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quarta-feira, 21 de maio de 2025

Contenda por um banco de igreja

Um banco na igreja foi motivo de discórdia entre população e vereadores em São Paulo no Século XVII


Embora pareça estranho para nós, que vivemos no Século XXI, é fato que, até bem adiantado o Século XIX, a maioria das igrejas no Brasil não tinha bancos em que pudessem sentar-se os que compareciam aos serviços religiosos.
Desconfortável? Sim, e pior para os fiéis do sexo masculino, que deviam ouvir missa em pé. Quanto às mulheres, era uso que permanecessem sentadas em almofadas que traziam de casa (ou que alguém, geralmente um escravo, era encarregado de trazer para a respectiva senhora). A dama que não levasse almofada acabava por sentar-se no chão. Por essa razão, mulheres se acomodavam perto do altar; homens, mais ao fundo da igreja.
Pois bem, sabendo que era esse o costume, vamos a um caso um tanto cômico ocorrido em São Paulo. Era o ano de 1632. Em ata da vereação de 10 de janeiro, pode-se ler:
"[...] pelo procurador foi dito que o banco que estava no meio da igreja em que se assentavam os oficiais era grande prejuízo e escândalo deste povo por se tratarem mal as mulheres, que lhes requeria outrossim, o que visto pelos ditos oficiais mandaram que se tirasse o dito banco [...]." (*)
No pressuposto do contexto da época, pode-se conjecturar: Será que o tal banco fora posto na igreja para melhor acomodar os senhores camaristas durante as celebrações religiosas ligadas ao Natal? Como, anteriormente, o livro de atas da Câmara de São Paulo não fazia qualquer referência ao descontentamento com o banco, é provável que não estivesse na igreja há muito tempo. Se admitirmos essa possibilidade, pode-se indagar se o banco fora lá "esquecido", talvez até intencionalmente. Não sabemos, mas nada nos custa imaginar os sussurros de indignação das mulheres de São Paulo, apontando o banco em que os que detinham o mando na vila podiam estar sentados com um grau de conforto que ninguém mais tinha. Desaforo! Abuso! Indecência!...
A fofoca devia grassar livremente, e talvez já fosse do conhecimento dos camaristas. Só restava, mesmo, dar ordem para que o banco fosse posto fora da igreja.

(*) O trecho da ata aqui citado foi transcrito na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.

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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Gado andava solto dentro da vila de São Paulo no Século XVII


Havia gado passeando à vontade pelas ruas da vila de São Paulo no Século XVII. Por consequência, havia vestígios da passagem dos animais em toda parte, o que incluía o adro das igrejas. Que falta de respeito!...
Diante disso, a Câmara da vila decidiu, em 22 de novembro de 1624, que os proprietários dos animais deveriam ser notificados para limpar os arredores das igrejas, ainda que não se fizesse menção de mantê-los em lugar seguro, longe das vias públicas e residências:
"[...] pelos oficiais foi acordado que o gado que anda nesta vila faz muito dano às igrejas, pelo que mandaram fossem notificados os donos deles, a saber, Bartolomeu Gonçalves tenha cuidado de limpar o adro do Colégio (¹) e o adro da Santa Misericórdia, e Aleixo Jorge tenha cuidado de limpar o adro da Matriz e o adro de Nossa Senhora do Carmo, [...] terão cuidado de mandarem fazer isto todos os dias [...]." (²) 
Seria apenas mais uma notificação de rotina na administração da vila de São Paulo, a não ser pelo fato de que o escrivão das execuções, a quem competia fazer as notificações, simplesmente se recusou a tal tarefa, levando os camaristas, em 21 de dezembro, à decisão de afastá-lo das funções que exercia pelo prazo de quinze dias. 
Recomendou-se, em seguida, que o escrivão da Câmara efetuasse as notificações. Problema resolvido? Não, ao que parece, porque no ano seguinte já com novos oficiais (³), o assunto do gado que andava solto na vila voltou a ser discutido, sendo, desta vez, ordenado aos proprietários que prendessem os animais à noite, porque causavam problemas não só no adro das igrejas, mas em outros pontos da povoação: 
"[...] foi mandado a mim, escrivão, notificasse Aleixo Jorge e Bartolomeu Gonçalves, que cada um deles, com pena de cinco tostões [...], todas as noites mandassem encerrar o seu gado, visto danificar o adro das igrejas nesta vila e as casas dos moradores e os caminhos e entradas desta vila, tudo estava danificado, o que era em prejuízo deste povo [...]." 
A multa estipulada, em caso de desobediência, não era grande coisa, mas havia falta crônica de dinheiro amoedado na vila. Não é impossível que, eventualmente, proprietários de gado achassem que valia a pena ignorar as ordens da Câmara. Esses prosaicos incidentes mostram, contudo, como era a prosaica vida na prosaica vila de São Paulo pelas alturas do Século XVII. Quem ousaria falar em expulsão do gado e de seus proprietários, sabendo que, nesse tempo, era difícil encontrar quem fornecesse carne suficiente para a população?

(1) Tratava-se do Colégio dos Jesuítas. 
(2) Os trechos de atas da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
(3) As eleições para a administração local eram anuais. 


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sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Aclamação de D. Pedro como imperador do Brasil em 12 de outubro de 1822

Aclamação de D. Pedro I como imperador do Brasil no Rio de Janeiro (¹)

