quinta-feira, 27 de maio de 2021

Algumas interpretações para o mito de Osíris

Osíris e Ísis (*)
É difícil contar um mito que tem versões quase infinitas. Façamos uma tentativa: Osíris era rei do Egito, sábio e capaz, tendo introduzido entre seus governados o conhecimento de diversos ofícios. Era, portanto, muito amado, a não ser por seu irmão Seth, sujeito perverso que ambicionava o trono. Astuto, Seth acabou matando Osíris, mas Ísis, sua mulher, depois de muitas aventuras, conseguiu recuperar o caixão no qual estava o corpo do marido. O malvado Seth, procurando impedir alguma tentativa de ressurreição, retalhou o corpo do irmão em incontáveis fragmentos, que espalhou por toda parte. A despeito disso, Ísis conseguiu trazer Osíris de volta à vida, mas foi Horus, filho do casal, quem finalmente derrotou Seth, afugentando-o para longe do Egito. Ufa!...
Mesmo com as muitas variantes que tinha, conforme a região e época em que era contado, o mito de Osíris foi, de longe, o mais destacado do Egito Antigo. Como interpretá-lo? Dentre as possibilidades que se têm levantado, vale a pena considerar:
  • A morte e ressurreição de Osíris seria uma referência poética ao Nilo que, anualmente, transbordava e depois voltava ao curso habitual, deixando, atrás de si, a terra fertilizada para uma nova estação agrícola;
  • Osíris e Seth podem ter sido divindades cultuadas previamente por tribos rivais, cuja luta humana teria sido elevada à categoria de confronto entre deuses;
  • Era habitual que, antes do início de um ano agrícola, um sacrifício fosse oferecido nos campos em honra dos deuses, de modo que o animal sacrificado era retalhado e espalhado pela terra - o mito de Osíris seria uma reminiscência desse costume;
  • Uma última interpretação, cronologicamente mais próxima - Osíris seria uma personificação dos egípcios em luta contra invasores estrangeiros de origem asiática, representados por Seth, enquanto Horus seria a representação da dinastia que expulsou os asiáticos e restabeleceu um governo verdadeiramente egípcio.
Qual dessas interpretações é a melhor? Todas, ou talvez nenhuma... Isso ainda é assunto que rende muito debate.

(*) BUDGE, E. A. Wallis. The Gods of The Egyptians vol. II. London: Methuen & Co., 1904. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog.


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terça-feira, 25 de maio de 2021

