quinta-feira, 28 de abril de 2022

Como morreu o primo de Calabar

Um soldado, tencionando ver de perto o inimigo, desce um morro correndo. Ao fazer um movimento desastrado, sua espada salta da bainha e ele morre atravessado por ela. Seria apenas mais um incidente trágico, entre tantos milhões de outros nas guerras em que a humanidade tem-se envolvido, a não ser por um detalhe: esse soldado era primo do famoso Domingos Fernandes Calabar, que desertara das forças luso-brasileiras na guerra contra os holandeses que haviam invadido Pernambuco em 1630. 
Ora, dirá alguém, o que há de extraordinário nisso? Não teria o Calabar muitos outros primos? É que este, especificamente, o que morreu atravessado pela própria espada, fora arregimentado por Matias de Albuquerque (¹) para, por sua condição de parente, mais facilmente atrair Calabar a uma cilada, na qual seria morto. Não houve tiro nesse episódio, mas, se houvesse, teria saído pela culatra.
Nas Memorias Diarias de la Guerra del Brasil esse episódio é descrito por Duarte de Albuquerque Coelho, irmão do comandante Matias de Albuquerque: "[...] Fazendo Calabar em primeiro de abril [de 1633] uma entrada por mar à Barra Grande e estando ali esse seu primo, por ser distrito da Paróquia de Porto Calvo, onde ambos haviam sido batizados, procurou pôr em execução seu intento. Ao descer correndo uma colina, para melhorar de posição e poder com maior facilidade reconhecer o primo, sua espada se desembainhou, e, tropeçando, caiu sobre a ponta dela, de modo que, atravessado à altura do peito, ali mesmo caiu morto. [...]" (²).
Recordem-se, meus leitores, de que a tentativa holandesa de ocupar o Nordeste brasileiro ocorreu quando, na Europa, acontecia a Guerra dos Trinta Anos. Um acontecimento não pode ser entendido sem que se compreenda o outro. Portugueses, fossem nascidos no Reino ou no Brasil, espanhóis (durante os últimos anos da União Ibérica) e até italianos lutaram para expulsar os holandeses. Interesses políticos estavam em questão; quanto aos econômicos, nem é preciso dizer. Mas, para portugueses, espanhóis e napolitanos, os holandeses não eram só invasores que deviam ser expulsos: eram hereges protestantes cujas crenças divergiam das suas e que, portanto, convinha fossem desarraigados da América do Sul. 
Parece estranho? Entendam tudo isso avaliando o espírito da época. Só assim é que fatos como a deserção de Calabar (visto, por muito tempo, como o supremo traidor do Brasil) e a disposição de seu primo em matá-lo, podem ser devidamente interpretados. Imaginem, se puderem, as explicações fantasmagóricas que talvez tenham surgido para justificar a morte bizarra do soldado a que hoje nos referimos. Acontecimentos em dois continentes distantes um do outro eram reciprocamente afetados. Ideologicamente, o mundo estava encolhendo.

(1) Matias de Albuquerque era, nessa ocasião, o comandante das forças que resistiam à ocupação holandesa.
(2) COELHO, Duarte de Albuquerque. Memorias Diarias de la Guerra del Brasil. Madrid: Diego Diaz de la Carrera, Impressor del Reyno, 1654. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias


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quinta-feira, 21 de abril de 2022