Em 12 de outubro de 1822 o príncipe D. Pedro foi oficialmente aclamado imperador do Brasil, embora a coroação somente viesse a acontecer em 1º de dezembro do mesmo ano. Agora D. Pedro era imperador "de verdade", mas talvez a coroa ainda lhe trepidasse na cabeça. Foi assim em praticamente todo o tempo em que exerceu o poder como imperador no Brasil.
Em São Paulo, a aclamação do jovem imperador foi assinalada por festejos ordenados pela Câmara Municipal. Em 30 de setembro de 1822 um ofício vindo da Câmara do Rio de Janeiro, capital do Brasil na época, foi lido na Câmara de São Paulo, e foi assim registrado na ata correspondente:
"[...] abriu-se um ofício do Senado da Câmara da Corte do Rio de Janeiro em data de 17 do corrente, em que comunica a esta Câmara que no dia doze do próximo outubro pretende aclamar a Sua Alteza Real o Príncipe Regente Defensor Perpétuo do Brasil primeiro Imperador Constitucional do novo Império Brasiliense [sic], visto que esta é a vontade geral do povo e tropa daquela Corte e Província [...]." (²) 
Em resposta, a Câmara de São Paulo decidiu que a mesma aclamação ocorreria na área de sua jurisdição, "[...] no mesmo dia 12 de outubro [...] natalício de S. A. R. (³), [...], por ser esta a vontade geral da nobreza, povo e tropa desta cidade, tão energicamente desenvolvida ao momento que se divulgou tão interessante resolução." 
Tomaram-se providências, ainda em 30 de setembro, para que a cerimônia fosse digna da ocasião: 
  • "[...] lavraram-se editais para luminárias nesta cidade por nove dias sucessivos, principiando do dia da Aclamação";
  • Foram enviadas cartas às vilas de Santana de Parnaíba, Jundiaí, Bragança e Atibaia, para informar sobre a Aclamação que deveria ocorrer em 12 de outubro;
  • A proclamação do Edital da Câmara seria feita na cidade de São Paulo com toda a solenidade, incluindo oficiais a cavalo, guarda, música e fogos de artifício.
Chegou o grande dia, afinal!... Na ata correspondente registrou-se que, em presença das autoridades locais "[...] povo e tropa, foi por todos unanimemente acordado que declaram a sua independência dos Reinos de Portugal e Algarves, e por ela protestam dar a própria vida, e que certificados oficialmente pelo Senado da Câmara da Corte e Cidade do Rio de Janeiro, de que Sua Alteza Real o Príncipe Regente do Brasil e seu Defensor Perpétuo, o Senhor Dom Pedro de Alcântara, é hoje, dia aniversário do seu natalício, aclamado ali, e em algumas Províncias coligadas, Primeiro Imperador Constitucional do Brasil a bem deste, igualmente por tal o aclamam, como herdeiro imediato do trono português, e lhe juram obediência e fidelidade, debaixo da condição de que o mesmo senhor prestará previamente o solene juramento de jurar, guardar, manter e defender a Constituição Política que fizer a Assembleia Geral Constituinte e Legislativa Brasílica, fundada em sólidas bases e interessante a todo Império do Brasil [...]". Seguia adiante a dita ata, com uma infinidade de palavras no mesmo rumo, e foi assinada pelos que compareceram à Aclamação. Política, na época, era considerada como coisa para homens somente. Pode-se ler a lista imensa dos que assinaram, e não se achará uma só mulher (o que não significa que algumas, pelo menos, não estivessem lá).  
No dia seguinte, 13 de outubro de 1822, houve cerimônia religiosa em ação de graças na Catedral; novo ofício religioso, com toda a solenidade, foi marcado para o dia 28 de outubro. Além disso, "[...] se ordenou ao procurador que mandasse pintar as novas Armas da sala desta Câmara, que se acham no forro da mesma sala, ajustando com o pintor a nova pintura das ditas Armas do Imperador deste Império do Brasil" (⁴), e que se fizesse o novo selo com as Armas do Império (⁵). 
Têm caráter burocrático algumas das medidas adotadas pela Câmara de São Paulo, necessárias como eram diante da nova ordem política que se estabelecia; os festejos tão numerosos devem ser interpretados pela necessidade dos camaristas de tornar explícita sua adesão à causa da Independência, cujo reconhecimento formal pela antiga metrópole apenas aconteceria em fins de agosto de 1825. Até lá, era melhor não deixar nenhuma dúvida quanto ao lado em que estavam. 

(1) Cf. DEBRET, J. B. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil vol. 3. Paris: Firmin Didot Frères, 1839.  O original pertence à Brasiliana USP. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) Os trechos de atas da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
(3) S. A. R.: Sua Alteza Real.
(4) Cf. Ata de 20 de novembro de 1822. 
(5) Cf. Ata de 23 de novembro de 1822. 


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quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Expulsão de um maldizente da vila de São Paulo

Conhecem algum especialista em falar mal da vida alheia, leitores? Ao que parece, as povoações do Brasil Colonial não tinham falta de alguns desses espécimes. Na obra do poeta seiscentista Gregório de Matos é possível perceber, vez e outra, que as palavras foram usadas para castigar os fofoqueiros e maldizentes da primeira capital do Brasil, a Cidade da Bahia, hoje chamada Salvador. "Em cada porta um frequentado olheiro, / Que a vida do vizinho, e da vizinha / Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha, / Para a levar à Praça, e ao Terreiro" - Quem é que não se recorda desses versos? (¹)
Pequena como era nas primeiras décadas do Século XVII, São Paulo teve, também, o seu maldizente de ofício, de cujas habilidades somos informados pela ata da Câmara com data de 5 de setembro de 1526:
"E logo pelo procurador foi requerido [...] a eles ditos oficiais mandassem botar fora desta vila a Belchior [...], porquanto é prejudicial para este povo por respeito de sua boca, não haver nesta vila homem honrado nem mulher honrada, por ser de ruim boca, e juntamente conste já papéis que nesta Câmara há em que consta por informação o botaram já da Bahia por ser ruim boca e procedimento de sua casa e dar muitos escândalos de sua boca e vida nesta terra, pelo que requeria a suas mercês o botassem fora desta vila [...]."  (²) 
Portanto, o tal homem já havia sido expulso da Bahia, por idênticos serviços. Mas em que resultou seu caso em São Paulo? 
Em 19 de setembro de 1826 o escrivão da Ata da Câmara voltou a se ocupar dele:
"[...] deferiram os ditos oficiais o requerimento que fez o procurador [...] contra Belchior [...], mandaram os ditos oficiais que o juiz ordinário Sebastião de Freitas tirasse nova prova de seu viver e costumes que tem o dito Belchior [...], para com isso darem cumprimento à lei e ao requerimento do dito procurador [...]."  
Depois disso, não sabemos o que ocorreu ao dito tagarela, se expulso da dita vila foi, se com sua dita língua foi atormentar outra povoação colonial, ou se, já cansado de tantas aventuras, abandonou seu dito mau comportamento e acabou virando gente de bem. Está dito! 

(1) Vejam, leitores, que seus estudos de Literatura nos tempos escolares foram muito úteis. 
(2) Os trechos de atas aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão. 


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quinta-feira, 22 de junho de 2023

Quantas armas de fogo havia em São Paulo em 1624

No contexto da ocupação da Bahia por holandeses em 1624 (¹), autoridades coloniais ordenaram à Câmara de São Paulo que toda a pólvora existente na vila fosse remetida a Santos, para preparação da defesa, caso houvesse um ataque de holandeses também no litoral da Capitania de São Vicente.
Trabuco colonial - detalhe (²) 
Os camaristas, porém, não tinham a menor intenção de obedecer e, em idas e vindas de correspondência oficial entre São Paulo e Santos, a entrega da pólvora, que se dizia ser de apenas quatro arrobas, foi sendo adiada. Argumentava-se que os moradores do planalto precisavam dela, porque parecia iminente um levante de indígenas, situação em que a pólvora, dizia-se, seria a única garantia para os colonizadores. Mas, afinal, quantas eram as armas de fogo existentes na vila?
Em uma carta enviada a Santos, destinada ao capitão-mor Álvaro Luís do Vale, que governava em nome do Conde de Monsanto, aparece uma informação muito interessante:
"[...] se acordou que a pólvora que há nesta vila e se tem tomado por ser pouca, que não são mais que quatro arrobas, que era bem que se não tirasse da vila, pois nela há passante de duzentas e cinquenta armas de fogo para as quais é bem necessária e não basta para se acudir à ocasião quando se oferecer, além de que há nesta vila muito gentio de que nós podemos temer se queiram aproveitar da ocasião para se levantarem, pois entre ele se trata já, e o dito gentio se não teme mais que das armas de fogo, pelo que se acordou em toda a junta atrás referida que a pólvora se repartisse por todos os moradores desta vila que têm armas de fogo, obrigando-se cada um a dar conta da que se lhe der [...]." (³) 
Passavam, portanto, de duzentas e cinquenta as armas de fogo em mãos dos moradores de São Paulo e adjacências. Eram muitas, se considerarmos que, na época, São Paulo era uma vila de população pouco numerosa, e continuariam a ser muitas, mesmo que admitidos os colonizadores residentes em fazendas nos arredores. Não se desejava entregar a pólvora, porquanto sua utilidade era óbvia quando, mesmo sob severa proibição, eram feitas investidas no sertão para a captura e escravização de indígenas, algo em que muitos paulistas do Século XVII eram peritos.

(1) A ocupação da Bahia durou de 9 de maio de 1624 a 27 de março de 1625 - menos de um ano, portanto.  
(2) Do acervo do Museu da Mina de Ouro, Araçariguama - SP.
(3) O trecho citado da carta ao capitão-mor foi transcrito na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.  