Ruas imundas

Fundada no Século XVI (¹), a cidade do Rio de Janeiro tornou-se capital do Brasil, em substituição a Salvador, no Século XVIII (²). Os novos tempos, nos quais era preciso zelar pelas remessas de ouro e diamantes para o Reino, explicam a mudança. Desvanecia-se o primado do açúcar diante do brilho de minerais tão cobiçados.
Antes e depois de se tornar capital, o Rio de Janeiro, como muitas outras cidades coloniais, não era exatamente um monumento à higiene. De acordo com José Vieira Fazenda, no  começo do Século XVII a Câmara do Rio de Janeiro decidiu impor uma multa aos armadores de baleias que insistissem em carneá-las perto da barra, em razão, é claro, do odor extremamente desagradável exalado. Não se deve imaginar, portanto, que apenas as ruas eram sujas - a mesma coisa poderia ser dita em relação à orla marítima. Também segundo Vieira Fazenda, Bernardino Antônio Gomes, um médico ouvido pela Câmara em 1798, afirmou: "[...] "quase toda a praia desta cidade da banda da baía é por falta de cais extremamente imunda [...]; as ruas da Vala e Cano (³) são ingratas aos passageiros pelo vapor que exalam [...]"." (⁴)
Lembrando aos leitores que, em razão das ameaças constantes de invasões, o Rio de Janeiro colonial tinha muralhas para proteção, deve-se dizer, também, que era perto delas, em alguns pontos, que o lixo da cidade era lançado. Esqueçam, por favor, qualquer serviço de limpeza urbana nesse tempo, mas considerem, ainda por informação de José Vieira Fazenda, que tanto entulho de péssimo aroma oferecia, em adição, um problema estratégico: "Isso se dava perto da muralha, onde tal era a altura de imundícies, que haviam quase inutilizado a fortificação [...]." (⁵)
Como mudança de governo não significa, necessariamente, mudança nos costumes em relação à higiene dos lugares públicos, quem esteve no Brasil pela época da Independência ou pouco depois dela, constatou ruas tão sujas como... Como sempre. Saint-Hilaire, por exemplo, fez esta observação, ao comparar Rio de Janeiro e Porto Alegre: "Fácil perceber-se, desde o primeiro instante, que Porto Alegre é uma cidade nova; todas as casas são novas, e muitas ainda em construção; mas, depois do Rio de Janeiro, não tinha ainda visto uma cidade tão imunda, talvez mesmo a capital não o seja tanto" (⁶). Complementando essa constatação pouco elogiosa, tem-se o que escreveu C. Schlichthorst, oficial do Segundo Batalhão de Granadeiros do Império: "A imundície de tão grande cidade [Rio de Janeiro] com outro clima empestaria as ruas, pois cavalos e cães ficam onde caíram mortos, as cloacas despejam-se nas praias e praças públicas, e os mortos são sepultados nas igrejas" (⁷).
Já vamos acabar, leitores. Para que ninguém suponha que o correr dos anos do Império trouxe mudanças radicais, veremos o que escreveram Elizabeth Cary Agassiz e Jean Louis Agassiz, que visitaram o Rio de Janeiro na década de sessenta do Século XIX: "Observando-se o asseio escrupuloso que reina em todos os estabelecimentos públicos do Rio de Janeiro, estranha-se como é que as ruas dessa cidade são as mais imundas que vimos até hoje. É evidente, não há dúvida, que os brasileiros reconhecem a importância da boa conservação de todos os lugares públicos, e é singular que tolerem nas ruas de sua capital um estado de coisas tal que muitas vezes não se sabe onde colocar os pés." (⁸) Em defesa do Rio de Janeiro poder-se-ia dizer que sujeira nas vias públicas não era característica sua, exclusivamente. As ruas, mundo afora, não eram, em geral, muito diferentes. 
Como explicar tudo isso? Para os Agassiz, a culpa, em última instância, não era nem do governo, nem do descuido dos moradores: "Ruas estreitas infalivelmente cortadas, no centro, por uma vala onde se acumulam imundícies de todo gênero; esgotos de nenhuma espécie, um aspecto de descalabro geral, resultante, em parte, sem dúvida, da extrema umidade do clima [...]" (⁹). Para esses autores, as ruas eram imundas por causa da umidade, os habitantes de Minas Gerais eram inteligentes devido ao clima, e assim por diante. O determinismo geográfico (em decorrência das condições ambientais) era moda, e servia, em não poucos casos, de muleta para explicar e/ou justificar tanto problemas terríveis quanto coisas que podiam ser reputadas como altamente positivas. Não foi sem causa que essa forma de enxergar a realidade veio a sofrer muitas críticas.

(1) 1565.
(2) 1763.
(3) Esses nomes para ruas são, a propósito, bastante sugestivos.
(4) Cf. FAZENDA, José Vieira. Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1940, p. 438.
(5) Ibid., p. 169.
(6) SAINT-HILAIRE, A. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Ed. Senado Federal, 2002, p. 50.
(7) SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro Como É (1924 - 1926). Brasília: Senado Federal: 2000, p. 28.
(8) AGASSIZ, Jean Louis R. et AGASSIZ, Elizabeth Cary. Viagem ao Brasil 1865 - 1866. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 434.
(9) Ibid., p. 67.


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quinta-feira, 20 de maio de 2021