A morte de D. Maria I

D. Maria I não é personagem histórica pela qual os brasileiros morrem de amores, seja pela repressão à Inconfidência Mineira, seja pela proibição de fábricas no Brasil. Portanto, o título de "a Piedosa", como foi chamada, não faz, por aqui, muito sentido, ainda que, sob certos aspectos, talvez o merecesse.
Nascida em 1734, foi, desde 1792, considerada mentalmente incapaz para conservar o reinado, e, desde então, substituída pelo filho D. João, que passou a exercer o governo na condição de príncipe-regente. Mas o mundo da época passava por mudanças acentuadas, e Maria I também teve de se mudar (em outro sentido), vindo viver no Brasil, a cuja capital, o Rio de Janeiro, chegou em 1808, como parte da Família Real que deixara o Reino para fugir das pretensões napoleônicas. E foi no Rio mesmo que D. Maria faleceu, em 20 de março de 1816. 
No mês seguinte, a informação oficial de sua morte chegou à Câmara de São Paulo, mediante ofício do capitão-general Conde da Palma, incluindo uma ordem para que o luto fosse observado com todas as formalidades e demonstrações públicas de tristeza. Não vinha ao caso a opinião popular sobre a rainha: era cumprir a ordem, e pronto. Assim, em 20 de abril, os oficiais da Câmara e mais funcionários públicos da localidade, "todos de capas de baetas pretas até os pés, chapéus desabados e fumos (¹) caídos [...], pegando cada um dos vereadores em seu escudo preto e varas pretas [...], montaram todos a cavalo, todos os quais cavalos iam cobertos de baeta preta até ao chão [...]" (²), e trataram de cumprir o ritual que deles se esperava, diante da população, cuja reação, ainda que não registrada, bem se pode imaginar:
 "[...] logo no pátio deste Concelho (³), onde estava postado um corpo de tropas, e no meio da praça um arquibanco de madeira coberto de baeta preta, subiu o vereador mais velho, e proferindo três vezes esta legenda - Chorai, Nobres, chorai, Povo, que é morta a Augustíssima rainha Senhora Dona Maria Primeira do Reino Unido de Portugal e Brasil e Algarves - e quebrou o escudo e atirou ao chão, findo o qual ato deu a tropa três descargas e daí foi indo a Câmara acompanhada pelo dito corpo de tropas para o largo e pátio da Câmara, onde estava postado outro corpo de tropas, ao qual se reuniu o corpo que acompanhava a Câmara, e em outro arquibanco que se achava quebrou o escudo o segundo vereador, proferindo três vezes a referida legenda - e deu o corpo de tropas três descargas; daí seguiu a Câmara acompanhada da referida tropa para o largo da Sé, onde estava postado outro corpo de tropas, a que se reuniram o primeiro e o segundo, e deram juntamente três descargas, depois de quebrado terceiro escudo pelo terceiro vereador em outro arquibanco que aí estava armado; daí seguiu a Câmara acompanhada dos três corpos de tropas referidos para o largo do Colégio, onde estava postado outro corpo de tropas, ao qual se reuniram outra vez os primeiros corpos que acompanhavam a Câmara, e quebrando o procurador o último escudo, proferindo três vezes a referida legenda, toda a tropa deu três descargas, [...], e daí voltando para os Paços do Concelho se mandou lavrar este termo para a todo tempo constar [...]" (⁴).
Não devia haver dúvida de que a Câmara levara a efeito o que dela se esperava. Cerimônias como essa, com um simbolismo que hoje nos parece estranho, até ridículo, na época eram feitas com toda a seriedade.
Cinco dias mais tarde, em 25 de abril de 1816, portanto, a Câmara fez outro "ajuntamento", como se dizia. Era aniversário de D. Carlota Joaquina, e lá se foram os vereadores e mais oficiais a caminho da Sé, para um Te Deum Laudamus "pelos felizes anos" da princesa que detestava o Brasil e que, pela morte da sogra, passaria a ser chamada rainha. Do luto às festas, cumpriam-se à risca as formalidades. Quanto à vida da gente comum, seguia tudo como sempre.

(1) Faixa usada em sinal de luto.
(2) Os trechos citados da ata da Câmara de São Paulo de 20 de abril de 1816 foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
(3) "Concelho" com "c" é o nome da unidade municipal portuguesa, que, nesse tempo, ainda era usado no Brasil. 
(4) Cf. Ata da Câmara de São Paulo de 20 de abril de 1816.


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quinta-feira, 14 de abril de 2022