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quinta-feira, 18 de maio de 2023

Indígenas não deviam trazer arcos quando vinham a São Paulo

Setenta anos se haviam passado desde a fundação, por missionários jesuítas, do pequenino Colégio de São Paulo. A vila de mesmo orago crescera nas imediações, e já era famosa pelas marmeladas, pelas plantações de trigo, pela criação de porcos e pela escravização de indígenas, capturados, sertão adentro, por levas de paulistas que faziam o "descimento do gentio", fosse para trabalho compulsório em suas próprias fazendas, fosse para venda em outras localidades. Para disfarçar o que, de fato, era escravidão, falava-se em "índios administrados", e "serviço dos forros", que, aliás, quase sempre só eram forros no nome. 
Uma ata da Câmara de São Paulo, datada de 27 de janeiro de 1624, mostra, contudo, que os colonizadores nem sempre estavam tão seguros com a presença dos cativos. Dizia ela:
"Aos vinte e sete dias do mês de janeiro do ano presente de mil e seiscentos e vinte e quatro [...] nesta vila de São Paulo [...] se juntaram em câmara os oficiais dela [...] e sendo juntos em câmara puseram em prática as coisas do bem comum da terra e requereu o procurador aos [...] oficiais da câmara [...] que os negros dos brancos e das aldeias não tragam arcos, pelo muito dano que fazem matando as criações dos moradores [...]." (¹)
Os "negros" a que o procurador se referiu eram ditos "dos brancos e das aldeias", subentendendo-se, portanto, a escravização. A menção às aldeias, provavelmente, era relativa àquelas em que indígenas viviam sob a tutela dos jesuítas ou sob as ordens de um oficial conhecido como "capitão dos índios". Mas "negros"? Seriam escravizados de origem africana?
Não, na época quase sempre o termo "negro" era aplicado a quem fosse escravizado, independentemente de sua origem étnica, e isto fica claro quando, na mesma ata, se vê, sob o registro do escrivão, o que é que decidiram os senhores camaristas de São Paulo: "[...] mandaram [...] que nenhum negro do gentio da terra não entrasse nesta vila com arco, para evitar o dito dano [...]." (²) 
Ora, sabe-se que os arcos eram armas que indígenas manejavam com notável habilidade, e talvez galinhas, porcos, cães e vacas fossem alvos fáceis, uma verdadeira tentação para exercício de pontaria. Contudo é lícito conjecturar que a razão para o interdito fosse outra: os colonizadores eram, ainda, pouco numerosos; muitos eram os indígenas, escravizados ou livres. Reunidos dentro da vila e munidos de arcos e de boa quantidade de flechas, poderiam causar muito dano, não só "matando as criações", como dizia a ata, mas contra os próprios moradores. Indígenas, armados e numerosos, seriam, pois, motivo de preocupação, ainda que, nesse tempo, muitos dos colonizadores já se houvessem aparentado com eles

(1) O trecho da ata aqui citado foi transcrito na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão, para não fatigar o cérebro e a paciência dos leitores deste blog.
(2) Ibid.


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quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Formigas no quintal

Determinação da Câmara de São Paulo, em 1815, para que um morador da cidade removesse o formigueiro que tinha no quintal


Quem leu a postagem anterior já sabe que, por volta de 1815, formigueiros enormes causavam transtornos em algumas ruas de São Paulo. A Câmara, em suas vereanças, entendeu ser seu dever ordenar ao procurador que mandasse extinguir tão incômodas comunidades, a bem dos usuários das vias públicas afetadas.
Mas não ficava só nisso. Em virtude da ata relativa à vereança de 25 de novembro de 1815, somos informados de que formigas fizeram uma tentativa de firmar seu império no quintal de uma casa, desencadeando, em consequência, até atrito entre vizinhos:
"Aos vinte e cinco de novembro de mil oitocentos e quinze, nesta cidade de São Paulo e casas da Câmara, paços do Concelho, onde foram vindos o juiz de fora presidente João Gomes de Campos, e os atuais vereadores, e atual procurador [...], e sendo aí todos juntos em ato de vereança despacharam o expediente: [...] com determinação a mim, escrivão, fosse à casa do brigadeiro José Arouche de Toledo, e lhe participasse da parte desta Câmara mandasse tirar um formigueiro que se acha em seu quintal, que fica na rua do Jogo da Bola, no prazo de três dias, visto o grande queixume dos vizinhos daquela rua [...]." (*)
Se o formigueiro era tão incômodo, a ponto de provocar "grande queixume dos vizinhos", como não traria desconforto também aos moradores do imóvel em questão? Não deixa de ser curioso que, na segunda década do Século XIX, a Câmara de São Paulo se ocupasse em resolver um problema dessa natureza.

(*) O trecho da ata aqui citado foi transcrito na ortografia atual, com adição da pontuação indispensável à compreensão.


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quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Vendeiros e quitandeiras

Não é de hoje que comerciantes estabelecidos protestam contra a presença de vendedores ambulantes diante de suas lojas, sob a alegação de concorrência desleal, visto que eles, os estabelecidos, em virtude dos impostos que pagam, não podem praticar preços similares aos dos ambulantes. Vou mostrar a vocês, leitores, que essa questão não tem, mesmo, nada de recente.
Quando São Paulo era apenas uma vila pequenina, vereadores tentavam atrair comerciantes que quisessem vender gêneros alimentícios, mas tinham dificuldade nessa tarefa. Afinal, para quem viesse do porto de Santos, existia o desafio, enorme para as condições da época, de atravessar as escarpas da Serra do Mar. Nenhuma surpresa, portanto, que poucos julgassem que a empreitada valia a pena. Mas, com o correr dos anos, a vila cresceu, tornou-se cidade e chegou a capital da Província. Muitos comerciantes se estabeleceram, e não tardou para que vendeiros começassem a pressionar a Câmara da cidade para que impedisse, ou, ao menos, limitasse o trabalho das quitandeiras. 
É melhor explicar: vendeiros eram proprietários de uma "venda", um estabelecimento que comercializava uma grande variedade de mercadorias, incluindo alimentos, artigos de couro e ferragens e, quase sempre, alguma cachaça, além de outras bebidas. Já as quitandeiras eram vendedoras ambulantes, algumas livres, muitas delas escravas, que comercializavam frutas, legumes e verduras, principalmente, embora, em menor número, também doces, pães, aves para abate e (até) cachaça. A aglomeração de algumas dessas quitandeiras diante da entrada ou perto de uma venda ou taberna era óbvia concorrência ao comércio estabelecido. 
Dada a explicação, é simples compreender o motivo de a Ata da Câmara de São Paulo trazer este registro, relativo à vereação de 21 de fevereiro de 1821: "Nesta despachou-se o requerimento dos vendeiros desta cidade e mandou-se passar edital na forma requerida contra as quitandeiras, para não venderem gêneros que dependem de peso e medida, e próprios das tavernas (¹) [...]" (²). Comerciantes estabelecidos eram obrigados a dispor de pesos e medidas aferidos periodicamente por pessoa determinada pela Câmara, ainda que, por parte da população, as queixas contra fraudes não fossem nenhuma raridade.
Exatamente um mês mais tarde, em 21 de março de 1821, registrou-se na Ata: "[...] lavrou-se edital sobre as quitandeiras, a requerimento dos vendeiros desta cidade, para as mesmas não venderem gêneros dependentes de peso e medidas, e sim próprios de quitandas" (²). Admitidas eventuais exceções, os vendeiros eram gente de condição livre, enquanto a maioria das quitandeiras, escravizadas que praticavam o comércio ambulante para lucro dos respectivos senhores. Esse prosaico conflito de interesses abre uma fresta na cortina do tempo para que vejamos alguma coisa das lutas de quem ocupava as ruas de São Paulo em dias já distantes.
Desde então, são passados mais de duzentos anos. A escravidão, é claro, ficou para trás, mas o mundo do trabalho, em meio aos solavancos da economia, ainda oferece, ao observador inteligente, um panorama que grita por soluções justas e duradouras.