Como indígenas lutavam contra cavalos

Cavalos eram desconhecidos na América antes da chegada de europeus no final do Século XV, e nas guerras de conquista, empreendidas principalmente por espanhóis, mostraram-se formidáveis. O modo como ameríndios reagiram à sua presença pode, talvez, ser comparado ao espanto dos romanos quando viram elefantes no exército de Pirro. Contudo, não tardou para que indígenas descobrissem que homem e cavalo não formavam um só e centáurico ser, que espanhóis não eram deuses e que cavalos eram mortais. Importava, assim, aprender a lutar contra eles.
Conhecendo muito bem o território em que viviam, astecas e outros povos vizinhos tentavam forçar os invasores à luta em terrenos difíceis para a cavalaria, cavavam buracos que, disfarçados com arbustos, eram armadilhas terríveis e tanto mais eficazes se, em seu interior, fossem colocadas estacas pontiagudas.
Mas não era só. De acordo com Bernal Díaz del Castillo, soldado a serviço de Hernán Cortés, estas eram, dentre outras, algumas práticas adotadas por indígenas quando deviam enfrentar homens a cavalo:
  • "Quero dizer que se juntavam seis ou sete dos contrários e se abraçavam com os cavalos [...], e ainda derrubaram a um soldado do cavalo, e se não o socorrêssemos, já o levariam a sacrificar [...]" (¹). Esse incidente ocorreu em luta contra chiapanecas.
  • "[...] muitos deles traziam cordas para jogar laços aos cavalos [...] para derrubá-los, e tinham estendidas em outros lugares, contra os cavalos, muitas redes que costumam usar para caçar veados [...]" (²). Aqui, novamente, Bernal Díaz falava dos chiapanecas.
  • "[...] achamos todos os caminhos bloqueados, cheios de troncos e árvores cortadas, muito obstruídos, que cavalos não podiam passar [...]" (³). Neste caso, ainda era possível desobstruir o caminho, mas a tarefa retardava a marcha e dava aos ameríndios a oportunidade da fuga.
Vê-se, facilmente, que a chamada conquista da América não se fez sem resistência. Cavalos eram caros e pouco numerosos na época em que Cortés chegou ao México. Era preciso, assim, poupá-los, tanto quanto possível. Soldados que combatiam a cavalo levavam uma lança, e perceberam que correriam menos risco e seriam de maior utilidade a seu bando de invasores se, em lugar de tentar atingir indígenas a cada lado, cavalgassem à maior velocidade que podiam, com a lança em riste, à altura do rosto dos oponentes, até obrigá-los à fuga. Intimidavam, é fato, mas não eram invencíveis e não são a única explicação para as vitórias obtidas por grupos relativamente pequenos de europeus que investiam contra exércitos numerosos de ameríndios. Armas de fogo, estratégia eficiente, incentivo às dissensões existentes entre povos indígenas e o auxílio silencioso, ainda que não intencional, de doenças como a gripe e a varíola, tiveram parte no processo de dominação imposto aos povos do Continente Americano.  

(1) CASTILLO, Bernal Díaz del. Verdadera Historia de los Sucesos de la Conquista de la Nueva España. Todos os trechos citados nesta postagem foram traduzidos por Marta Iansen, para uso exclusivamente no blog História & Outras Histórias.
(2) Ibid.
(3) Ibid.


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terça-feira, 18 de maio de 2021

Papéis de todo tipo, livros, penas e tinteiros em uma loja do Século XIX

Em algumas atividades o uso de papel anda muito reduzido, em relação ao que era, digamos, há vinte ou trinta anos. Pequenos blocos para anotações contam com poucos adeptos, porque os smartphones, com seus quase infinitos recursos, têm agora a primazia. Nos escritórios, a digitalização poupa muitas árvores. Jornais de papel, todos sabem, vão, aos poucos, desaparecendo, ainda que tenham alguns fiéis partidários. Na era das notícias instantâneas, não foi o jornalismo que desapareceu, a mudança foi na mídia, e as redes sociais fazem comunicação imediata de quase tudo o que acontece no mundo. É por isso que um anúncio como este, publicado no Correio Paulistano (*) em 1867, interessa aos apaixonados pela História, tanto quanto chama a atenção dos saudosistas:


Se conseguirem, leitores, tentem visualizar como seria uma livraria e papelaria de meados do Século XIX, na qual se vendessem os artigos citados no anúncio: livros diversos, papéis de todo tipo para estudantes, profissionais, artistas, apaixonados que escreviam cartas e mais cartas; estariam à venda, também, penas de aço, bronze e de ave - sim, havia quem ainda as preferisse a todas as outras -
tinteiros simples, para colegiais, e luxuosos, daqueles que completavam a decoração de um escritório, fazendo boa figura em um dos ângulos de uma escrivaninha repleta de livros... 
Hoje, uma lojinha dessas seria lugar frequentado por quem faz da escrita à mão um hobby. No Século XIX, devia ter um público consumidor razoável, se considerarmos que, para os padrões da época, São Paulo, que ainda não era uma cidade muito grande, tinha uma população estudantil bastante numerosa.

(*) CORREIO PAULISTANO, Ano XIV, nº 3208, 5 de fevereiro de 1867, p. 3.


