Tarpeia era uma jovem romana. Não se pode afirmar que não amava sua cidade, mas as joias exerciam sobre ela um fascínio irresistível.
Corria a guerra entre romanos e sabinos, em decorrência do famoso rapto de mulheres, perpetrado à traição pelos romanos que, de outro modo, veriam sua cidade extinta pela impossibilidade da procriação. Durante um episódio da guerra, Tarpeia notou que os soldados sabinos usavam vistosos braceletes de ouro, e resolveu propor a eles um acordo: encontraria um modo de favorecer sua entrada em Roma, com a condição de receber os braceletes.
Entre o ouro e a pátria, Tarpeia preferiu o ouro. Tarde da noite, franqueou a entrada da fortaleza do Capitólio aos sabinos, e aguardou o cumprimento do acordo, que não tardou a vir. Mas, como traidores quase sempre são odiados pelos traídos e desprezados por aqueles a quem favoreceram, foi soterrada de modo horripilante pelos braceletes que os guerreiros sabinos, à medida que entravam, atiravam violentamente contra ela. Que nome se dá a esse insólito "apedrejamento"? Morreu, é claro.
Plutarco, que contou o caso (¹), dizia haver outras versões para o incidente, ainda que entendesse ser essa a mais confiável. Faço, no entanto, uma objeção: se Tarpeia era romana, filha de pais romanos, como se pode afirmar que não havia mulheres em Roma, daí a "necessidade" do rapto das sabinas? É forçoso reconhecer a existência de duas, ao menos, ela e sua mãe. Mas, para abandonar o terreno das lendas (talvez não totalmente lendárias) da antiga Roma, observe-se que existia, por lá, uma famosa localidade conhecida como Rocha Tarpeia, cujo uso, nas palavras de Plutarco, era este: "Há no próprio Capitólio uma grande pedra, que até hoje é chamada Rocha Tarpeia, da qual se usa precipitar os criminosos" (²).
Traição é coisa que pode ser relativizada? Falemos do Brasil Colonial. Os leitores já devem, por certo, ter ouvido falar sobre Domingos Fernandes Calabar. Viveu na época da ocupação holandesa de parte do Nordeste brasileiro (³) e, como muitos outros, se apresentou para a luta contra os recém-chegados. Entretanto, depois de algum tempo, passou para o lado dos holandeses (⁴), que, graças a seu conhecimento do território, obtiveram vitórias importantes contra os portugueses. Aqui será bom explicar que, portugueses, neste caso, eram, em sua maioria, gente nascida no Brasil, que ainda se considerava, sem questionamentos, portuguesa de nacionalidade, mesmo nunca tendo posto os pés no Reino.
Prossigamos. Foi assim que frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, autor setecentista, se referiu a Calabar:
"Foi este sujeito um mulato ou mameluco (⁵) de grande astúcia e valor, ajudado de uma inclinação perversa e malévola. Era natural e nascido em o mesmo Porto Calvo, aonde a este tempo ainda tinha mãe, chamada Ângela Álvares. No princípio serviu aos nossos com esforço e ousadia, até o ano de 1632 em que temendo ser castigado por alguns crimes atrozes que havia cometido, se passou aos holandeses. [...]" (⁶).
Que crimes seriam esses? Vários autores os mencionam, sem, contudo, especificá-los. Maledicência ou fato, quem saberá?
Capturado pelos que lutavam contra os holandeses, Calabar foi executado. Não se esperaria outra coisa. Disse Jaboatão: "[...] Com a forca, os quartos pregados em quatro estacas e a cabeça em o alto de um pau, veio a pagar todos estes desconcertos, e ali mesmo, donde para escândalo dos seus havia nascido. [...]" (⁷).
O fato de Antônio de Santa Maria Jaboatão, mais de cem anos após a execução de Calabar, persistir em considerá-lo um mero traidor, parece evidenciar que a opinião popular a seu respeito em nada mudara. Há, no entanto, que assinalar um aspecto que costuma ser pouco considerado: autores como Jaboatão, franciscano que era, não mostrariam, nesse tempo, nenhuma benevolência por um simpatizante dos holandeses protestantes, referidos, comumente, como nada mais que hereges. Coisas da época, como se sabe.