(1) Taberna ou taverna, o significado é o mesmo.
(2) Os trechos aqui citados da Ata da Câmara de São Paulo foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.


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quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Regulamentos para vendedores de rua em São Paulo no Século XIX

Vendedora de frutas no Rio de Janeiro, Século XIX,
de acordo com Rugendas (¹)
Parte expressiva do comércio que se fazia nas vilas e cidades dos tempos coloniais, e mesmo mais tarde, nas primeiras décadas do Império, era obra de vendedores ambulantes. Disciplinar essa prática não era exatamente uma tarefa fácil: afinal, se um desses comerciantes cometesse alguma infração e, tão rápido quanto possível, desse no pé, como encontrá-lo e chamá-lo às contas, em meio à vastidão do Brasil ainda escassamente povoado? 
Era preciso, além disso, garantir alguma qualidade e higiene no que se comercializava, ainda que essas palavras não tivessem, na prática, o mesmo significado que a elas atribuímos. E, de não pouca importância, era preciso assegurar também que vendedores ambulantes não prejudicassem os comerciantes estabelecidos em pontos fixos, ou seja, em vendas e tabernas. Acrescente-se, ainda, que muitos vendedores ambulantes eram escravos, mandados às ruas pelo respectivo senhor, que esperava receber, a cada dia, os lucros desse comércio, e ter-se-á uma ideia da variedade de questões envolvidas.
Em 8 de março de1820 - há mais de duzentos anos, portanto - a Câmara de São Paulo decidiu lançar um conjunto de posturas, algumas delas destinadas a disciplinar o comércio ambulante dos "vendedores de rua", como então se dizia. Era o caso da 7ª Postura, que enunciava:
"Que todas as pessoas que andarem pelas ruas vendendo mantimentos, gêneros ou fazendas, sejam obrigados a apregoar o que vendem, pena de seiscentos e quarenta réis, sejam forros ou escravos." (²)
Que vantagens poderiam vir dessa obrigação de proclamar o que é que se vendia? Ressalvado o desconforto com o eventual berreiro na rua, quem estivesse dentro de casa poderia ouvir e, tendo interesse, sair para comprar; evitava-se, também, que se vendesse qualquer coisa proibida. Esta 7ª Postura resultava, simultaneamente, em um favor à população e em um instrumento de controle. A imposição de multa aos desobedientes era garantia, ao menos sob o aspecto formal, de que a ordem era séria e devia ser cumprida. 
Já a 11ª Postura dizia:
"Que todos os que andarem vendendo pelas ruas desta cidade os mantimentos de farinha, feijão e milho sejam obrigados a trazer duas medidas, uma de quarta e outra de meia quarta, e a venderem ao povo [..] as quantidades [de] que precisar, com a pena de seis mil réis [...]." (²)
Disso resultavam pelo menos duas vantagens aos compradores: o uso de medidas (cuja honestidade era passível de fiscalização), garantia que se entregasse a quantidade efetivamente solicitada; por outro lado, os vendedores ficavam impedidos de impor uma quantidade mínima para aquisição.
Tudo isso parece muito justo e razoável. Nesses tempos já longínquos, contudo, nem sempre leis e regulamentos eram tão prontamente cumpridos quanto se esperava, fosse por falta de fiscalização, que não era tarefa fácil, ou mesmo por conivência de quem deveria exercer o controle. No ano seguinte, 1821, o conflito entre vendeiros e quitandeiras seria assunto na Câmara de São Paulo, e virá a ser também neste blog. Aguardem a próxima postagem. 

(1) Cf. RUGENDAS, Moritz. Voyage Pittoresque dans le Brésil. Paris: Engelmann, 1827.
(2) Os trechos da Ata da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.


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quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Proibição de gelosias em São Paulo

Gelosias eram aquelas treliças de madeira, geralmente espessas e escuras, que recobriam as janelas de moradias no Brasil Colonial. É certo que nem todas as casas tinham essas feias molduras, mas elas foram muito comuns. Indo direto ao ponto, sua finalidade era, supostamente, impedir que quem passava pela rua pudesse bisbilhotar o que havia no interior da residência. Na prática, serviam para ocultar as mulheres da vista de quem não pertencesse ao círculo mais próximo de convivência. Eram, portanto, um instrumento para cercear a liberdade das mulheres, já tão limitada nesses tempos.
Como tudo muda, os anos se encarregaram de trazer a consciência de que não era boa coisa manter as gelosias. Além de feias, davam a impressão de atraso, que nenhum lugar com pretensões a modernidade teria orgulho em ostentar. Cumpria, pois, proibir sua existência, porque, como sempre acontece, toda mudança progressista tem garantida a oposição dos conservadores, em nome, neste caso (mas não só neste), da preservação da moralidade pública e dos bons costumes. 
Dada a explicação, resta dizer que, em São Paulo, no ano de 1820, uma postura da Câmara proibiu que as casas que daí em diante se construíssem na cidade ou fossem reedificadas, tivessem janelas com gelosias. Dizia assim: "Não se consentir que aqueles que edificarem de novo, ou reedificarem casas, ponham nelas gelosias nas janelas, por ficarem as casas mais escuras, e faltas de ar puro, desformosear as mesmas casas, e o prospecto [...]". Desobedientes seriam multados em seis mil réis e teriam a construção demolida.  
Verdade seja dita: as gelosias eram feias, mesmo, e esperava-se que, com essa postura, desaparecessem gradualmente. São Paulo queria tomar ares de cidade respeitável, deixando no passado tudo o que cheirava (culturalmente) a mofo e arrastava uma impressão de atraso. Havia, contudo, muito mais a ser feito, se a intenção era ir além das simples aparências.


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terça-feira, 6 de setembro de 2022

Independência do Brasil

"Contudo, sempre lhes direi, aqui, que ninguém nos ouve: o conselho de ministros no paço, as palavras de José Bonifácio ao Bregaro; a volta de D. Pedro depois de declarar a Independência; a gente que correu a São Cristóvão; a imperatriz, que, não tendo mais fitas verdes para fazer laços, fê-los com as do próprio travesseiro; D. Pedro, um rapaz de 24 anos, impetuoso e ardente; José Bonifácio, grave e forte, e, quando preciso, alegre; a gente que encheu à noite o teatro; as senhoras de laço verde ao peito; toda essa nossa aurora dá-me uma certa sensação profunda e saudosa, que não encontro... onde? no nariz do leitor, por exemplo."
Machado de Assis, Balas de Estalo, 10 de janeiro de 1884

