quinta-feira, 5 de abril de 2018

As vestais e a origem lendária de Roma

Alba Longa, uma povoação na Península Itálica (¹), vivia dias tenebrosos. A disputa pelo poder - sempre isso! - produzira resultados sangrentos. Conta Tito Lívio, em Ab urbe condita libri:
"Amúlio, para não deixar descendência a seu irmão [Numitor], matou todos os seus filhos do sexo masculino, e, a pretexto de conferir uma honraria à sua filha Rea Silvia, fez com que fosse eleita vestal, obrigando-a a um voto de virgindade perpétua." (²)
A concorrência familiar ao poder de Amúlio parecia, assim, descartada. Porém... Verificou-se, posteriormente que Rea Silvia, a jovem vestal, estava grávida! Como explicar tal fenômeno? Voltemos a Tito Lívio:
"Havendo a vestal [Rea Silvia] dado à luz gêmeos, disse que Marte era o pai dos meninos, fosse porque de fato acreditava nisso, fosse porque entendia que era melhor atribuir a um deus a responsabilidade por sua culpa [ao descumprir o voto de virgindade]." (²)
Logo adiante, leitores, vocês descobrirão o motivo que tornava a situação tão perigosa para a jovem mãe e vestal. O que nos interessa, neste momento, é que Roma, uma aldeia de pastores que deve ter vindo à existência talvez por volta do ano 1000 a.C., remontava sua origem lendária aos gêmeos Rômulo e Remo, filhos de Rea Silvia (com Marte, deus da guerra!), que, lançados no Tibre, teriam sido salvos e amamentados pela loba mais famosa de todos os tempos e, mais tarde, criados por Fáustulo, um pastor de ovelhas, e sua mulher. Os dois irmãos, já adultos, iriam fundar a cidade de Roma. Para completar a hecatombe, Rômulo se encarregaria de assassinar Remo, sob a alegação de que ultrapassara os limites sagrados, estabelecidos na fundação da cidade em 21 de abril de 753 a.C.
É difícil separar a lenda da realidade nessa história, que tem proporcionado assunto para muito debate erudito ao longo dos séculos. Acontecimentos esporádicos, em que crianças perdidas em florestas sobrevivem ao conviver com animais, mostram que não seria de todo impossível que dois meninos, lançados ao Tibre em um cesto que foi ter à margem do rio, chegassem a ser aquecidos por uma loba. Daí a fazê-la ama de leite dos bebês... É pedir demais da credulidade humana, não acham? Mas as pesquisas continuam, e, se temos razões para suspeitar do caráter lendário da origem de Rômulo e Remo, reconhecemos que essa história está ancorada em muito do que era o estilo de vida dos habitantes da Península Itálica nesses dias já distantes. 

A loba com os gêmeos Rômulo e Remo, caricatura do Século XIX (³)
E quanto às vestais, quem eram elas?
A lenda-história de Rômulo e Remo assevera que havia vestais em Alba Longa, e que a mãe dos meninos, Rea Silvia, era uma vestal. Por sua vez, a tradição romana afirma que, na cidade fundada pelos gêmeos, a construção de um templo em honra de Vesta ocorreu no reinado do segundo rei, Numa Pompílio. Nesse templo, cujo acesso era totalmente vedado a indivíduos do sexo masculino, as vestais, sacerdotisas virgens, eram responsáveis pela manutenção do fogo sagrado da deusa Vesta. As vestais, pois, existiram mesmo, e sempre foram tratadas com toda a deferência, até durante o Império, quando os antigos e severos costumes saíram de moda. Por um lado, as famílias romanas tinham orgulho de que uma de suas filhas integrasse o colégio das vestais (⁴); por outro, a regra da virgindade perpétua impunha a alguma eventual infratora um castigo terrível: ser enterrada viva. Assumindo que em Alba Longa houvesse idêntico regulamento, não surpreenderá a nenhum dos leitores, suponho, que a pobre Rea Silvia tenha atribuído a Marte a paternidade de seus meninos. De qualquer modo, o tempo se encarregou de justificar a "hereditariedade", se assim podemos dizer: em sua índole, Roma viria a ser uma digníssima representante do deus da guerra.

(1) A localização de Alba Longa, suposta uma povoação real e não apenas lendária, é ainda incerta.
(2) Tito Lívio viveu entre 59 a.C. e 17 d.C.; os trechos citados de Ab  urbe condita libri foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) BECKETT, Gilbert Abbott à et LEECH, John. The Comic History of Rome. London: Bradbury, Evans and Co., 1851. 
A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.
(4) Respeitadas as diferenças, lembra um pouco o orgulho das famílias religiosas, em tempos mais recentes, quando um de seus filhos se tornava padre.


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6 comentários:

  1. Respostas
    1. Olá, Maria da Graça Reis, obrigada por visitar o blog. Apareça sempre por aqui! :-)))

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  2. Esse é um milagre que ainda acontece, de quando em vez, em pleno século XXI, entre as vestais modernas, ou seja, as freiras. Mas o pai, em vez do deus da guerra, é o fecundo "espírito santo", rs.
    Abraço, uma linda semana
    Ruthia

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    1. A vocação religiosa exige compromisso; nem todos os que se acham vocacionados o são, de fato.
      Tenha uma ótima semana!

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  3. Excelentes seus textos e suas histórias! Informativos e claros. Sempre repasso. Um abraço e continue nos brindando com suas histórias da História.
    Anita

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