No Século XIX, em tempos de formação do conceito de nacionalidade no Brasil pós-Independência, Varnhagen, que não era padre, não mostrou qualquer tolerância em relação a Calabar. Pelo contrário, suas palavras na História Geral do Brasil foram duras, como mais não poderiam ser, depois de relatar que, antes do enforcamento, Calabar fizera confissão e recebera os sacramentos, com a devida absolvição da parte de um sacerdote católico (⁸): "[...] Desses pecados o Todo-Poderoso lhe tomaria contas, e com a sua imensa misericórdia poderá tê-los perdoado; porém dos males que causou à pátria, a história, a inflexível história lhe chamará infiel, desertor e traidor, por todos os séculos dos séculos." (⁹).
Ainda segundo Varnhagen, holandeses, tendo sabido da execução de Calabar, prestaram-lhe honras fúnebres. Contudo, estava errado ao supor que Domingos Fernandes Calabar seria, perpetuamente, tido em má conta. Não demorou para que um olhar diferente fosse lançado sobre suas ações. Quem lê a Crônica Geral do Brasil, de Alexandre de Mello Moraes, escrita ainda no Século XIX, topa com estas palavras:
"Calabar, com esse procedimento, não traiu a sua pátria, porque ela estava subjugada ao domínio português, que considerava o filho do Brasil como de superior a inferior; e vendo que a posse do Brasil era disputada por diversas nações da Europa, julgava ser mais vantajoso passar ela ao domínio de um povo livre, como então era o povo holandês, que viver sujeito à Espanha (¹º) ou a Portugal, onde além dos mais vexames predominava o medonho e cruel Tribunal da Inquisição" (¹¹).
Há mais:
"Calabar, no começo da guerra, era tratado como vil soldado; e sendo acolhido mui bem pelos holandeses, e na esperança de libertar a sua pátria do jugo português e espanhol, tudo fazia para vê-la livre e feliz. Como disse, o tempo se encarregou de justificar Calabar na adesão ao domínio holandês, porque depois da guerra mais opressão carregava o filho do país, que não passava de agricultor, frade, soldado e mesmo na milícia não subia do posto de tenente, porque este não tinha patente. [...]" (¹²).
É certo que o tempo costuma girar a roda das ideias. As circunstâncias mudam, a opinião que se tem sobre os fatos, por consequência, muda também. A análise de Mello Moraes não seria, portanto, decorrente das profundas mudanças pelas quais passava o Brasil? Traidor, herói - Calabar tornou-se alvo de debate, como talvez jamais imaginasse vir a ser. Teria realmente passado por sua cabeça que o Brasil estaria melhor nas mãos dos holandeses que nas dos portugueses? Simpatizara ele, quem sabe, com a postura religiosa dos protestantes?
Não há resposta simples a essas questões, é claro, assim como jamais se saberá o que teria acontecido ao Brasil, ou, ao menos, ao Nordeste açucareiro, se os holandeses houvessem se firmado como senhores da região. Dá-se, a quem lê, o direito de pensar o que quiser.
(1) Cf. Vitae parallelae.
(2) PLUTARCO. Vitae parallelae. O trecho citado foi traduzido por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(3) Essa segunda tentativa de ocupação ocorreu entre 1630 e 1654.
(4) Não foi o único a fazer isso.
(5) As duas coisas é que Calabar não podia ser. A maioria dos autores coloniais o descreve como mulato.
(6) JABOATÃO, Antônio de Santa Maria O.F.M. Novo Orbe Serafico Brasilico, ou Crônica dos Frades Menores da Província do Brasil Segunda Parte. Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense, 1859, pp. 168 e 169.
(7) Ibid., p. 169.
(8) Um franciscano, como Antônio de Santa Maria Jaboatão.
(9) VARNHAGEN, F. A. História Geral do Brasil vol. 1, 2ª ed. Rio de Janeiro: Laemmert, 1877, p. 543.
(10) Lembrem-se, leitores, de que esses fatos ocorreram sob a chamada União Ibérica, que durou de 1580 a 1640.
(11) MORAES, Alexandre José de Mello. Crônica Geral do Brasil vol. 1. Rio de Janeiro: Garnier, 1886, p. 267.
(12) Ibid., p. 287.
Veja também:
Achas para a fogueira do pensamento, movidas a imaginação. Apetecíveis, reconheço, mas que não passam de meras achas.
ResponderExcluir(Gosto dos vislumbres que vai deixando por aqui, qual subsídio para um maior conhecimento duma época e duma geografia ainda escassamente difundida no chamado mundo ocidental)
Tenha uma boa semana, Marta :)
Talvez o conhecimento, que tanto buscamos, venha disso: pensamento e imaginação, essa última para suprir o que eventualmente venha a faltar, temporariamente, de informação.
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