É 1822. O príncipe regente D. Pedro sai do Rio de Janeiro em viagem a São Paulo, porque os ânimos politicamente exaltados requerem atenção - é verdade, São Paulo nunca fora, e não é, nesse tempo, uma Província muito pacífica. Percorre o Vale do Paraíba, mas são tantas as lendas que cercam esse trajeto que, por si mesmas, já evocam suspeitas. Chega a São Paulo, de onde, em seguida, vai a Santos. Cumpridos ali alguns compromissos, retorna a São Paulo e, já perto da cidade, é alcançado, no final da tarde do dia 7 de setembro, por um correio enviado às pressas do Rio de Janeiro. Lê afoitamente as cartas e, num arroubo de fúria, declara, teatralmente, bem a seu gosto e ao de sua época, que o Brasil, dali por diante, está separado de Portugal. É este evento, ocorrido há duzentos anos, que se comemora, embora nem mesmo saibamos se tudo aconteceu exatamente assim.
José Bonifácio de Andrada e Silva (¹)
Não, não sabemos, mas a viagem a São Paulo é real e a entrega da correspondência ao príncipe (cartas das Cortes de Lisboa, da princesa Leopoldina e de José Bonifácio de Andrada e Silva) igualmente aconteceu. Mas era preciso um evento icônico para assinalar a Independência. Se o chamado "grito do Ipiranga" não ocorresse, não há dúvida de que outro incidente seria escolhido, porque a humanidade parece carecer desesperadamente de acontecimentos gloriosos, aos quais se apega, sejam autênticos ou não, e os brasileiros, nesse sentido, não são nenhuma exceção. A Independência, de verdade, foi um longo e difícil processo. E, se querem saber minha opinião, há, nela, muito ainda por fazer.
D. Pedro, depois, seguiu com a comitiva a São Paulo, onde já era esperado e foi festivamente recebido, não por causa da declaração de Independência, da qual poucos talvez soubessem, mas porque já havia uma recepção dignamente preparada, dentro dos recursos de que a cidade dispunha. Relatos da época sugerem que a noite foi agradável, mas sem nenhuma animosidade contra Portugal.
É razoável supor que Pedro Américo, ao pintar o mais famoso quadro do episódio às margens do Ipiranga, não tivesse a intenção de um retrato fiel, e nem isso era possível, tantos anos após o incidente (²). Estava apresentando uma concepção artística do acontecimento, e não há nisso nenhuma fraude deliberada: uma visita a qualquer museu sério, mundo afora, convencerá quem duvida de que as paredes estão repletas de supostas reconstituições históricas sem qualquer compromisso com a realidade. De "históricas" muitas obras só têm mesmo os valores da época em que foram produzidas, não do tempo a que pretendem remeter. Servem, muitas vezes, mais como um estímulo a certa espécie de patriotismo, orgulho nacionalista e culto a alguma personalidade, do que, propriamente, como versões historiográficas fidedignas, compostas em pinceladas a óleo (ou outra tinta qualquer) sobre tela.

O beija-mão em São Paulo no dia 8 de setembro de 1822


D. Pedro, príncipe regente e primeiro
imperador do Brasil (⁵) 
Em 8 de setembro, ainda em São Paulo, mas já refeito da árdua cavalgada do dia anterior - para vir de Santos foi preciso transpor a Serra do Mar - Dom Pedro teve de aturar uma cerimônia entediante e pouco higiênica, embora muito valorizada na época: o beija-mão. Registrou-se na Ata da Câmara de São Paulo:
"Vereança e ajuntamento que fez a Câmara para ir ao beija-mão de S. A. R. (³) 
Aos oito dias de setembro de 1822 nesta cidade de São Paulo e casas da Câmara, paços do Concelho (⁴) dela, [...] foram vindos o juiz de fora pela lei presidente o capitão Bento José Leite Penteado e atuais vereadores e atual procurador [...] para efeito de sessão, e depois de estarem juntos deliberaram que se devia ir ao beija-mão, e findo o qual recolheram-se a estas mesmas casas desta Câmara (⁶)."
Nenhuma palavra sequer sobre separação de Portugal! O termo "independência" somente apareceria em ata vinte dias mais tarde, ou seja, em 28 de setembro de 1822, em cujo registro se lê: "[...] por todos foi unanimemente acordado que concordavam com a [...] Câmara da Corte e Cidade do Rio de Janeiro em que S. A. R. entrasse desde já no exercício ilimitado de todas as atribuições do Poder Executivo pela constituição que lhe devem competir na qualidade de chefe do mesmo Poder, visto ser este o único meio seguro e adequado para poder salvar este Reino [sic] das indiscretas tentativas dos seus inimigos [sic!], e conservar ilesa a sua dignidade e independência já proclamada pelo mesmo Augusto Senhor." 
Ainda no ano de 1822, D. Pedro seria aclamado imperador constitucional em 12 de outubro, dia de seu aniversário.

(1) Cf. SOUSA, Alberto. Os Andradas Vol. 2. São Paulo: Tipographia Piratininga, 1922, p. 3. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(2) "Independência ou Morte" é obra de 1888. Do final do Império, portanto.
(3) Sua Alteza Real.
(4) Concelho: unidade municipal portuguesa.
(5) Cf. ARMITAGE, John. História do Brasil. Rio de Janeiro: J. Villeneuve e Comp., 1837. A imagem foi editada para facilitar a visualização neste blog. 
(6) Os trechos da Ata da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.


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quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Dia do Fico

Com a volta de Dom João VI a Portugal, o jovem Dom Pedro de Alcântara ficara no Rio de Janeiro na condição de príncipe regente. Contudo, novas ordens expedidas pelas Cortes de Lisboa determinaram, em 1821, o seu retorno imediato, enquanto uma junta governativa deveria ser encarregada dos negócios do Brasil. Formalmente, dizia-se que era necessário ao príncipe viajar pela Europa e concluir sua educação, como herdeiro presuntivo do trono português. De fato, nesse sentido, as Cortes não estavam em erro: habituado à vida livre (até demais) no Rio de Janeiro, Dom Pedro estava longe de ter recebido a instrução necessária a um monarca, ainda que, de fato, fosse pessoa de talento notável em algumas áreas, tendo conquistado, temporariamente, a simpatia da maior parte dos brasileiros. 
Contudo, interpretada como uma tentativa de fazer as coisas voltarem a ser como antes de 1808, a notícia de que Dom Pedro deveria voltar a Portugal não teve recepção favorável no Brasil. Lideranças locais trataram logo de influenciar o príncipe no sentido de dizer um sonoro "não" às Cortes. A Câmara de São Paulo, por exemplo, enviou uma carta a Dom Pedro, conforme se vê pela Ata de 31 de dezembro de 1821: "Em ato da mesma [vereança] escreveram uma carta a S. A. R. (¹) o Príncipe Regente à Corte do Rio de Janeiro, representando ao mesmo Augusto Senhor, e suplicando-lhe queira demorar seu embarque para Lisboa até nova resolução do Congresso Nacional; cuja representação se acha assinada pelo doutor ouvidor interino desta comarca e pela corporação da Câmara e continua a ser assinada por todas as mais autoridades, corporações e cidadãos desta cidade, e depois será entregue ao Deputado nomeado por esta Câmara, o Marechal José Arouche de Toledo Rendon" (²).
Em 9 de janeiro do ano seguinte, Dom Pedro fez a famosa declaração pública, segundo a qual afirmava sua intenção de permanecer no Brasil. Foi um gesto algo teatral, bem ao gosto da época. Por essa razão, a data ficou conhecida como "Dia do Fico". A sorte estava lançada, não pela travessia do Rubicão, como fizera César, mas para, em poucos meses, ser assinalada por outro gesto ainda mais cenográfico, às margens de um riacho...
A notícia do "fico" logo se espalhou. A Câmara de São Paulo, que dirigira súplica pela permanência do príncipe, não tardou em ter parte na comemoração, com direito a tríduo na Sé e luminárias pela cidade durante as noites correspondentes: "Aos vinte e três de fevereiro de 1822, nesta cidade de São Paulo [os camaristas foram] com o real estandarte [à] Sé Catedral onde assistiram ao Tríduo que se celebrou com missa cantada e sermão em ação de graças ao Todo-Poderoso, pela resolução que tomou S. A. R. o Sr. Príncipe Regente do Brasil D. Pedro de Alcântara, cuja solenidade fez o Governo Provisório de acordo com o Exmo. Sr. Bispo, de que esta Câmara teve participação oficial do mesmo Governo em 19 do corrente para mandar publicar luminárias nas noites do dito Tríduo  e assistir a ele, como de fato o fez nos dias 21, 22 e 23, hoje". Não havendo separação entre Igreja e Estado, era assim, com cerimônias religiosas, que frequentemente acontecimentos reputados felizes na política eram celebrados. 

