rege o casamento entre a gente romana desse tempo. Bem... Vamos ver o que disse Plutarco (¹), que era grego, e não romano: 
"[...] A nenhuma mulher era permitido divorciar-se do marido, embora ao marido fosse facultado o divórcio se ocorresse pelo menos uma dentre duas razões, sendo a primeira se fosse verificado que a mulher praticara algum dano contra os filhos, e a segunda, que cometera adultério, sendo isso desconhecido do marido [sic]. Entretanto, se algum marido, exceto por esses motivos, abandonasse a mulher, seria multado em dois terços dos bens que tivesse, sendo um terço destinado à mulher abandonada e um terço para a deusa Ceres (²). Além disso, o marido divorciado tinha a obrigação de oferecer sacrifícios para os deuses do submundo. [...]" (³)
De acordo com Plutarco, os romanos consideravam essas leis demasiadamente severas. Se, de fato elas foram praticadas nos primórdios de Roma, são anteriores à Lei das Doze Tábuas. No entanto, leitores, embora não tenhamos certeza absoluta de que as leis sobre casamento eram essas durante a infância de Roma, não há dúvida de que eram coerentes com os costumes da época e com legislações contemporâneas, que tendiam a dar amplos direitos aos homens e poucos às mulheres, isso quando elas tinham algum. No caso de Roma, porém, pode haver uma explicação pela insistência em reter as mulheres no casamento, se levarmos em conta o episódio (talvez) lendário do rapto das sabinas. Tenha ou não acontecido, esse incidente mostra que havia falta de mulheres na cidade, e permitir que elas tivessem o direito de pedir o divórcio talvez não parecesse uma boa ideia, ao menos para os rústicos romanos desses tempos. 
A questão que surge é: se não podemos ter certeza de que essas leis foram, em algum tempo, efetivamente aplicadas, qual o sentido de tomar conhecimento delas? É muito simples, meus amigos: o fato de Plutarco ter-se referido a elas revela muita coisa sobre a época em que esse famoso autor viveu. É que em seus dias a sociedade romana passava por transformações significativas, e o casamento, com suas leis e costumes, era parte desse processo. Havia quem se casasse sob leis antigas (principalmente entre a elite senatorial), mas, para muita gente, as tradições já não faziam tanto sentido. Conservadores, irados com as novidades, invocavam a religião (em que poucos acreditavam) para justificar a manutenção de costumes caducos, argumento que servia, de fato, para encobrir os interesses econômicos e ideológicos envolvidos. Entre o povo, para o qual o direito de propriedade e herança não significava grande coisa, as imposições do quotidiano falavam mais alto. Portanto, deve-se inferir que, ao tratar da legislação lendária que regia o casamento entre romanos de tempos remotos, Plutarco, estava, implicitamente, estabelecendo uma comparação que seus contemporâneos entendiam muito bem. O Império estava em mudança, como, de resto, todo o mundo que o rodeava. 

(1) c. 45 d.C. - c. 120 d.C.
(2) Ceres era uma deusa menor do panteão romano. O problema, neste caso, é que, até onde se sabe, seu culto não era ainda praticado em Roma na época em que se supõe que Rômulo possa ter vivido.
(3) PLUTARCO. Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.


2 comentários:

  1. Já que falamos em viagens, longe andava a loba que amamentou Rómulo e Remo, incapaz de resistir ao assédio dos lobos.

    Uma boa sexta-feira, Marta :)

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