Por que jovens espartanos gostavam de ir à guerra

Os meninos que nasciam em Esparta eram considerados filhos do Estado, não uma propriedade dos pais ou extensão da família. Eram educados para que, quando adultos, se tornassem os melhores soldados. No dizer de Plutarco, "desde a infância os meninos espartanos eram ensinados a pensar que não haviam vindo ao mundo para satisfação própria. [Haviam nascido] para buscar o que fosse favorável à sua cidade natal" (¹).
Nada havia de meigo ou delicado na educação dos jovens espartanos. Usavam roupas muito simples (quando usavam!), dormiam em lugares péssimos e a comida, ao menos para nossos padrões, era detestável. Verão e inverno, com extremos de calor e frio, deviam ser suportados com a mesma indiferença. Aprendiam, também, a obedecer sem questionar. Não deviam ter medo, se fosse necessário caminhar rumo à morte.
A despeito de tudo isso (ou, talvez, por causa disso), os rapazes de Esparta não continham o entusiasmo quando lhes era ordenado que fossem para a guerra. Por quê? Continuemos com Plutarco: "Permitia-se, enquanto durava a guerra, que os jovens espartanos deixassem um pouco da vida rústica para a qual eram treinados e que praticavam durante o tempo em que, havendo paz, permaneciam em Esparta. [Durante a guerra] era-lhes consentido que deixassem os cabelos crescerem, além da autorização para o uso das armas e de um manto. Por isso, os jovens ficavam muito entusiasmados nas ocasiões em que saíam da cidade para ir à guerra [...], ansiosos pelo enfrentamento de inimigos." (²)
Entendem agora, meus leitores, por que alguns Estados totalitários, inclusive no Século XX, fizeram de Esparta uma inspiração para suas pretensões?

(1) PLUTARCO. Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias
(2) Ibid. 


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quinta-feira, 7 de abril de 2022

Através de rios

Se as proezas nas navegações oceânicas ficaram famosas, a navegação fluvial não foi menos importante: quando e onde (ainda) não havia estradas, nem mesmo trilhas, os rios eram vias muito convenientes, tanto para exploradores de um território desconhecido como para viagens regulares. Tentem imaginar, leitores, os barqueiros que, na Antiguidade, subiam o Nilo ou desciam o Eufrates, procurando alcançar, com os olhos, tudo o que havia às margens. Iam, aos poucos, compreendendo melhor aquilo que os cercava e traziam informações que contribuíam para a construção de um conceito do mundo, tal qual era, ou tal qual supunham ser.
Tão decisivos eram os rios, e não só pela água, que, em não poucas mitologias, o caminho dos mortos para algum tipo de vida além-túmulo era imaginado como ocorrendo através de um rio (¹), uma ideia que, surpreendentemente, sobreviveu por longos séculos (²).
Os rios não foram, contudo, apenas rotas de paz, para descobridores e comerciantes. Grupos invasores frequentemente se deslocavam através deles. Foi assim, por exemplo, na Idade Média, quando saxões, deixando suas terras escassas e pouco produtivas na Europa Continental, invadiram a Grã-Bretanha, usando barcos longos e estreitos, capazes de levar três ou quatro dezenas de remadores dispostos aos pares. Suas embarcações eram perfeitas para rios, embora também tenham servido para a travessia do Mar do Norte, a despeito de todos os evidentes riscos.
No Brasil, desde o Século XVI, exploradores europeus perceberam que rios seriam, quase sempre, os melhores caminhos no rumo do interior. Havia trilhas indígenas, é fato, mas os rios pareciam mais seguros e permitiam um deslocamento mais rápido. A navegação, para esses exploradores, quase sempre se fazia contra a corrente, visto que a maioria dos rios deságua no oceano ou em algum outro rio que, por sua vez, corre para o mar. Há, contudo, um caso notável no Brasil, de um rio importante que corre para o interior: o Tietê. Por ele, e muitas vezes com o auxílio de indígenas, colonizadores e missionários avançaram, gradualmente, para o interior do Brasil. A descoberta de ouro em Mato Grosso no Século XVIII converteu o Tietê, temporariamente, em parte essencial da rota das monções cuiabanas. O ouro diminuiu, as viagens pelo Tietê, por conseguinte, também foram ficando mais raras. Restaram o conhecimento e ocupação do interior, o nascimento de núcleos de povoação nas margens e, com isso, uma contribuição para a formação do Brasil, enquanto país com um território definido. 

Rio Tietê nas proximidades de Pirapora do Bom Jesus - SP

(1) É o caso do Aqueronte na mitologia grega, um rio que de fato existe e pelo qual se supunha que os mortos viajavam para ir ao reino de Hades. 
(2) Na poética do protestantismo, por exemplo, expressões equivalentes à travessia de um rio foram, por muito tempo, um modo de se referir à morte de um cristão, e, com esse sentido, obras literárias e cânticos religiosos falavam em "atravessar o Jordão", por analogia à travessia do rio Jordão, na Antiguidade, pelos hebreus que vinham do Egito. Um exemplo notável pode ser encontrado em The Pilgim's Progress, de John Bunyan, um clássico da literatura inglesa do Século XVII.


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