(1) Sua Alteza Real.
(2) Os trechos citados de Atas da Câmara de São Paulo foram transcritos na ortografia atual, com adição da pontuação indispensável.


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quinta-feira, 25 de agosto de 2022

A volta de D. João VI a Portugal

O rei se foi, o príncipe D. Pedro ficou como regente


Assinatura de D. João VI (¹)
De má vontade, mas cumprindo o desejo das Cortes de Lisboa, D. João VI deixou o Brasil, rumo a Portugal, em abril de 1821, levando consigo parte da gente que com ele viera em 1808. Nem todos, é claro, decidiram voltar, porque haviam se estabelecido no Brasil e não previam tempos fáceis para a monarquia portuguesa. Ficou no Rio de Janeiro, também, o jovem príncipe D. Pedro, na condição de regente.
Em São Paulo, a notícia da partida do rei foi seguida de preces, um tanto tardias, em favor dos membros da família real durante a travessia do Atlântico, assim registradas em Ata da Câmara:
"Aos dezoito de maio de mil oitocentos e vinte e um, nesta cidade de São Paulo e casas da Câmara [...], aonde foram vindos o doutor juiz de fora presidente Nicolau Siqueira de Queirós, vereadores e procurador atual, e daqui saíram todas as tardes antecedentes cobertos com o real estandarte desde o dia quatorze até hoje, para irem assistir às preces que [...] fazia o excelentíssimo bispo pela feliz viagem de el-rei nosso senhor e sua real família para a corte de Lisboa [...]." (²)
A demora no início das preces pode ser facilmente explicada pela lentidão com que as notícias circulavam na época, principalmente quando se tratava de comunicações oficiais. De boca em boca, não tenham dúvida, leitores, as novidades circulavam um pouco mais depressa.
No dia seguinte (em 19 de maio de 1821, portanto), outro serviço religioso requereu a atenção dos camaristas de São Paulo, dessa vez em ação de graças, por nada menos que a regência de D. Pedro: "[...] saíram incorporados cobertos com o real estandarte para irem à Sé Catedral assistirem ao Te Deum que na mesma cantou o excelentíssimo bispo, em ação de graças ao Todo-Poderoso por se achar regendo este Reino do Brasil o senhor príncipe Dom Pedro de Alcântara [...]". Poder-se-ia argumentar que tudo isso fazia parte das formalidades usuais naqueles dias, mas é fato que o príncipe, era (ainda) alvo de admiração e de grandes expectativas por parte da população. Ninguém podia prever o papel que iria desempenhar no processo de independência, mas havia certo interesse em mantê-lo favorável à causa do Brasil, ainda que uma ruptura com Portugal não estivesse abertamente em pauta. Completou-se a demonstração pública de agrado com o regente pela colocação de luminárias nas janelas nos dias 20, 21 e 22 de maio (³).
Como exercício de história contrafactual, pode-se indagar o que teria acontecido se D. João houvesse teimado em permanecer no Brasil. Como teriam reagido as Cortes? E se D. João, deixando de lado a lentidão em decidir, houvesse resolvido, ele mesmo, liderar a ruptura dos vínculos entre Brasil e Portugal, fazendo-se rei de uma nova nação independente, em lugar de encarregar o filho dessa tarefa? Se... Conjecturas, conjecturas, nada mais que isso. 

(1) Cf. SOUSA, A. D. de Castro e. Fac-símiles das Assinaturas dos Senhores Reis, Rainhas e Infantes que Têm Governado Este Reino de Portugal Até Hoje. Lisboa: Imprensa Nacional, 1848.
(2) Todos os trechos de Atas da Câmara de São Paulo aqui citados foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
(3) Conforme Ata da Câmara de 26 de maio de 1821.


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quinta-feira, 16 de junho de 2022

Procissão de Corpus Christi em São Paulo no ano de 1822

Era o ano da independência do Brasil, mas, sendo ainda junho, ninguém sabia disso, embora houvesse gente trabalhando para que a separação de Portugal acontecesse, mais cedo ou mais tarde. 
Pois bem, era junho de 1822, o dia de Corpus Christi se aproximava, e a Câmara de São Paulo devia tomar providências para que a tradicional procissão religiosa ocorresse dentro das normas do decoro. Nesse tempo, meus leitores, o projeto de um Estado laico não passava pela cabeça de quase ninguém, e somente iria vingar após a proclamação da República em 1889. Quanto a São Paulo, era uma cidadezinha provinciana, com poucas vias calçadas, para gaudio das formigas que estabeleciam residência nas ruas de terra batida e, dali, só de raro em raro eram removidas. Pontes, com frequência, ameaçavam ruir, e até porcos circulavam à vontade em algumas paragens. Por isso, em relação à vereança de 4 de junho de 1822, registrou-se na ata da Câmara: "Nesta determinaram [vereadores e juiz de fora] ao atual procurador que mande limpar os meios das ruas por onde passa a procissão do Corpo de Deus onde elas estiverem imundas e indecentes [sic!]."
Alguns dias antes, em 11 de maio de 1822, a mesma Câmara havia decidido: "Na mesma [vereança] se determinou ao atual procurador que mande fazer timbales para a festividade de Corpus Christi, visto que este Senado não tem para a mesma festividade; que sempre anda esta Câmara emprestando; bem como dois clarins, mandando vir do Rio por ser mais em conta, e no entanto que empreste para o presente ano. [...]" (*). Esse registro é mais que suficiente para elucidar qualquer dúvida quanto à realidade econômica da Província de São Paulo e de sua capital há duzentos anos.
Semanas mais tarde, os vereadores, cientes de que o príncipe regente Dom Pedro tencionava vir a São Paulo, começaram a dar ordens para que a população limpasse as ruas, removesse os formigueiros, caiasse a fachada das casas e recolhesse porcos e outros animais. Não parecia bem que Sua Alteza Real visse tais coisas ao passar pela cidade. Dom Pedro veio, de fato, e, com certa ajuda do acaso, sua passagem por São Paulo contribuiu para mudar definitivamente a condição política do Brasil. 

(*) Os trechos citados da Ata da Câmara de São Paulo foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável.


