Um soldado, tencionando ver de perto o inimigo, desce um morro correndo. Ao fazer um movimento desastrado, sua espada salta da bainha e ele morre atravessado por ela. Seria apenas mais um incidente trágico, entre tantos milhões de outros nas guerras em que a humanidade tem-se envolvido, a não ser por um detalhe: esse soldado era primo do famoso Domingos Fernandes Calabar, que desertara das forças luso-brasileiras na guerra contra os holandeses que haviam invadido Pernambuco em 1630.
Ora, dirá alguém, o que há de extraordinário nisso? Não teria o Calabar muitos outros primos? É que este, especificamente, o que morreu atravessado pela própria espada, fora arregimentado por Matias de Albuquerque (¹) para, por sua condição de parente, mais facilmente atrair Calabar a uma cilada, na qual seria morto. Não houve tiro nesse episódio, mas, se houvesse, teria saído pela culatra.
Nas Memorias Diarias de la Guerra del Brasil esse episódio é descrito por Duarte de Albuquerque Coelho, irmão do comandante Matias de Albuquerque: "[...] Fazendo Calabar em primeiro de abril [de 1633] uma entrada por mar à Barra Grande e estando ali esse seu primo, por ser distrito da Paróquia de Porto Calvo, onde ambos haviam sido batizados, procurou pôr em execução seu intento. Ao descer correndo uma colina, para melhorar de posição e poder com maior facilidade reconhecer o primo, sua espada se desembainhou, e, tropeçando, caiu sobre a ponta dela, de modo que, atravessado à altura do peito, ali mesmo caiu morto. [...]" (²).
Recordem-se, meus leitores, de que a tentativa holandesa de ocupar o Nordeste brasileiro ocorreu quando, na Europa, acontecia a Guerra dos Trinta Anos. Um acontecimento não pode ser entendido sem que se compreenda o outro. Portugueses, fossem nascidos no Reino ou no Brasil, espanhóis (durante os últimos anos da União Ibérica) e até italianos lutaram para expulsar os holandeses. Interesses políticos estavam em questão; quanto aos econômicos, nem é preciso dizer. Mas, para portugueses, espanhóis e napolitanos, os holandeses não eram só invasores que deviam ser expulsos: eram hereges protestantes cujas crenças divergiam das suas e que, portanto, convinha fossem desarraigados da América do Sul.
Parece estranho? Entendam tudo isso avaliando o espírito da época. Só assim é que fatos como a deserção de Calabar (visto, por muito tempo, como o supremo traidor do Brasil) e a disposição de seu primo em matá-lo, podem ser devidamente interpretados. Imaginem, se puderem, as explicações fantasmagóricas que talvez tenham surgido para justificar a morte bizarra do soldado a que hoje nos referimos. Acontecimentos em dois continentes distantes um do outro eram reciprocamente afetados. Ideologicamente, o mundo estava encolhendo.
(1) Matias de Albuquerque era, nessa ocasião, o comandante das forças que resistiam à ocupação holandesa.
(2) COELHO, Duarte de Albuquerque. Memorias Diarias de la Guerra del Brasil. Madrid: Diego Diaz de la Carrera, Impressor del Reyno, 1654. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
Veja também:
Boa tarde Marta. Através do seu maravilhoso trabalho, aprendo cada vez mais.
ResponderExcluirObrigada, Luiz, você é muito gentil.
ExcluirSabe que tenho visitado frequentemente seu blog? Gosto muito das fotos: algumas trazem boas recordações de lugares interessantes que já conheço, enquanto outras são ótimas dicas de viagens para o futuro. Continue a publicar, sim?
Marta, seu blog é um mundo de aprendizado e de sinais de alerta para o pensamento crítico e o mundo de hoje. Obrigada por tanto e não pare nunca. Abraços
ResponderExcluirBoa noite, Anita, como está?
ResponderExcluirSabe que sua penúltima postagem no Blog Anita Plural tem-me feito pensar um bocado? Não só pela questão daquele famoso estádio, mas pelo panorama geral quando o tema é preservação de patrimônio histórico (e outros mais) no Brasil. É claro que é preciso um critério de seleção, e a preservação se faz por amostragem (porque não é possível preservar e/ou restaurar tudo), mas há muito que ainda precisar ser feito nesse sentido.
Sem dúvida, nem tombar tudo, nem botar tudo abaixo, como dizia Carlos Nelson. O problema é fazer primeiro, sem aprovação, para depois usar aquele artifício do vão aprovar para não desperdiçar. .. enfim, jeitinhos usados desde sempre neste país. Cansativo demais. Abraços
Excluir