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quinta-feira, 13 de maio de 2021

Como a notícia da abolição definitiva do trabalho escravo chegou a São Paulo

A cidade de São Paulo aboliu a escravidão dentro de seus limites em 25 de fevereiro de 1888. Antes ou pouco depois, muitas outras localidades fizeram o mesmo. Era preciso, no entanto, uma lei que suprimisse de vez o trabalho escravo em todo o país, e ela veio, todos sabem, em 13 de maio de 1888. O que talvez se tenha esquecido é que o abolicionismo assumira um caráter de movimento nacional e, ressalvadas as condições da época, pode ter sido um dos maiores, se é que não o mais intenso movimento que o Brasil já experimentou.
Naquele dia, um domingo, era grande a agitação popular em São Paulo, enquanto se aguardavam notícias do Rio de Janeiro, capital do Império. Na edição de dois dias mais tarde, o Correio Paulistano noticiou:
"Anteontem, na capital, com indescritível entusiasmo foi recebida a notícia da sanção da lei da abolição dos escravos.
Diversos grupos e pessoas estacionavam dentro e em frente das redações dos jornais, esperando ansiosamente, desde 11 horas da manhã, a grande notícia.
Às 2 horas e meia foi que se espalhou por telegrama recebido a notícia de que estava para todo o sempre extinta a escravidão no Brasil.
O entusiasmo tocou então ao auge do delírio e inúmeros foguetes subiram aos ares durante o espaço de uma hora.
Por todas as ruas centrais da cidade, desde essa hora, condensava-se cada vez mais a população de S. Paulo.
Notava-se naquela multidão desusada e estranha alegria. [...]" (*)
Horas mais tarde, após anoitecer, as comemorações prosseguiram, com discursos, festas e outras manifestações. O mesmo sucedeu nos dias seguintes. Estava por começar, todavia, a tarefa que ainda hoje não se concluiu, de desfazer, até onde possível, os problemas ocasionados por séculos de escravidão.

(*) CORREIO PAULISTANO, Ano XXXIV, nº 9511, 15 de maio de 1888.


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terça-feira, 11 de maio de 2021