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quinta-feira, 21 de abril de 2022

A morte de D. Maria I

D. Maria I não é personagem histórica pela qual os brasileiros morrem de amores, seja pela repressão à Inconfidência Mineira, seja pela proibição de fábricas no Brasil. Portanto, o título de "a Piedosa", como foi chamada, não faz, por aqui, muito sentido, ainda que, sob certos aspectos, talvez o merecesse.
Nascida em 1734, foi, desde 1792, considerada mentalmente incapaz para conservar o reinado, e, desde então, substituída pelo filho D. João, que passou a exercer o governo na condição de príncipe-regente. Mas o mundo da época passava por mudanças acentuadas, e Maria I também teve de se mudar (em outro sentido), vindo viver no Brasil, a cuja capital, o Rio de Janeiro, chegou em 1808, como parte da Família Real que deixara o Reino para fugir das pretensões napoleônicas. E foi no Rio mesmo que D. Maria faleceu, em 20 de março de 1816. 
No mês seguinte, a informação oficial de sua morte chegou à Câmara de São Paulo, mediante ofício do capitão-general Conde da Palma, incluindo uma ordem para que o luto fosse observado com todas as formalidades e demonstrações públicas de tristeza. Não vinha ao caso a opinião popular sobre a rainha: era cumprir a ordem, e pronto. Assim, em 20 de abril, os oficiais da Câmara e mais funcionários públicos da localidade, "todos de capas de baetas pretas até os pés, chapéus desabados e fumos (¹) caídos [...], pegando cada um dos vereadores em seu escudo preto e varas pretas [...], montaram todos a cavalo, todos os quais cavalos iam cobertos de baeta preta até ao chão [...]" (²), e trataram de cumprir o ritual que deles se esperava, diante da população, cuja reação, ainda que não registrada, bem se pode imaginar:
 "[...] logo no pátio deste Concelho (³), onde estava postado um corpo de tropas, e no meio da praça um arquibanco de madeira coberto de baeta preta, subiu o vereador mais velho, e proferindo três vezes esta legenda - Chorai, Nobres, chorai, Povo, que é morta a Augustíssima rainha Senhora Dona Maria Primeira do Reino Unido de Portugal e Brasil e Algarves - e quebrou o escudo e atirou ao chão, findo o qual ato deu a tropa três descargas e daí foi indo a Câmara acompanhada pelo dito corpo de tropas para o largo e pátio da Câmara, onde estava postado outro corpo de tropas, ao qual se reuniu o corpo que acompanhava a Câmara, e em outro arquibanco que se achava quebrou o escudo o segundo vereador, proferindo três vezes a referida legenda - e deu o corpo de tropas três descargas; daí seguiu a Câmara acompanhada da referida tropa para o largo da Sé, onde estava postado outro corpo de tropas, a que se reuniram o primeiro e o segundo, e deram juntamente três descargas, depois de quebrado terceiro escudo pelo terceiro vereador em outro arquibanco que aí estava armado; daí seguiu a Câmara acompanhada dos três corpos de tropas referidos para o largo do Colégio, onde estava postado outro corpo de tropas, ao qual se reuniram outra vez os primeiros corpos que acompanhavam a Câmara, e quebrando o procurador o último escudo, proferindo três vezes a referida legenda, toda a tropa deu três descargas, [...], e daí voltando para os Paços do Concelho se mandou lavrar este termo para a todo tempo constar [...]" (⁴).
Não devia haver dúvida de que a Câmara levara a efeito o que dela se esperava. Cerimônias como essa, com um simbolismo que hoje nos parece estranho, até ridículo, na época eram feitas com toda a seriedade.
Cinco dias mais tarde, em 25 de abril de 1816, portanto, a Câmara fez outro "ajuntamento", como se dizia. Era aniversário de D. Carlota Joaquina, e lá se foram os vereadores e mais oficiais a caminho da Sé, para um Te Deum Laudamus "pelos felizes anos" da princesa que detestava o Brasil e que, pela morte da sogra, passaria a ser chamada rainha. Do luto às festas, cumpriam-se à risca as formalidades. Quanto à vida da gente comum, seguia tudo como sempre.

(1) Faixa usada em sinal de luto.
(2) Os trechos citados da ata da Câmara de São Paulo de 20 de abril de 1816 foram transcritos na ortografia atual, com acréscimo da pontuação indispensável à compreensão.
(3) "Concelho" com "c" é o nome da unidade municipal portuguesa, que, nesse tempo, ainda era usado no Brasil. 
(4) Cf. Ata da Câmara de São Paulo de 20 de abril de 1816.


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terça-feira, 22 de junho de 2021

A colheita do milho em São Paulo no começo do Século XVII

Em época de safra, as festas do milho se espalham por quase todo o Brasil. São uma velha tradição, embora hoje pouca gente trabalhe diretamente na lavoura, mas festa sempre é festa e há público suficiente para apreciar bolo, curau, pamonha e outros petiscos feitos com milho-verde. Já houve tempo, porém, em que empregar todos os braços disponíveis para a colheita do milho era questão de sobrevivência. Os dias de safra eram seguidos, como se sabe, por uma comemoração, aproveitando as virtudes culinárias do milho-verde que não estariam disponíveis em outras épocas do ano.
Foi no comecinho do Século XVII. Os oficiais da Câmara da Vila de São Paulo, que deviam comparecer habitualmente a reuniões quinzenais, tomaram uma decisão que, tanto tempo depois, vem nos mostrar que nem mesmo os figurões da administração local escapavam do trabalho na lavoura quando era hora de colher o milho. A ata registrada em 10 de fevereiro de 1601 dizia:
"[...] requereu o procurador [...] aos ditos oficiais que houveram de pedir ao senhor governador que, porquanto agora eram os tempos de colher as novidades do milho e entravam os dias santos da Quaresma, houvesse férias por tempo de dois meses, conforme a Ordenação, e se passasse por este tempo, porquanto em nenhum tempo do ano convinha melhor que elas corressem senão agora, para bem e quietação de todos e proveito da terra [...]." 
Colheita do milho e quaresma - ocasião para férias, portanto, conforme se requeria. Era preciso trabalhar na roça, supervisionar as "peças" (*) na colheita e, claro, como gente religiosa que era essa, dedicar tempo aos ofícios quaresmais. Tudo de acordo com as Ordenações que, de fato, previam férias de dois meses para os magistrados, na época da colheita do trigo e das uvas. Sem dificuldade, poder-se-ia dizer que o milho era o "trigo da terra", e tudo se arranjaria. Note-se apenas que, neste caso, as férias propostas pela Câmara não aconteceriam muito depois do início do ano... Deviam culpar o Sol, o Hemisfério Sul, e sabe-se lá que mais, por esse inconveniente. Notem também, leitores: era 10 de fevereiro, mas ninguém, ninguém mesmo na Câmara, falou em celebrar o entrudo (carnaval), nos três dias que precediam a Quaresma. Os oficiais eram gente muito séria.

(*) Indígenas submetidos a trabalho compulsório.


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terça-feira, 11 de maio de 2021

Uma cama emprestada para o ouvidor-geral

Em 1620 a vila de São Paulo era, ainda, uma povoação pobre, e seus moradores tinham um estilo de vida rústico. O mobiliário das casas, por exemplo, feito quase todo na própria localidade, não era exatamente o que se poderia definir como um luxo. A maioria da população dormia em redes ou em camas toscas. Exceção à regra era Gonçalo Pires, que, sabe-se lá como, era proprietário de uma cama de verdade, vinda do Reino. Imagine-se o que deve ter sido o transporte desse móvel serra acima, desde o porto de Santos até São Paulo, pelo escabroso Caminho do Mar... O desconforto do transporte pagava-se bem, no entanto, e Gonçalo Pires estava feliz. Pior para ele.
Eis que um dia chega à vila a notícia de que o ouvidor-geral viria visitá-la. Como acomodar tão ilustre figura? As leis portuguesas (¹) determinavam que, para que um funcionário público fosse dignamente hospedado, era permitido "emprestar" compulsoriamente a casa ou os móveis de algum morador, que devia, no entanto, ser devidamente ressarcido se, por causa disso, seu patrimônio sofresse algum dano. Já adivinharam, não é, meus leitores? Os oficiais da Câmara logo se lembraram de que havia pelo menos uma cama decente na vila e mandaram buscá-la. Longe de interpretar a requisição como uma honra, o proprietário da cama ficou furioso. 
O ouvidor veio e se foi. Cabia à Câmara, agora, devolver a cama ao dono e, para isso, chamou quem julgasse se o móvel e a roupa emprestados estavam em boas condições: 
"Aos doze dias do mês de setembro de mil e seiscentos e vinte anos se ajuntaram em Câmara os oficiais do dito ano [...] e assim mais mandaram os oficiais da Câmara vir uma cama, colchão e cobertor e um lençol de pano de algodão usado e um travesseiro usado que foi tomado a Gonçalo Pires por mandado dos oficiais da Câmara para o ouvidor-geral, o qual estava da maneira que o tomaram de sua casa [...], que estava da própria maneira que acharam [...], somente estar o lençol por lavar [...]."
Esse documento mostra que:
  • Sendo necessário emprestar até lençóis, travesseiro e cobertor, a vila era, de fato, muito pobre;
  • O empréstimo de modo algum fora voluntário, porque não se nega que os objetos foram tomados a Gonçalo Pires, à força, talvez até com violência.
A ata prossegue, referindo  como seria pago o aluguel da cama:
"[...] e logo na mesma Câmara acordaram os oficiais, juiz e vereadores e procurador [...] que fosse notificado com pena de seis mil réis que logo Gonçalo Pires se venha entregar e receba o dinheiro que Sua Majestade manda de aluguel de sua cama, e não querendo ele, dito Gonçalo Pires, protestavam de não incorrerem em coisa alguma e me mandaram a mim, escrivão, que o notificasse [...]."
Mais observações:
  • A imposição de multa para que o dono da cama viesse receber o dinheiro do aluguel prova que não queria fazê-lo, e certamente não era por generosidade;
  • Que estaria armando Gonçalo Pires, para que a ata falasse em mandar que "se venha entregar"?
  • Sabiam os oficiais que, no cumprimento da lei, deviam pagar o aluguel correspondente, mas já sabendo, também, que Gonçalo Pires provavelmente não viria recebê-lo, protestaram inocência no caso. 
Quase dois meses mais tarde, em outra ata, registrou-se:
"Ao derradeiro de outubro de mil e seiscentos e vinte anos se ajuntaram os oficiais da Câmara [...] e logo na dita Câmara apareceu o alcaide Francisco Preto, desta vila, e deu por fé que indo à casa de Gonçalo Pires a fazer uma notificação por mandado dos ditos oficiais em como lhe mandavam ao dito Gonçalo Pires viesse tomar entrega de uma cama que nesta casa do Concelho (²) está, a qual cama foi tomada para o serviço do ouvidor-geral Amâncio Rabelo Coelho [...], o dito Gonçalo Pires se lhe escondera, o que fazia a fim de se lhe não fazer a dita notificação e por se não entregar da dita cama, fundado em sua malícia e interesse [sic!!!], ao que mandaram os ditos oficiais lhe fosse feita a terceira notificação, e quando o não acharem notificarão a um vizinho seu  mais chegado [...]."
Teimoso? Orgulhoso demais? Talvez seu exagerado senso de honra pessoal estivesse um pouco fora de tempo e lugar. Nos dias do absolutismo, os reis, os nobres e o alto funcionalismo público tinham direitos que gente comum, como devia ser nosso Gonçalo Pires, não podia contestar, por mais irritantes e descabidos que parecessem tais privilégios. Não basta ser lei para que seja justo, mas isto achamos nós, sob o abrigo do conceito ocidental de democracia, no qual vivemos. O pecado de Gonçalo Pires foi ter vivido no Século XVII - estão de acordo, leitores?

(1) Ordenações do Reino, Livro I, Título VII, § 36.
(2) Unidade municipal portuguesa.


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terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Quem podia ser barbeiro em São Paulo no Século XVI

O que faziam os barbeiros do final do Século XVI? Aparavam barbas, naturalmente, e cabelos... Não só. A população da vila de São Paulo recorria aos barbeiros para várias tarefas que hoje poucos buscariam (se é que alguém ainda faz), e que eram, contudo, muito procuradas em tempos passados: sangrias (¹), por exemplo, e também curativos para feridas, porque a probabilidade de haver um médico nas vilas coloniais era muito reduzida.
Ocorre que, ciumentos de suas prerrogativas, os barbeiros reconhecidos por uma corporação de ofício colocavam todos os empecilhos que podiam à atuação de intrusos na profissão. No ano de 1597 os oficiais da Câmara de São Paulo decidiram agir contra a entrada indiscriminada de forasteiros que se propunham ao trabalho de barbeiros, e que diminuíam, portanto, a freguesia disponível para os profissionais que já residiam na localidade. Diz a ata correspondente:
"Aos dezesseis dias do mês de agosto do dito ano fizeram audiência os oficiais da Câmara e assentaram coisas pertencentes ao bem comum. E logo assentaram entre todos que porquanto nesta vila havia muitas pessoas que de fora vinham e outros que não eram examinados curavam feridas e faziam sangrias por toda a terra, e que pois havia na vila Antônio Ruiz, barbeiro e homem experimentado e examinado (²), que era bem fazê-lo juiz do ofício e que sem sua ordem e sem ser visto todo o que assim curar não possa fazer nem usar da dita cura e sangrias sem sua licença e carta de examinação [sic], salvo quem em suas casas o faz e mostrem o fazer por necessidade ou em negócio e caso fortuito, não sendo achado o dito Antônio Ruiz, farão as ditas curas e sangrias para quem souberem fazer [...]." (³)
No entanto, meus leitores, talvez nos seja lícito supor que, por trás dessa tão salutar preocupação da Câmara, talvez manobrasse o próprio barbeiro Antônio Ruiz, porque, logo em seguida, a ata é enfática em dizer que o homem compareceu de imediato a prestar juramento para ser feito juiz de ofício: 
"[...] para este efeito apareceu logo o dito Antônio Ruiz e recebeu juramento dos Santos Evangelhos perante mim, escrivão, sobre um livro deles, da mão do vereador Antônio de Proença, e prometeu de usar e fazer o dito seu ofício bem e fielmente para estar aqui com os ditos oficiais que lhe mandaram passar provisão deste caso [...]."
Quanta prontidão! Sabendo que paulistas da época eram mestres em tergiversar, se conveniente, não parece pouco razoável fazer a leitura dessa ata menos pelo que diz e mais pelo subentendido, em relação à prática do sangrento ofício de barbeiro no Século XVI (⁴).

(1) A falta de médicos era gritante no território colonial, de modo que até jesuítas tinham, eventualmente, autorização do Padre Geral para efetuar sangrias, uma mania da época que se acreditava salvar vidas, embora não tenham sido poucas, certamente, as que se perderam por causa dela.
(2) Examinado talvez ainda em Portugal, em uma corporação de ofício.
(3) A Ata da Câmara de São Paulo de 16 de agosto de 1597 foi aqui transcrita na ortografia atual e com a adição de alguma pontuação, para torná-la compreensível aos leitores da atualidade (assim espero).
(4) O ofício de barbeiro continuou a envolver sangrias, curativos e até extração de dentes por muito tempo.


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