Uma cama emprestada para o ouvidor-geral

Em 1620 a vila de São Paulo era, ainda, uma povoação pobre, e seus moradores tinham um estilo de vida rústico. O mobiliário das casas, por exemplo, feito quase todo na própria localidade, não era exatamente o que se poderia definir como um luxo. A maioria da população dormia em redes ou em camas toscas. Exceção à regra era Gonçalo Pires, que, sabe-se lá como, era proprietário de uma cama de verdade, vinda do Reino. Imagine-se o que deve ter sido o transporte desse móvel serra acima, desde o porto de Santos até São Paulo, pelo escabroso Caminho do Mar... O desconforto do transporte pagava-se bem, no entanto, e Gonçalo Pires estava feliz. Pior para ele.
Eis que um dia chega à vila a notícia de que o ouvidor-geral viria visitá-la. Como acomodar tão ilustre figura? As leis portuguesas (¹) determinavam que, para que um funcionário público fosse dignamente hospedado, era permitido "emprestar" compulsoriamente a casa ou os móveis de algum morador, que devia, no entanto, ser devidamente ressarcido se, por causa disso, seu patrimônio sofresse algum dano. Já adivinharam, não é, meus leitores? Os oficiais da Câmara logo se lembraram de que havia pelo menos uma cama decente na vila e mandaram buscá-la. Longe de interpretar a requisição como uma honra, o proprietário da cama ficou furioso. 
O ouvidor veio e se foi. Cabia à Câmara, agora, devolver a cama ao dono e, para isso, chamou quem julgasse se o móvel e a roupa emprestados estavam em boas condições: 
"Aos doze dias do mês de setembro de mil e seiscentos e vinte anos se ajuntaram em Câmara os oficiais do dito ano [...] e assim mais mandaram os oficiais da Câmara vir uma cama, colchão e cobertor e um lençol de pano de algodão usado e um travesseiro usado que foi tomado a Gonçalo Pires por mandado dos oficiais da Câmara para o ouvidor-geral, o qual estava da maneira que o tomaram de sua casa [...], que estava da própria maneira que acharam [...], somente estar o lençol por lavar [...]."
Esse documento mostra que:
  • Sendo necessário emprestar até lençóis, travesseiro e cobertor, a vila era, de fato, muito pobre;
  • O empréstimo de modo algum fora voluntário, porque não se nega que os objetos foram tomados a Gonçalo Pires, à força, talvez até com violência.
A ata prossegue, referindo  como seria pago o aluguel da cama:
"[...] e logo na mesma Câmara acordaram os oficiais, juiz e vereadores e procurador [...] que fosse notificado com pena de seis mil réis que logo Gonçalo Pires se venha entregar e receba o dinheiro que Sua Majestade manda de aluguel de sua cama, e não querendo ele, dito Gonçalo Pires, protestavam de não incorrerem em coisa alguma e me mandaram a mim, escrivão, que o notificasse [...]."
Mais observações:
  • A imposição de multa para que o dono da cama viesse receber o dinheiro do aluguel prova que não queria fazê-lo, e certamente não era por generosidade;
  • Que estaria armando Gonçalo Pires, para que a ata falasse em mandar que "se venha entregar"?
  • Sabiam os oficiais que, no cumprimento da lei, deviam pagar o aluguel correspondente, mas já sabendo, também, que Gonçalo Pires provavelmente não viria recebê-lo, protestaram inocência no caso. 
Quase dois meses mais tarde, em outra ata, registrou-se:
"Ao derradeiro de outubro de mil e seiscentos e vinte anos se ajuntaram os oficiais da Câmara [...] e logo na dita Câmara apareceu o alcaide Francisco Preto, desta vila, e deu por fé que indo à casa de Gonçalo Pires a fazer uma notificação por mandado dos ditos oficiais em como lhe mandavam ao dito Gonçalo Pires viesse tomar entrega de uma cama que nesta casa do Concelho (²) está, a qual cama foi tomada para o serviço do ouvidor-geral Amâncio Rabelo Coelho [...], o dito Gonçalo Pires se lhe escondera, o que fazia a fim de se lhe não fazer a dita notificação e por se não entregar da dita cama, fundado em sua malícia e interesse [sic!!!], ao que mandaram os ditos oficiais lhe fosse feita a terceira notificação, e quando o não acharem notificarão a um vizinho seu  mais chegado [...]."
Teimoso? Orgulhoso demais? Talvez seu exagerado senso de honra pessoal estivesse um pouco fora de tempo e lugar. Nos dias do absolutismo, os reis, os nobres e o alto funcionalismo público tinham direitos que gente comum, como devia ser nosso Gonçalo Pires, não podia contestar, por mais irritantes e descabidos que parecessem tais privilégios. Não basta ser lei para que seja justo, mas isto achamos nós, sob o abrigo do conceito ocidental de democracia, no qual vivemos. O pecado de Gonçalo Pires foi ter vivido no Século XVII - estão de acordo, leitores?

(1) Ordenações do Reino, Livro I, Título VII, § 36.
(2) Unidade municipal portuguesa.


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quinta-feira, 6 de maio de 2021

Cabelos, longos cabelos na Antiguidade

Dama romana com penteado elaborado (¹)
Longos cabelos são um símbolo de força, certo? Ao menos na Bíblia parece que sim. É só notar o exemplo de Sansão, ou talvez de Absalão, o belo e complicado filho do rei Davi. 
Entre os romanos, conforme relato de Políbio de Megalópolis em sua História, quando a cidade sofria uma ameaça grave, era costume que as mulheres, indo em massa aos templos, fizessem promessas aos deuses e varressem o piso com os próprios cabelos. É dito que esse ritual teria acontecido, por exemplo, quando os cartagineses, sob a liderança de Aníbal, chegaram bem perto de Roma.
Por outro lado, as mulheres de Cartago, segundo Floro (²), teriam, durante a Terceira Guerra Púnica (³), cortado os cabelos para que fossem usados na confecção de cordas indispensáveis às máquinas de guerra. Em ambos os casos, pode-se atribuir ao patriotismo das mulheres a disposição em sacrificar os longos cabelos, mas, pela lógica vigente na Antiguidade, era também questão de sobrevivência, fosse para prover material bélico quando havia muita escassez, fosse pelo recurso aos deuses, quando os homens, na frente de batalha, não pareciam ser capazes de dar conta do recado.
Mais tarde, quando os romanos, pelo afluxo de riquezas decorrentes das conquistas, tornaram-se grandes amigos do luxo e do conforto, os cabeleireiros, que nos primeiros tempos de Roma não eram profissionais muito procurados, passaram a ser indispensáveis. Frequentando os banhos públicos, os romanos, fossem homens ou mulheres, aprenderam a gostar de ter os cabelos devidamente tratados, o que incluía não só o corte, se necessário, mas o uso de coisas supostamente favoráveis à beleza, além de perfumes, geralmente trazidos de longe por mercadores, como era o caso da canela, muito valorizada.

(1) HEKLER, Anton. Die Bildniskunst der Griechen und Römer. Stuttgart: Julius Hoffmann, 1912, p. 244.
(2) Epitome rerum Romanarum, Livro II. 
(3) 149 a.C. - 146 a.C.


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terça-feira, 4 de maio de 2021

Tiros de canhão para combater uma epidemia de varíola

Foi no ano de 1867. Estava em curso a chamada Guerra do Paraguai (¹). Tropas brasileiras que retornavam de Corumbá para Cuiabá, a capital da Província de Mato Grosso, trouxeram consigo a terrível varíola. No dizer de João Severiano da Fonseca, médico veterano da Guerra do Paraguai, "a varíola foi desconhecida ou pelo menos nunca se propagou na Província [de Mato Grosso] até o ano de1867 [...]; mas, naquele ano, desenvolvendo-se essa enfermidade em Corumbá, de pronto estendeu-se a Cuiabá e aos outros povoados, exceção feita, dizem, de S. Luís de Cáceres, onde se estabelecera um rigoroso cordão sanitário" (²).
De acordo com Joaquim Ferreira Moutinho, português que residiu por dezoito anos em Cuiabá e foi testemunha ocular desses acontecimentos, em 1º de julho foi hospitalizado um soldado que, em seguida, morreu, e "todas as pessoas que se comunicaram com os recém-chegados caíram logo com a mesma moléstia, e o número foi gradualmente crescendo [...]" (³). A doença espalhou-se rapidamente entre os moradores de Cuiabá, que, em sua maioria, não eram vacinados. Por que não, se a vacinação era praticada há muito tempo no Brasil? Pode-se facilmente imaginar o argumento: "Bem, nunca tivemos varíola por aqui; por que deveríamos estar preocupados com vacinação?" 
A consequência dessa "lógica" foi absolutamente desastrosa. "A cidade tomou um aspecto indescritível", conforme expressão de Ferreira Moutinho, e "de todas as casas via-se saírem cadáveres, que eram conduzidos em redes para os campos, e de muitas fecharam-se as portas, porque os seus habitantes haviam perecido, desde o chefe da família até o último escravo!" (⁴). Nas palavras do mesmo autor, "[...] de uma população de doze mil almas, mais da metade sucumbiu, e parte levantou-se disforme" (⁵).
Os poucos vacinados que lá estavam mal podiam prestar algum socorro para conforto dos doentes. Não havia recursos médicos realmente efetivos contra a enfermidade. No entanto, parece que o comandante das armas de Cuiabá teve uma ideia brilhante. Vejam, leitores, o que contou Joaquim Ferreira Moutinho, mas leiam com atenção, porque é notável:
"O comandante das armas, nos dias mais lutuosos, mandou colocar peças de artilharia em diversas ruas da cidade, e dar fogo de manhã e à tarde.
Ignoramos também o fim dessa medida.
Pretenderia afugentar a epidemia com tiros de canhão? Esse pretendido recurso higiênico foi a causa de tornar-se mais grave o estado de muitos enfermos, pois ao primeiro estampido levantavam-se em delírio e procuravam fugir, julgando que eram os paraguaios que se achavam na cidade." (⁶) 
Moutinho não soube explicar para que serviam os tiros de canhão. Também desconheço seu propósito terapêutico. Alguém saberia dizer?

(1) 1864 - 1870.
(2) FONSECA, João Severiano da. Viagem ao Redor do Brasil 1875 - 1878 Volume 1. Rio de Janeiro: Typographia de Pinheiro e C., 1880, p. 186.
(3) MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Notícia Sobre a Província de Mato Grosso. São Paulo: Typographia de Henrique Schroeder, 1869, p. 100.
(4) Ibid., p. 102.
(5) Ibid., p. 104.
(6) Ibid., pp. 105 e 106.


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